Migalhas de Direito Médico e Bioética

A superação do Tema 106 do STJ pelo Tema 6 do STF: Overruling na concessão de medicamentos não incorporados pelo SUS

Fábio Fresca analisa o julgamento do Tema 6 pelo STF, que redefiniu critérios para medicamentos não incorporados ao SUS, reforçando a relevância dos precedentes.

16/12/2024

No julgamento do RE - Recurso Extraordinário 566471/RN1, que resultou no Tema 6, ligado à judicialização da saúde, o STF ampliou os critérios para o fornecimento judicial de medicamentos não incorporados ao SUS, independentemente do custo, com repercussão geral. Até então, os juízes se orientavam pelos critérios cumulativos firmados no Tema 1063 do STJ.

No sistema de precedentes brasileiro, o Tema 6 do STF causará grande impacto nos processos em andamento e futuros, pois o CPC exige que os tribunais mantenham a jurisprudência estável e coerente, e que os juízes e os tribunais, por sua vez, observem os precedentes (art. 927 do CPC).

Neste contexto, a técnica da superação (overruling) é essencial para a observância dos precedentes, e o Tema 6 do STF representa uma mudança significativa em relação ao Tema 106 do STJ, quanto à obrigatoriedade do fornecimento de medicamentos não incorporados pelo SUS.

Os arts. 926 e 927 do CPC reforçam a necessidade de uniformidade e estabilidade na jurisprudência, vinculando todos os juízes e tribunais às teses definidas pelos tribunais de vértice, sob pena de nulidade da decisão judicial, nos termos do art. 489, § 1º, incisos V e VI, e art. 927, inc. III, § 1º, ambos do CPC.

A doutrina aponta que o sistema de precedentes do CPC brasileiro difere dos países de common law3. No common law, os julgamentos são proferidos no âmbito de stare decisis, aplicando raciocínios idênticos a casos semelhantes4 5. Nos países anglo-americanos, o precedente é a razão necessária e suficiente para um resultado jurídico, mesmo que a potencialidade de generalidade ou replicabilidade seja pequena ou nula6. No Brasil, a vinculação dos juízes às teses fixadas pelos tribunais superiores, está ligada, essencialmente, ao viés gerencialista, que busca solucionar a crescente judicialização em diversos assuntos. 

O julgamento do RE - Recurso Extraordinário 566471/RN, que estabeleceu o Tema 6 do STF, busca uniformizar a interpretação de questões constitucionais relevantes, definindo parâmetros para o deferimento judicial de medicamentos não incorporados ao SUS.

Como mencionado, o overruling permite ajustar ou substituir os precedentes, conforme novas leis, mudanças sociais ou econômicas, ou novos entendimentos. 

Um exemplo clássico de overruling é o caso Brow v. Board of Education (1954), que revogou o precedente estabelecido em Plessy v. Ferguson (1896) nos EUA7. No Brasil, o julgamento do HC 82.959-SP pelo STF8 mudou o entendimento sobre a progressão de regime para condenados por crimes hediondos.

O art. 927, §4º do CPC prevê a revisão de precedentes para preservar a segurança jurídica, a proteção da confiança e a isonomia.  

Na doutrina, a superação é necessária para adaptar o direito às mudanças9, corrigir erros passados10, ou atualizar os precedentes às demandas da sociedade11. A doutrina reconhece que tanto o Tribunal que criou o precedente12 quanto o Tribunal de hierarquia superior pode superá-lo13.

Portanto, a superação de precedentes vinculantes é vital para a flexibilidade e evolução do sistema jurídico brasileiro, permitindo ajustes nos julgamentos, em face da crescente judicialização da saúde.

Entre 2021 e 2022, houve o aumento de 19% de processos sobre saúde14, com o crescimento de 198% na primeira instância em nove anos, enquanto os processos gerais caíram 6%. Na segunda instância, os processos de saúde subiram 85%, enquanto os gerais reduziram 32%. Em 30/4/24, 62% dos processos de saúde envolviam entes públicos, enquanto 38% as empresas de saúde suplementar15. No TJ/SP, em 2023, foram distribuídos 121.203 novos processos, um aumento de 23% em relação ao ano anterior16.

Os assuntos mais judicializados entre 2020 e 2022 incluíram fornecimento de medicamentos, tratamento médico-hospitalar, reajuste contratual e leitos hospitalares. Desde a criação do e-NATJUS em 2018, os dez medicamentos mais solicitados foram: Tetraidrocanabinol+canabidiol; Dupilumabe; Canabidiol; Esilato de nintedanibe; Rivaroxabana; Pembrolizumabe; Aripiprazol; Dapagliflozina; Cloridrato de duloxetina; Insulina glargina. 

