Migalhas de Direito Médico e Bioética

Resolução CFM nº 2.386/2024: Conflitos de interesses entre médicos e as indústrias da saúde

A resolução CFM 2.386/24 busca regulamentar a transparência entre médicos e setor de saúde, promovendo ética e confiança nas relações médico-paciente.

11/11/2024

No livro "Nação Tarja Preta"1, a psiquiatra norte-americana Anna Lembke, expõe de forma incisiva como a relação entre médicos e a indústria farmacêutica pode levar a consequências devastadoras para pacientes e para a prática médica, como um todo. A autora, que é professora em Stanford, descreve como a influência das grandes indústrias farmacêuticas pode resultar em prescrições excessivas e inadequadas, contribuindo diretamente para crises de saúde pública, como a devastadora epidemia de opioides existente nos EUA2.

No caso específico dos opioides, Lembke detalha como, em poucos anos, foi moldado um ambiente no qual o médico passou a ser refém de um sistema que ela denomina como “enlouquecido” e em que aqueles profissionais que se opunham à prescrição excessiva de opioides passaram a ser estigmatizados. Essa situação evidencia o risco envolvido quando há conflito de interesse na atuação médica e demonstra uma tendência global de regulamentação na área da saúde.

Os EUA promulgaram a lei de abrangência federal denominada Physician Payments Sunshine Act3 em 2010, mas o Brasil ainda discute o assunto, com alguns projetos de lei tramitando há anos4, sem previsão de quando ocorrerá a deliberação definitiva. O único Estado brasileiro que regulamenta o assunto é Minas Gerais, por meio da lei Estadual 22.440/16.

Nesse contexto e exercendo suas prerrogativas, o Conselho Federal de Medicina se antecipou à lei federal, publicando, em setembro de 2024 a Resolução CFM 2.386/24 (com vigência em março de 2025), para normatizar os vínculos entre médicos e indústrias (farmacêuticas de insumos de saúde e equipamentos médicos) bem como para trazer maior transparência e fortalecer a confiança nas relações médico-paciente, evitando que os interesses financeiros se sobreponham à qualidade do cuidado prestado.

1. Obrigação de Informar Vínculos com Indústrias (Art. 2º):

Uma das principais exigências da resolução é a obrigação do médico de informar quaisquer vínculos com indústrias farmacêuticas, de insumos da área da saúde e equipamentos médicos, bem como com empresas intermediadoras da venda desses produtos. A comunicação deve ser feita no ‘CRM-Virtual’ do Conselho Regional de Medicina no qual o médico possui inscrição ativa.

A resolução detalha que o médico deve informar o nome das empresas com as quais mantém vínculo e comunicar ao Conselho quando a relação se encerrar, sendo o prazo da obrigação de 60 dias contados do recebimento do benefício.

Apesar de existir menção à ‘remuneração’ e a ‘benefício’, não há uma delimitação das situações que podem ser consideradas como geradoras do vínculo ou do conflito de interesse, fato que pode gerar interpretações dissonantes ou conflituosas. Na prática, seria importante para o médico compreender, por exemplo, se um almoço patrocinado por um laboratório deverá ser informado, sendo desejável que o CFM se manifeste nesse sentido.

2. Definição do Vínculo e Situações Abrangidas (Art. 3º)

Conforme delimitado no art. 3º do referido ato normativo, o vínculo se caracteriza por um contrato formal ou prestação ocasional para desenvolver atividades ligadas à indústria, divulgar produtos ou para proferir palestras.

Devem informar o vínculo, portanto, todo médico que firma contrato para desenvolver ‘ocupação ligada às empresas da indústria farmacêutica’. Porém, não ficou claro se a obrigação se estende aos profissionais empregados naquelas empresas, mediante contrato de trabalho sem tempo determinado.

