Na coluna anterior, encerramos tratando do Regulamento Europeu das Sucessões. Seguiremos tratando dele e avançando para outros pontos da harmonização no direito internacional europeu.
1. Sistema unitário das sucessões mortis causa na União Europeia
O normativo europeu de sucessões (o Regulamento EU nº 650/2012) busca evitar que a sucessão mortis causa transnacional fique vulnerável a uma insegurança jurídica que ocorreria caso a lei de mais de um Estado membro fosse aplicável.
Assim, se uma pessoa falecer deixando bens em vários Estados membros, o Regulamento Europeu das Sucessões definirá uma única lei que será aplicável para reger a transmissão mortis causa de todos os bens, independentemente da sua localização. A norma comunitária censura a fragmentação da sucessão para leis diferentes por adotar o princípio da unidade sucessória1. Esse princípio contrapõe-se ao princípio do fracionamento da lei sucessória, que é comum quando se prestigia a lex rei sitae para reger a sucessão mortis causa em detrimento da lex successionis.
Aliás, o sistema da sucessão unitária (assentado no princípio da unidade da lei sucessória) é a tendência dos ordenamentos desde a segunda metade do século XX em virtude das dificuldades do sistema de fracionamento da sucessão. É o que vigora em Portugal, na Alemanha, na Áustria, na Checoslováquia, na Dinamarca, Eslovênia, Espanha, Estônia etc. Foi proposto por Savigny e Mancini2.
O sistema da sucessão unitária substituiu, em vários países, o sistema do fracionamento da sucessão, de origem feudal. Este último (o sistema do fracionamento da sucessão) é o sistema tradicional nos países anglo-saxões, nos influenciados pelo Código Civil napoleônico (como França, Bélgica, Luxemburgo), na Bulgária, na Lituânia e na Romênia3.
O Regulamento Europeu das Sucessões, todavia, rejeitou o sistema do fracionamento da sucessão pelo fato de que a insegurança jurídica desse modelo tem o potencial de inibir a livre circulação de pessoas, de capital e de serviços.
Em sintonia com essa necessidade de conciliar os diversos sistemas jurídicos dos Estados membros com a vontade dos sujeitos, o Regulamento Europeu das Sucessões prestigia a autonomia da vontade, ao admitir o professio iuris em matéria sucessória4. Trataremos da professio iuris no próximo capítulo.
2. Professio iuris: escolha da lei aplicável como um prestígio à autonomia da vontade
Professio iuris é a escolha da lei aplicável. Esse conceito era utilizado na Idade Média. Referia-se às manifestações de vontade das partes de um negócio quanto à lei a ser aplicada. Era termo mais utilizado em escolhas feitas em testamento para reger a sucessão mortis causa.
Na Suíça do final do século XIX, esse termo foi resgatado para a escolha da lei aplicável pelo testador. A Convenção de Haia de 1989 sobre a Lei Aplicável a Sucessões mortis causa reforçou a figura e serviu de modelo a diversas outras legislações. O Regulamento Europeu das Sucessões positiva o professio iuris em matéria sucessória em favor da lei da nacionalidade5.
De fato, o Regulamento Europeu das Sucessões adota, por exemplo, como elemento de conexão no caso de conflito de leis, o ordenamento da residência habitual do falecido, admitida, porém, a escolha da lei da nacionalidade (lex patriae) pelo autor da herança em testamento (arts. 21 e 22). Essa exceção representa a admissão do professio iuris em favor da lei da lei nacionalidade.
O professio iuris é uma excelente alternativa para conciliar, de um lado, a autonomia da vontade dos sujeitos e, de outro lado, a importância em harmonizar os diversos ordenamentos jurídicos implicados no caldeirão jurídico da União Europeia. Permitir que as partes possam escolher o direito aplicável é lhes conceder previsibilidade jurídica e condições efetivas de planejar suas relações privadas.
É nesse contexto o professio iuris6é empregado em vários domínios do direito privado europeu.
Em matéria obrigacional (contratual e extracontratual), a escolha da lei aplicável é uma das colunas da normatização comunitária.