Embora o Tema 106 do STJ tenha contribuído para maior clareza e uniformidade às decisões judiciais, o volume de ações judiciais de saúde não foi reduzido substancialmente. 

A judicialização da saúde é um dos maiores problemas do Poder Judicial, segundo o presidente do STF17, cujo Tema 6 procura definir se o Estado é obrigado a fornecer um medicamento não listado pelo SUS para pacientes sem condições de pagar.  

Assim, para avaliar se Tema 106 do STJ foi superado pelo Tema 6 do STF, aplicando o overruling, é preciso entender as diferenças entre os dois Temas e como a superação de precedentes funciona. 

O Tema 106 do STJ exige três requisitos cumulativos: (a) comprovação médica da necessidade do medicamento e ineficácia dos fármacos fornecidos pelo SUS; (b) comprovação da incapacidade financeira da pessoa de arcar com o custo do medicamento; (c) registro na Anvisa.

O Tema 6 do STF, por sua vez, estabelece os seguintes parâmetros cumulativos: (a) negativa administrativa de fornecimento do medicamento (item 4 do Tema 1.234); (b) ilegalidade do ato de não incorporação do medicamento pela Conitec; (c) impossibilidade de substituição por outro medicamento constante das listas do SUS; (d) comprovação científica da eficácia e segurança do fármaco, respaldada por evidências científicas de alto nível; (e) imprescindibilidade clínica do tratamento; (f) comprovação da incapacidade financeira de arcar com o custo do medicamento.

Em termos comparativos, os requisitos do Tema 6 do STF são mais rigorosos e complexos, pois incluem, por exemplo, a negativa administrativa e a comprovação científica de alto nível, o que não era explicitamente requerido no Tema 106 do STJ. A única semelhança entre os temas é exigência de comprovação da incapacidade financeira do paciente.

Com base nas diferenças e na técnica do overruling, podemos inferir que o Tema 6 do STF, não apenas complementa, mas também amplia significativamente os requisitos estabelecidos pelo Tema 106 do STJ, estabelecendo um novo padrão mais rigoroso e detalhado para a concessão de medicamentos fora da lista do SUS.

Considerando os dados extraídos do Painel de Estatísticas Processuais de Direito da Saúde do CNJ, e do relatório da saúde, publicado em 2019, podemos antever alguns possíveis impactos significativos do Tema 6 do STF, tanto nas demandas em andamento, como nos futuros casos futuros: 1) a inclusão de requisitos como a negativa administrativa e a comprovação científica de alto nível tornarão o processo judicial mais complexo e exigente, dificultando o acesso de pacientes sem recursos ou conhecimento jurídico insuficiente; 2) a complexidade destas ações poderá criar desigualdades no acesso à saúde, favorecendo os grandes litigantes habituais18, neste caso, os entes públicos federativos; 3) pacientes, com menos recursos, estarão excluídos dos juizados especiais à luz dos arts. 3º e 35 da lei 9.099/95, caso seja indispensável a produção pericial de grande complexidade, além do impeditivo do valor da causa (art. 3º, inc. I da lei 9.099/95 e art. 2º da lei 12.153/09), caso observado o limite do tratamento anual, previsto no Tema 1234 do STF.

Os novos requisitos do Tema 6 do STF podem contribuir para a sustentabilidade financeira do SUS, ajudando a controlar melhor a alocação de recursos e evitando que as decisões judiciais desestabilizem a gestão financeira do SUS, ao beneficiar uma minoria em alocações de tratamento de alto custo. 

Entretanto, a necessidade de atender a esses parâmetros mais rigorosos pode aumentar o tempo de tramitação das ações judiciais, exigindo maior análise e fundamentação dos juízes, tais como o exame das recomendações da Conitec e da comprovação científica do fármaco, respaldado por evidências científicas de alto nível, como ensaios clínicos randomizados e revisão sistemática ou meta-análise.

Antes, as decisões concessivas de medicamentos se baseavam, principalmente, em relatórios médicos ou prescrições. Em São Paulo, apenas 72 das mais de 80 mil decisões fazem referência à Conitec19.

O Tema 6 do STF estabelece a deferência do Poder Judiciário às recomendações da Conitec, não podendo ser rediscutida em ações individuais, o que pressionar por políticas de saúde mais bem estruturadas e transparentes, reduzindo a necessidade de judicialização.

Em resumo, os novos parâmetros do Tema 6 são muito mais rigorosos e detalhados, tornando a concessão judicial de medicamentos não incorporados às listas do SUS uma medida excepcional20.

_________

1 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Informação à sociedade. RE 566.471 (Tema 6). Critérios para fornecimento de medicamentos fora da lista oficial do SUS. Brasília, DF:  Supremo Tribunal Federal. Disponível aqui. Acesso em 19.10.2024.

