Migalhas de Direito Privado Estrangeiro

Harmonização do Direito Privado Europeu - Parte I (Noções Gerais da União Europeia)

Uma das fontes importantes para estudos de Direito Comparado em Direito Privado é o europeu, seja pela herança de tradição jurídica brasileira, seja pela semelhança de muitos dos problemas sociais contemporâneos a serem enfrentados pelo Direito Privado.

31/1/2023

1. Introdução

Uma das fontes importantes para estudos de Direito Comparado em Direito Privado é o europeu, seja pela herança de tradição jurídica brasileira, seja pela semelhança de muitos dos problemas sociais contemporâneos a serem enfrentados pelo Direito Privado.

Este artigo objetiva expor o cenário de harmonização de Direito Privado Europeu, com foco na experiência ocorrida no âmbito da União Europeia.

Começaremos por expor um breve histórico e a estrutura institucional da União Europeia. a fim de que o leitor conheça as principais formas de produção jurídica do direito comunitário europeu.

Em seguida, trataremos das experiências europeias de harmonização jurídica comunitária no direito privado.

Com essas noções, o leitor terá maior suporte para erguer reflexões úteis para o Direito Privado Brasileiro, conferindo o que de proveitoso podemos importar, respeitando-se, obviamente, as nossas particularidades.

2. Breve histórico da União europeia

A União Europeia é o bloco mais avançado em termos de integração internacional. Com sua estrutura institucional e normativa robusta, caminha para avançar mais a ponto de haver quem atualmente mencione a existência do conceito de cidadania europeia1.

A sua motivação não foi apenas por conveniência econômica. Colaborou também a proximidade dos valores históricos e culturais dos Estados membros, que compartilham de valores de matriz greco-romana, judaico-cristã e iluminista. Contribuiu, igualmente, a busca pela paz, tendo em vista um histórico povoado de conflitos armados entre as nações europeias.

Após a II Guerra, as movimentações destinadas à integração da Europa recrudesceram.

Em 1944, Bélgica, Holanda e Luxemburgo criaram uma zona de livre comércio e de união aduaneira, formando o bloco Benelux2.

Em 1949, foi criado o Conselho da Europa, que atualmente desempenha o papel de promover a democracia e defesa dos direitos humanos3. Não se confunde com a União Europeia. Vários Estados-Membros do Conselho da Europa sequer integram a União Europeia.

Em 1951, foi criada a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA) por meio do Tratado de Paris. Por causa dela, os Estados membros eram obrigados a seguir as decisões da CECA em matéria de produção de carvão e aço. Os Estados membros, portanto, abriram mão de parte de sua soberania em favor dessa instância supranacional, o que representa um dos mais marcantes antecedentes históricos da União Europeia.

Em 1957, foi criada a Comunidade Econômica Europeia (CEE) por meio do Tratado de Roma4 (que era conhecido pela sigla TCE em alusão ao seu epíteto Tratado da Comunidade Europeia), destinada a viabilizar a formação de uma nova etapa de integração regional: a do mercado comum. No mesmo ano, também foi criada a Comunidade Europeia de Energia Atômica (CEEA ou EURATOM), destinada ao uso pacífico da energia nuclear, especialmente para alcançar uma independência energética. A EURATOM segue vigente e não se confunde com a União Europeia.

Foi da CEE que veio a nascer a União Europeia, que representa uma etapa mais avançada de integração regional: união econômica e monetária.

A União Europeia, inicialmente, foi fruto do Tratado da União Europeia, também conhecido como Tratado de Maastrich ou pela sigla TUE (1992). Esse tratado foi posteriormente alterado pelo Tratado de Amsterdam (1997) e pelo Tratado de Nice (2001) até vir a sofrer uma grande reforma com Tratado de Lisboa (2009).

Atualmente, as bases normativas da União Europeia foram decisivamente alcançadas pelo Tratado de Lisboa5 (2009), que é conhecido como o Tratado de Reformador. Ele alterou o TUE (o Tratado de Maastrich) e o Tratado de Roma (o Tratado que instituiu a Comunidade Europeia). Este último, inclusive, recebeu um novo nome de batismo: Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE).

Portanto, o TFUE (antigo Tratado de Roma) e o TUE, com as alterações feitas pelo Tratado de Lisboa, são as principais bases normativas da União Europeia. São o Direito da União6. São “os Tratados”, nas palavras do item 2 do art. 1º do TFUE7.