É o que estatui o Regulamento Roma I7, que disciplina a lei aplicável em obrigações contratuais. A liberdade de as partes escolherem o direito aplicável é "uma das pedras angulares do sistema de normas de conflitos de leis em matéria de obrigações contratuais"8.
É a mesma linha do Regulamento Roma II9, que regula a lei aplicável em obrigações extracontratuais, como a proveniente de responsabilidade civil, de enriquecimento sem causa, de culpa in contrahendo (responsabilidade civil pré-contratual) e de gestão de negócios.
O professio iuris em matéria contratual e extracontratual, todavia, deve ser feita sem abuso de direito. E, por isso, os Regulamentos Roma I e Roma II estabelecem limites à escolha da lei para evitar lesões à ordem pública e prejuízos a partes vulneráveis.
Por exemplo, em contratos celebrados com consumidor, a escolha da lei não pode ser feita de modo a afastar proteções de ordem pública que são garantidas ao consumidor pela lei da sua residência habitual (art. 6º, nº 2, do Regulamento Roma I10). Em resumo, quando envolver consumidor, prestigia-se a aplicação da lei mais favorável a ele por conta de sua vulnerabilidade11.
No mesmo sentido, para obrigações extracontratuais, é esclarecedor o Considerando nº 31 do Regulamento Roma II, in verbis:
(31) Para respeitar o princípio da autonomia das partes e reforçar a certeza jurídica, as partes deverão poder escolher a lei aplicável a uma obrigação extracontratual. Esta escolha deverá ser expressa ou demonstrada com um grau de certeza razoável pelas circunstâncias do caso. Ao determinar a existência de acordo, o tribunal deverá respeitar as intenções das partes. É necessário proteger as partes mais vulneráveis, impondo determinadas condições a esta escolha.
Prosseguiremos na próxima coluna.
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1 Transcreva-se o Considerando 37 do Regulamento Europeu das Sucessões (Disponível aqui):
(37) Para que os cidada~os possam beneficiar, com toda a seguranc¸a juri´dica, das vantagens oferecidas pelo mercado interno, o presente regulamento devera´ permitir-lhes co¬nhecer antecipadamente qual sera´ a lei aplica´vel a` sua sucessa~o. Devera~o ser introduzidas normas harmonizadas de conflitos de leis para evitar resultados contradito´rios. A regra principal devera´ assegurar previsibilidade no que se refere a` lei aplica´vel com a qual a sucessa~o apresente uma conexa~o estreita. Por razo~es de seguranc¸a juri´dica e para evitar a fragmentac¸a~o da sucessa~o, essa lei devera´ regular a totalidade da sucessa~o, ou seja, todos os bens da heranc¸a, independentemente da natureza dos bens e in¬dependentemente de estes se encontrarem situados nou¬tro Estado-Membro ou num Estado terceiro.
No mesmo sentido, os arts. 20º, 21º, n. 1, 22º, n. 1, e 23, n. 1, do Regulamento Europeu das Sucessões são incisivos em deixar claro que a lex successionis escolhida nos seus termos disciplinará “toda a sucessão”, ou seja, “o conjunto da sucessão”, ainda que ela não seja a lei aplicável à luz do ordenamento de algum Estado membro. Confira-se (Disponível aqui):
CAPI´TULO III
LEI APLICA´VEL
Artigo 20.º
Aplicac¸a~o universal
E´ aplica´vel a lei designada pelo presente regulamento, mesmo que na~o seja a lei de um Estado-Membro.
Artigo 21.º
Regra geral
1. Salvo disposic¸a~o em contra´rio do presente regulamento, a lei aplica´vel ao conjunto da sucessa~o e´ a lei do Estado onde o falecido tinha reside^ncia habitual no momento do o´bito.
2. Caso, a ti´tulo excecional, resulte claramente do conjunto das circunsta^ncias do caso que, no momento do o´bito, o fale cido tinha uma relac¸a~o manifestamente mais estreita com um Estado diferente do Estado cuja lei seria aplica´vel nos termos do nº 1, e´ aplica´vel a` sucessa~o a lei desse outro Estado.