2 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Precedentes Qualificados. Brasília, DF:  Superior Tribunal de Justiça. Disponível aqui. Acesso em 8.8.2024.

3 MITIDIERO, Daniel Francisco. Op. Cit., 2017.

4 MANCUSO, Rodolgo de Camargo. Sistema brasileiro de precedentes. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2014.

5 ARENHART, Sérgio Cruz; PEREIRA, Paula Pessoa. Precedentes e casos repetitivos: por que não se pode confundir precedentes com as técnicas do CPC para solução da litigância de massa? São Paulo, Revista dos Tribunais, 2019.

6 ARENHART, Sérgio Cruz; PEREIRA, Op. Cit., 2019.

7 USA. U.S. Supreme Court. Brown v. Board of Education of  Topeka, 343, U.S. 294 (1955). Disponível aqui. Acesso em 19.10.2024.

8 BRASIL. STF. HC 82.959-SP. Brasília, DF: Supremo Tribunal Federal, 23/02/2006. Disponível aqui. Acesso em 20.10.2024.

9 DIDIER JR, Fredie et al. Curso de Direito Processual Civil: teoria da prova, direito probatório, decisão, precedente, coisa julgada e tutela provisória. Salvador: Ed. JusPodivm, 2015.

10 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Precedentes e evolução do direito. Direito Jurisprudencial. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 11-95, 2012.

11 ARENHART, Sérgio Cruz et al, Op. Cit., 2019.

12 MACEDO, Lucas Buril de. Precedentes judiciais e o direito processual civil. Salvador: Ed. JusPodivm, 2015.

13 CRAMER, Ronaldo. Precedentes judiciais: teoria e dinâmica. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2016.

14 BRASIL. APM. Infográfico apresenta panoramas da Judicialização da Saúde e da Medicina no Brasil. Disponível aqui. Acesso em 8.8.2024.

15 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Justiça em números. Painel Sistema e-NATJUS, Núcleo Técnico do Poder Judiciário. Brasília, DF:  CNJ. Disponível aqui. Acesso em 30.4.2024.

16 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Op. cit., 30.4.2024. 

17 BRASIL. STF celebra conclusão de julgamento sobre fornecimento de medicamentos de alto custo. Brasília, DF:  CNJ. Disponível aqui. Acesso em 19.10.2024.

18 GALANTER, Marc. Por que" quem tem" sai na frente: especulações sobre os limites da transformação no direito. São Paulo, FGV Direito, 2018.

19 Cf. BRASIL, CNJ. Judicialização da Saúde no Brasil: perfil das demandas, causas, e propostas de solução. Disponível aqui.

20 Para acessar o texto do artigo completo do autor: Disponível aqui.

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Fernanda Schaefer tem pós-Doutorado no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC/PR, bolsista CAPES. Doutorado em Direito das Relações Sociais na UFPR, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha) como bolsista CAPES. Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC/PR. Assessora Jurídica CAOP Saúde MP/PR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Miguel Kfouri Neto é desembargador do TJ/PR. Pós-doutor em Ciências Jurídico-Civis junto à Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Doutor em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP. Mestre em Direito das Relações Sociais pela UEL. Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Maringá. Licenciado em Letras-Português pela PUC/PR. Professor-Doutor integrante do Corpo Docente Permanente do Programa de Doutorado e Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA). Coordenador do grupo de pesquisas "Direito da Saúde e Empresas Médicas" (UNICURITIBA). Membro da Comissão de Direito Médico do Conselho Federal de Medicina.

Rafaella Nogaroli é assessora de desembargador no TJ/PR. Mestre em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Especialista em Direito Aplicado, Direito Processual Civil e Direito Médico. Supervisora acadêmica do curso de especialização em direito médico e bioética da EBRADI. Coordenadora do grupo de pesquisas "Direito da Saúde e Empresas Médicas" (UNICURITIBA), ao lado do prof. Miguel Kfouri Neto. Diretora adjunta e membro do IBERC.

Wendell Lopes Barbosa de Souza é juiz de Direito do TJ/SP desde 2003 e Membro Titular da COMESP (Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do TJ/SP). Pós-doutor e professor da temática "Feminicídio" na pós em "Direitos Humanos, Saúde e Justiça" pelo POSCOHR, sediado na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. Especialista em Direito Penal pela Escola Paulista da Magistratura. Mestre e doutor em Direito Civil Comparado pela PUC/SP. Pesquisa e Curso de Introdução ao Direito Americano na Fordham University – NY/EUA. Professor em diversas instituições. Autor de livro e publicações. MBA Executivo em Gestão da Saúde pela FGV.