O TFUE e o TUE não podem ser considerados uma Constituição, porque a União Europeia não é um Estado soberano. Ela é uma organização intergovernamental representantiva de uma forma avançada de integração regional. Todavia, “os Tratados” dão a estrutura e os fundamentos da União Europeia, assemelhando-se, ainda que parcialmente, a uma Constituição.

Essas normas são utilizadas, entre outros fins, para guiar decisões em processos julgados pelo Tribunal de Justiça da União Europeia.

A União Europeia abrange 27 Estados membros. O mapa abaixo dá uma visão geográfica dos Estados membros da União Europeia, com a ressalva de que a Islândia (Ireland) suspendeu, por tempo indeterminado, seu pedido de adesão ao bloco e, portanto, não é um membro atual8:


3. Estrutura Institucional

A União Europeia é formada por 8 principais órgãos9:

a) Parlamento Europeu – PE;

b) Conselho Europeu10;

c) Conselho da União Europeia (ou simplesmente Conselho);

d) Tribunal de Justiça da União Europeia;

e) Comissão Europeia11 (ou simplesmente Comissão);

f) Tribunal de Justiça da União Europeia (ou simplesmente Tribunal de Justiça);

g) Banco Central Europeu – BCE12;

h) Tribunal de Contas Europeu (ou simplesmente Tribunal de Contas)13;

Além desses órgãos, há outros, como o Comitê Econômico e Social (CESE)14 e o Comitê das Regiões, os quais auxiliam os trabalhos do Parlamento Europeu, do Conselho e da Comissão.

Para nosso estudo, importa-nos mais os órgãos incumbidos da produção de normas e precedentes em matéria de direito privado, a saber: o Conselho da União Europeia, o Parlamento Europeu e o Tribunal de Justiça da União Europeia.

Continuaremos a tratar do tema na próxima coluna. Até lá!

__________

1 PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves. Direito Internacional Público e Privado: Incluindo Noções de Diretios Humanos e de Direito Comunitário. Salvador: JusPodivm, 2021, p. 1322.

2 O nome do bloco decorre das iniciais dos nomes dos países integrados: BElgique, NEderland e LUXembourg.

3 Site do Conselho da Europa.

4 Esse tratado foi posteriormente rebatizado como Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE).

5 TRATADO DE LISBOA. Publicação: 17 de dezembro de 2007 (Disponível aqui).

6 Há quem também inclua o Tratado que instituiu a Comunidade Europeia da Energia Atômica (CEEA). Deixamos, porém, de problematizar o tema por conta de sua falta de pertinência com o objeto do nosso estudo, que é o direito privado.

7 Art. 1º do TFUE:

Artigo 1.º

  1. O presente Tratado organiza o funcionamento da União e determina os domínios, a delimitação e as regras de exercício das suas competências.
  2. 2. O presente Tratado e o Tratado da União Europeia constituem os Tratados em que se funda a União. Estes dois Tratados, que têm o mesmo valor jurídico, são designados pelos termos "os Tratados".

8 CERKESAS, Evaldas. Cross Border Cases Under European Small Claim Procedure And European Order For Payment. Publicado em 24 de outubro de 2021 (Disponível aqui). Sobre o perfil dos países integrantes da União Europeia, ver seu site oficial. 

9 Artigos 223º ao 287º do TFUE e art. 13 do TUE.

10 O Conselho Europeu não é instituição legislativa, ao contrário do Conselho da União Europeia. Cabe-lhe definir orientações e prioridades da União Europeia. É composto pelos chefes de Estado ou de Governo dos Estados membros, além do presidente do Conselho Europeu e do presidente da Comissão Europeia. Site oficial do Conselho Europeu. 

11 A Comissão Europeia é órgão executivo da União Europeia e toma decisões sobre o rumo político. Ela tem o monopólio para a iniciativa normativa. Site oficial.

12 O BCE cuida da política monetária da União Europeia.

13 O Tribunal de Contas fiscaliza as finanças da União Europeia.

14 O CESE, além emitir relatórios e pareceres, organiza eventos anuais para participação da sociedade civil.

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Colunista

Carlos E. Elias de Oliveira é membro da Comissão de Reforma do Código Civil (Senado Federal, 2023/2024). Pós-Doutorando em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP). Doutor, mestre e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). 1º lugar em Direito no vestibular 1º/2002 da UnB. Ex-advogado da AGU. Ex-assessor de ministro STJ. Professor de Direito Civil e de Direito Notarial e Registral. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Processo Civil e Direito Agrário (único aprovado no concurso de 2012). Advogado, parecerista e árbitro. Instagram: @profcarloselias e @direitoprivadoestrangeiro.