Artigo 22.º
Escolha da lei
1. Uma pessoa pode escolher como lei para regular toda a sua sucessa~o a lei do Estado de que e´ nacional no momento em que faz a escolha ou no momento do o´bito.
Uma pessoa com nacionalidade mu´ltipla pode escolher a lei de qualquer dos Estados de que e´ nacional no momento em que faz a escolha.
2. A escolha deve ser feita expressamente numa declarac¸a~o que revista a forma de uma disposic¸a~o por morte ou resultar dos termos dessa disposic¸a~o.
3. A validade material do ato pelo qual foi feita a escolha da lei e´ regulada pela lei escolhida.
4. Qualquer alterac¸a~o ou a revogac¸a~o da escolha da lei deve preencher os requisitos formais aplica´veis a` alterac¸a~o ou a` re¬vogac¸a~o de uma disposic¸a~o por morte.
Artigo 23.º
A^mbito da lei aplica´vel
1. A lei designada nos termos do artigo 21.º ou do ar¬tigo 22.º regula toda a sucessa~o.
2. Essa lei rege, nomeadamente:
a) As causas, o momento e o lugar da abertura da sucessa~o;
b) A determinac¸a~o dos beneficia´rios, das respetivas quotas-par¬tes e das obrigac¸o~es que lhes podem ser impostas pelo fale¬cido, bem como a determinac¸a~o dos outros direitos suces¬so´rios, incluindo os direitos sucesso´rios do co^njuge ou parceiro sobrevivo;
c) A capacidade sucesso´ria;
d) A deserdac¸a~o e a incapacidade por indignidade;
e) A transmissa~o dos bens, direitos e obrigac¸o~es que compo~em a heranc¸a aos herdeiros e, consoante o caso, aos legata´rios, incluindo as condic¸o~es e os efeitos da aceitac¸a~o da sucessa~o ou do legado ou do seu repu´dio;
f) Os poderes dos herdeiros, dos executores testamenta´rios e outros administradores da heranc¸a, nomeadamente no que respeita a` venda dos bens e ao pagamento dos credores, sem prejui´zo dos poderes a que se refere o artigo 29.o, n.os 2 e 3;
g) Responsabilidade pelas di´vidas da sucessa~o;
h) A quota disponi´vel da heranc¸a, a legi´tima e outras restric¸o~es a` disposic¸a~o por morte, bem como as pretenso~es que pes¬ soas pro´ximas do falecido possam deduzir contra a heranc¸a ou os herdeiros;
i) A colac¸a~o e a reduc¸a~o das liberalidades, adiantamentos ou legados aquando da determinac¸a~o das quotas dos diferentes beneficia´rios;
j) A partilha da heranc¸a.
2 PATRÃO, Afonso. A “adaptação” dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 92, 2016, p. 124.
3 PATRÃO, Afonso. A “adaptação” dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 92, 2016, pp. 124-125.
4 Santiago Álvarez González (2009, pp. 17-49) tratou do tema antes da superveniência do Regulamento (UE) nº 650/2012 (GONZÁLEZ, Santiago Alvarez. La professio iuris y la sucesión internacional em uma futura reglamentación comunitária. In: Estudios Jurídicos em Memoria del Profesor José Manuel Lete del Rio. Civitas, Thomson Reuter e Cizur Menor, 2009, pp. 17-49)
5 Josep M. Fontanellas Morell (2010 e 2011) faz aprofundada análise dessa figura na sua obra La profesio iuris sucesoria e no artigo La Professio Iuris Sucesoria a las puertas de uma reglamentación comunitária. A expressão professio iuris é utilizada para eleição de leis em outras questões que não sucessórias, como em matéria de casamento (Baarsma, 2011, p. 68). Sobre o assunto, ver: (1) MORELL, Josep María Fontanellas. La professio iuris sucessória. Madrid/Espanha: Marcial Pons, 2010; (2) MORELL, Josep María Fontanellas. La Professio Iuris sucesoriaa las puertas de una reglamentación comunitária. In: Dereito, vol. 20, nº 2, 2011, pp. 83-129 (Disponível aqui); (3) CARRASCOSA GONZÁLEZ, Javier. El Reglamento Sucesorio Europeo 650/2012 de 4 de julio de 2002: análisis crítico. Granada: Comares, 2014; (4) CARAVACA, Alfonso-Luis Calvo. Residência habitual e lei aplicável à sucessão causa mortis internacional. In: Cadernos do Programa de Pós-Graduação em Direito PGGDir.UFGRS. Porto Alegre, volume XI, nº 2, 2016, pp. 4-45; (5) PALAO MORENO, Guillermo. La Importancia de la autonomia de la voluntad conflictual em del derecho internacional privado de la Unión Europea. In: Boletim da Sociedade Brasileira de Direito Internacional, volume 102, nº 125-130, jul./dez. 2017, pp. 77-102.