Abrange essa obrigação de informar, a participação de médicos em pesquisas e desenvolvimento de produtos e a condição de membro de comissões técnicas, como a Conitec -Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde e de outros conselhos deliberativos da ANS - Agência Nacional de Saúde Suplementar ou Anvisa  -Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Demonstra-se, nesse art. 3º, a significativa preocupação com a possibilidade de influência e interferência de profissionais que atuam perante órgãos públicos, na definição de políticas que repercutam no dispêndio de altas somas de dinheiro público.

3. Proibição de Recebimento de Benefícios em relação a divulgação de produtos sem registro na Anvisa (Art. 4º e 5º)

A norma proíbe o recebimento de quaisquer benefícios relacionados a medicamentos, órteses, próteses, materiais especiais e equipamentos hospitalares que não tenham registro na Anvisa. Essa disposição busca impedir a promoção de técnicas ou procedimentos ainda não validados ou sem a adequada comprovação científica.

A exceção existe para os casos de protocolos de pesquisa aprovados por comitês de ética em pesquisa, quando, ainda em fase de testes, dependem da participação dos médicos, que podem ser remunerados pelos patrocinadores. Importante, portanto, que tais relações estejam bem amparadas por contratos específicos, evitando questionamentos ou penalidades.

4. Declaração de Conflitos de Interesse em Exposições Públicas (Art. 6º)

Assim como havia sido definido no art. 10, da resolução CFM 2.336/23, que trata da propaganda e publicidade médicas, a recente norma reitera a obrigação do médico em declarar seus conflitos de interesse em entrevistas, debates, palestras e quaisquer eventos. Apesar de a resolução anterior ter previsto o disclosure apenas em ‘eventos para o público leigo’, esta ampliou a abrangência e incluiu os ‘eventos médicos’.

Tal disposição, conforme bem ponderaram os Dantas e Coltri, decorre da necessidade de “equilibrar a liberdade de expressão e a promoção de serviços médicos com a garantia de que tais práticas não comprometam a confiança pública na profissão médica”5 . Sendo assim, não há vedação da prática de tais atos, apenas pretende-se garantir que potenciais interesses sejam evidenciados.

5. Exceções à Regra (Art. 7º)

Não obriga à a notificação por parte do médico o recebimento de amostras grátis de medicamentos, assim classificadas pela legislação específica6, o que é razoável e evita a necessidade de um controle demorado e custoso para o profissional. Ademais, já existe regulação sobre a forma como as amostras podem ser distribuídas, cabendo à farmacêutica tal gestão.

Também foram excluídos da obrigação, informar os rendimentos decorrentes de investimentos, como ações e/ou cotas de participação em empresas do setor de saúde. Neste caso, apesar de a resolução evitar a exposição de rendimentos decorrentes do trabalho – na maioria das vezes, por questões fiscais, as remunerações pela prestação do serviço médico são contabilizadas em sociedade constituída com este propósito7 – essa exceção pode, em alguns casos, desviar a norma de seu objetivo de promover a transparência.

Não é raro um médico administrar ou investir diretamente nas centenas de startups voltadas à área da saúde – healthtechs - e o fazem com o objetivo de obter a valorização do patrimônio das sociedades investidas8. Vislumbra-se, portanto, um potencial conflito de interesses, que, se ocultado, pode prejudicar a confiança no profissional.

A terceira exceção ocorre nos benefícios recebidos por ‘sociedades científicas’ ou ‘entidades médicas’ de forma genérica, inexistindo uma especificação dos propósitos ou do tipo jurídico de tais instituições.

Considerações finais

Apesar de não ter força de lei9, a resolução CFM 2.386/24 representa um avanço significativo na regulação das interações entre médicos e a indústria da saúde, ao colocar luz sobre eventuais conflitos de interesse que possam influenciar a prescrição ou a aquisição pelo poder público de medicamentos e outros produtos médicos.

Ressalta-se que ela não pretende proibir a relação de médicos com as empresas da saúde, sendo livre e até benéfica a associação e contratação entre as partes, para que exista diálogo, troca de conhecimento e a difusão de novas terapêuticas ou tecnologias, diante da constante evolução da medicina.

