A chegada do fim de 2024 traz consigo uma reflexão: O que fizemos do Direito Médico neste ano?
Como alguém que começou na área em 2011 como estagiário no CRMPB, tenho visto uma nova fase do Direito Médico e não considero que essa nova fase seja qualitativamente produtiva. No início, tínhamos como mentores os livros-manuais de Miguel Kfouri Neto, Genival Veloso, Eduardo Dantas/Marcos Coltri, Heloísa Helena Barboza e livros da área de autores como Fernanda Schaefer, Luciana Dadalto, Maria Fátima Freire de Sá/Bruno Naves. Na atualidade, surgem especialistas de todos os cantos e formas. Em tempos de vidas aceleradas, os profissionais recém egressos no mercado buscam “fast-formation” com “fast-mentores” com pouca ou nenhuma experiência comprovada. Acontece que os “antigos” mestres são ainda necessários e atuais.
A grande verdade é que o Direito Médico não é a mina de ouro. Não será através do Direito Médico que o profissional dará uma virada de 180º na sua vida e passará a cobrar honorários de seis dígitos de forma repentina. Não que os honorários de seis dígitos não sejam possíveis, mas sua construção não é uma corrida de 100 metros rasos, mas uma longa e sofrida prova de IronMan. A grande realidade é que o perfil exigido do profissional contemporâneo requer base normativa, técnica médica e jurídica muito grande e verticalizada. O tão sonhado oceano azul, na verdade, é um mar tormentoso, inquieto e que sobrepuja os aventureiros.
Se, no passado, o Direito Médico era encarado pelo grande público como um subproduto das grandes áreas como Penal e Civil, hoje é um campo de atuação própria, digno de constar expressamente nas “tabelas mínimas de honorários” das seccionais da OAB, como já acontece nos Estados de Rondônia, Sergipe e Pernambuco.
Ocorre que mesmo dentro dessa nova área, novas subáreas têm surgido. Atualmente temos empresarial médico, civil médico, penal médico, tributário médico, administrativo médico, processo sancionador ético médico.
O atual campo de expertise no Direito Médico exige, da mesma forma que a medicina, um maior aprofundamento e densidade téorico-prática. Se o CFM e os CRMs valorizam o RQE - Registro de Qualificação de Especialista e os próprios médicos, ainda que não formalmente especialistas, tendem a verticalizar sua atuação em razão do volume do conhecimento médico, de igual forma, os juristas precisam verticalizar conhecimento. Alguns tribunais, a exemplo do TJ/PR, possuem câmaras próprias destinadas à discussão da responsabilidade civil, por exemplo, razão pela qual essa prática facilita o debate jurídico, pois desembargadores e integrantes do MP terão uma maior relação com a matéria tratada. Para os profissionais da advocacia, o aprofundamento teórico-prático se releva ainda mais fundamental em razão das inúmeras particularidades do Direito Médico para o campo correlato mais amplo.
Ocorre que no campo da docência e da advocacia, temos vivido um "efeito Dunning-Kruger" constante, ou seja, pessoas com um viés cognitivo que superestimam suas proprias habilidades de atuação. Profissionais sem nenhum preparo passam a escrever, atuar e defender interesses dos clientes sem perceber o vazio cognitivo que os ocupa.
O cliente, por outro lado, vive um mar de assimetria informacional. Primeiro por desconhecer as particularidades do mundo jurídico e, em um segundo momento, por não conseguir fazer uma escolha racional de um bom profissional, posto que há flagrante seleção adversa - fenômeno tratado na economia em que um dos agentes, em razão da insuficiência e má percepção das informações, acaba tomando decisões erradas.
Como bem destaca Warren Buffet, “são necessários 20 anos para construir uma reputação e apenas 5 minutos para destruí-la”. Logo, contratar o profissional errado pode gerar cenários catastróficos.
Precisamos questionar: Como é possível explicar a discussão sobre obrigação de meio e resultado médica, resultado adverso, iatrogenia, princípio da confiança, erro honesto, responsabilidade objetiva mitigada, negligência informacional e tantos outros conceitos próprios do Direito Médico sem que haja uma preparação técnico-teórica adequada?
A maior complexidade médico-jurídica exige que os caminhos inicialmente desbravados por aqueles citados no início do texto sejam percorridos e avançados, pois a medicina está em contínua evolução.1
Se, no passado, o médico podia se dar ao “luxo” de não informar o paciente e exercer uma Medicina paternalista, essa realidade não mais subsiste. Se no passado era possível verificar condenações em valores módicos, hoje as condenações por erro médico podem ultrapassar, com facilidade, os sete dígitos.
Observa-se que no ano de 2024 vimos uma possível mudança de entendimento do STJ sobre responsabilidade das unidades hospitalares por atos de médicos não subordinados e também por responsabilidade dentro da equipe. Paralelamente, houve um avanço na definição dos critérios de responsabilidade em caso de negligência informacional para procedimentos eletivos.
Nesse cenário, o Poder Judiciário precisa trazer segurança jurídica e balizar:
- Os parâmetros exigidos para consentimento;
- O que seria imperícia, imprudência e negligência;
- Critérios de responsabilidade e solidariedade entre equipe;
- Consolidar os parâmetros de responsabilidade das unidades por atos de profissionais não prepostos;
- Definir o critério de responsabilidade hospitalar para casos de infecção hospitalar;
- Definir o critério de responsabilização hospitalar para casos de erro em decorrência de exame laboratorial/diagnóstico.
Ocorre que todas essas discussões precisam ser conduzidas não por um modelo fast, mas por um modelo técnico e sério que considere todos os impactos e desafios que circundam o ato médico. Faço votos de que não sejamos conquistados pelo canto da sereia e que seja possível fazer um debate qualificado. Paralelamente, considerando que todos somos potenciais pacientes e seremos impactados pelas decisões judiciais relativas aos critérios apontados, que o STJ promova uma abordagem democrática com a inclusão de amicus curiae para qualificação do debate.
1 DENSEN, Peter. Challenges and opportunities facing medical education. Transactions of the American Clinical and Climatological Association, v. 122, p. 48, 2011.