6 Embora tecnicamente o conceito de professio iuris seja empregada em matéria sucessória por conta de seu contexto histórico medieval, temos por conveniente estender seu conceito para qualquer situação de escolha de leis, como fazem alguns autores (a exemplo de: BAARSMA, N. A. The Europeanisation of International Family Law. Hague/Netherlands: Asser Press; Berlin/Germany: Springer-Verlag, 2011, p. 68).
7 Regulamento CE nº 493/2008, de 17 de junho de 2008.
8 Considerando 11 do Regulamento Roma I.
9 Regulamento CE nº 864/2007, de 11 de julho de 2007.
10 Confira-se o art. 6º do Regulamento Roma I:
Artigo 6º
Contratos celebrados por consumidores
1. Sem prejuízo do disposto nos artigos 5.o e 7.o, os contratos celebrados por uma pessoa singular, para uma finalidade que possa considerar-se estranha à sua actividade comercial ou profissional («o consumidor»), com outra pessoa que aja no quadro das suas actividades comerciais ou profissionais («o profissional»), são regulados pela lei do país em que o consumidor tem a sua residência habitual desde que o profissional:
a) Exerça as suas actividades comerciais ou profissionais no país em que o consumidor tem a sua residência habitual, ou
b) Por qualquer meio, dirija essas actividades para este ou vários países, incluindo aquele país,
e o contrato seja abrangido pelo âmbito dessas actividades.
2. Sem prejuízo do n.o 1, as partes podem escolher a lei aplicável a um contrato que observe os requisitos do n.o 1, nos termos do artigo 3.o. Esta escolha não pode, porém, ter como consequência privar o consumidor da protecção que lhe proporcionam as disposições não derrogáveis por acordo da lei que, na falta de escolha, seria aplicável com base no n.o 1.
3. Caso não sejam cumpridos os requisitos estabelecidos nas alíneas a) ou b) do n.o 1, a lei aplicável ao contrato celebrado entre um consumidor e um profissional é determinada de acordo com os artigos 3.o e 4.o.
4. Os n.os 1 e 2 não são aplicáveis aos contratos seguintes:
a) Contratos de prestação de serviços quando os serviços devam ser prestados ao consumidor exclusivamente num país diferente daquele em que este tem a sua residência habitual;
b) Contratos de transporte diferentes dos contratos relativos a uma viagem organizada na acepção da Directiva 90/314/CEE do Conselho, de 13 de Junho de 1990, relativa às viagens organizadas, férias organizadas e circuitos organizados (15);
c) Contratos que tenham por objecto um direito real sobre um bem imóvel ou o arrendamento de um bem imóvel, diferentes dos contratos que têm por objecto um direito de utilização de bens imóveis a tempo parcial, na acepção da Directiva 94/47/CE;
d) Direitos e obrigações que constituam um instrumento financeiro e direitos e obrigações que constituam os termos e as condições que regulam a emissão ou a oferta ao público e as ofertas públicas de aquisição de valores mobiliários, e a subscrição e o resgate de partes de organismos de investimento colectivo na medida em que estas actividades não constituam a prestação de um serviço financeiro;
e) Contratos celebrados no âmbito do tipo de sistema abrangido pela alínea h) do n.o 1 do artigo 4º
11 Confira-se o Considerando 23 do Regulamento Roma I:
(23) No caso dos contratos celebrados com partes consideradas vulneráveis, é oportuno protegê-las através de normas de conflitos de leis que sejam mais favoráveis aos seus interesses do que as normas gerais.