Na Coluna anterior, lidamos com a jurisprudência comunitária europeia e com o modo de pesquisa a atos e a precedentes da União Europeia.
Prosseguiremos hoje expondo os princípios fundamentais da União Europeia, o que é fundamental para compreendermos o modo como a harmonização jurídica europeia ocorre no direito privado.
1. Principais princípios fundamentais da União Europeia
O direito comunitário é assentado em alguns princípios fundamentais, muito dos quais foram expostos e consolidados pela jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE)1. Destacam-se, entre eles: (1) o princípio do efeito direito do direito comunitário; (2) o princípio do primado do direito comunitário sobre o direito interno; e (3) o princípio da responsabilidade de um Estado membro em relação aos particulares.
O princípio do efeito direto do direito comunitário estabelece que o direito comunitário tem de ser observado pelos Estados membros independentemente de qualquer ato de internalização. Daí decorre que os particulares podem invocar o direito comunitário perante as jurisdições domésticas, seja em demandas contra outros particulares (efeito direto horizontal), seja em demandas contra o próprio Estado membro (efeito direto vertical).
Esse princípio foi introduzido pelo TJUE no acórdão Vand Gend & Loor (1963). Nesse caso concreto, os Países Baixos estavam desrespeitando um Tratado da Comunidade Econômica Europeia (CEE) que proíbe o aumento de cobrança de direitos aduaneiros. O TJUE censurou essa postura neerlandesa, assentando que o referido tratado do direito comunitário tem efeito direto nos Estados membros. Com isso, o TJUE livrou a empresa Van Gend & Loor da cobrança indevida2.
A aplicação do princípio do efeito direito do direito comunitário depende do tipo de ato envolvido. Atos não vinculantes, como os pareceres e as recomendações, não possuem efeito direto.
Regulamentos, por outro lado, possuem efeito direto, pois são vinculantes, conforme art. 288º do TFUE3.
Diretivas, em algumas situações, possuem efeito direto contra o Estado membro (efeito direto vertical) que permaneceu inerte durante o prazo pertinente nas hipóteses em que as disposições da Diretiva eram incondicionais e suficientemente claras e precisas4.
Decisões têm efeito direto nos Estados membros que forem expressamente designados5.
Acordos internacionais, em alguns casos, também tem efeito direto em razão de sua força vinculante6.
O princípio do primado do direito comunitário sobre o direito nacional consiste no fato de as normas domésticas não poderem suplantar as normas comunitárias. Cabe, assim, ao Poder Judiciário doméstico e a todas as demais instâncias domésticas observar plenamente o direito comunitário e deixar de aplicar as normas domésticas contrárias, inclusive as normas constitucionais7.
Esse princípio foi introduzido pelo TJUE em 1964, no acórdão Costa. Nesse julgado, o TJUE analisou uma consulta do Poder Judiciário italiano e estabeleceu que uma lei italiana sobre nacionalização do setor de energia elétrica não poderia prevalecer sobre um tratado da Comunidade Econômica Europeia. Embora não haja nenhum dispositivo específico sobre o referido princípio nos Tratados da UE, trata-se de princípio fundamental reconhecido pelo TJUE.
O princípio da responsabilidade de um Estado membro em relação aos particulares estatui que os particulares têm direito a serem indenizados contra o Estado membro por violação às normas comunitárias. Entre as hipóteses de violação, está a hipótese de omissão do Estado membro em adaptar a legislação interna a uma diretiva da União Europeia, especialmente quando o exercício do direito do particular dependa dessa prévia adaptação. Entendeu a Corte comunitária que, sem esse direito de indenização contra o Estado, a plena eficácia do direito da União seria enfraquecida
Esse princípio foi implantado pelo TJUE em 1991 no acórdão Francovich. No caso concreto, a Itália havia se omitido em transpor, para o direito interno, uma diretiva que protegia trabalhadores no caso de insolvência patronal. Dois obreiros obtiveram, por conta disso, direito a indenização contra o Estado por terem sofrido prejuízos com a insolvência do seu patrão e com a morosidade na regulamentação doméstica da referida diretiva8.
Na próxima coluna, prosseguiremos cuidando do tema.
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1 Ver: (1) Curia, Tribunal de Justiça. Disponível aqui; e (2) Eur-lex, O efeito direto do direito da União Europeia. Publicado em 21 de outubro de 2021 (Disponível aqui.)
2 Para aprofundamento, com menção a outros dois acórdãos do TJUE (o acórdão Becker e o acórdão Kaefer e Procacci contra o Estado francês), ver: Eur-lex, O efeito direto do direito da União Europeia. Publicado em 21 de outubro de 2021 (Disponível aqui).
3 Confira-se:
Artigo 288.o
(ex-artigo 249.o TCE)
Para exercerem as competências da União, as instituições adotam regulamentos, diretivas, decisões, recomendações e pareceres.
O regulamento tem caráter geral. É obrigatório em todos os seus elementos e diretamente aplicável em todos os Estados-Membros.
A diretiva vincula o Estado-Membro destinatário quanto ao resultado a alcançar, deixando, no entanto, às instâncias nacionais a competência quanto à forma e aos meios.
A decisão é obrigatória em todos os seus elementos. Quando designa destinatários, só é obrigatória para estes.
As recomendações e os pareceres não são vinculativos.
4 Eur-lex, O efeito direto do direito da União Europeia. Publicado em 21 de outubro de 2021 (Disponível em aqui).
5 Para aprofundamento (com citação do acórdão Hansa Fleisch contra Landrat des Kreises Schleswig-Flensburg), ver: O efeito direto do direito da União Europeia. Publicado em 21 de outubro de 2021 (Disponível aqui).
6 Eur-lex, O efeito direto do direito da União Europeia. Publicado em 21 de outubro de 2021 (Disponível aqui) (em que se reporta ao acórdão Demirel contra Stadt Schwäbisch Gmünd).