O que se pretende evitar são situações, como a que se deflagrou nos Estados Unidos, em que o médico perde sua autonomia diante de uma imposição perversa de atores com grande poder de influência, desvirtuando os propósitos da Medicina e o comprometimento ético do médico.

Para o médico, o cumprimento dessas normas reitera seu compromisso com a prática ética e fortalece a confiança do paciente, fundamentais para a preservação da integridade da profissão e a manutenção de um ambiente seguro e responsável.

________

1 LAMBKE, Anna. Nação Tarja Preta: o que há por tras da conduta dos médicos, da dependência dos pacientes e da atuação da indústria farmacêutica. São Paulo: Vestígio, 2024. 208 p.

2 Disponível aqui. Acesso em 25.09.24.

3 Section 6002, da Public Law 111-148, de 23 de março de 2010, essa legislação se tornou um marco na transparência das relações entre médicos e a indústria, servindo como referência para normas similares ao redor do mundo.

4 Tramita na Câmara o PL 7.990/2017, no qual estão apensados os demais: PL 11.050/18, PL 11.177/18, PL 204/19 e PL 1.041/24. Disponível aqui. Acesso em 24/09/24.

5 DANTAS, Eduardo; COLTRI, Marcos. Comentários ao Código de Ética Médica. 5. ed. São Paulo: Juspodivm, 2024. 672 p. P. 490.

6 A RDC 60/2009, da ANVISA, dispõe sobre a produção, dispensação e controle de amostras grátis de medicamentos e dá outras providências.

7 Nesse sentido: COSTA, Vivian Carla da. Sociedade simples de médicos e a contribuição previdenciária patronal. 2024. Disponível aqui. Acesso em: 28 set. 2024.

8 Neste sentido: MÉDICA, Afya Educação. Conheça 10 médicos empreendedores de sucesso. 2024. Disponível aqui. Acesso em: 27 set. 2024. SAÚDE, Futuro da. Número de rodadas de investimentos em healthtechs se mantém, mas valores são menores ano a ano. 2024. Disponível aqui. Acesso em: 27 set. 2024.

9 As resoluções do Conselho Federal de Medicina vinculam eticamente todos os médicos enquanto exercendo sua profissão, em todas os campos possíveis, nos termos do Código de Ética Médica (Resolução CFM 2.217/10). O descumprimento pode repercutir em penalidades, aplicadas conforme a gravidade da infração.   

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Colunistas

Fernanda Schaefer tem pós-Doutorado no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC/PR, bolsista CAPES. Doutorado em Direito das Relações Sociais na UFPR, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha) como bolsista CAPES. Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC/PR. Assessora Jurídica CAOP Saúde MP/PR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Miguel Kfouri Neto é desembargador do TJ/PR. Pós-doutor em Ciências Jurídico-Civis junto à Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Doutor em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP. Mestre em Direito das Relações Sociais pela UEL. Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Maringá. Licenciado em Letras-Português pela PUC/PR. Professor-Doutor integrante do Corpo Docente Permanente do Programa de Doutorado e Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA). Coordenador do grupo de pesquisas "Direito da Saúde e Empresas Médicas" (UNICURITIBA). Membro da Comissão de Direito Médico do Conselho Federal de Medicina.

Rafaella Nogaroli é assessora de desembargador no TJ/PR. Mestre em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Especialista em Direito Aplicado, Direito Processual Civil e Direito Médico. Supervisora acadêmica do curso de especialização em direito médico e bioética da EBRADI. Coordenadora do grupo de pesquisas "Direito da Saúde e Empresas Médicas" (UNICURITIBA), ao lado do prof. Miguel Kfouri Neto. Diretora adjunta e membro do IBERC.

Wendell Lopes Barbosa de Souza é juiz de Direito do TJ/SP desde 2003 e Membro Titular da COMESP (Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do TJ/SP). Pós-doutor e professor da temática "Feminicídio" na pós em "Direitos Humanos, Saúde e Justiça" pelo POSCOHR, sediado na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. Especialista em Direito Penal pela Escola Paulista da Magistratura. Mestre e doutor em Direito Civil Comparado pela PUC/SP. Pesquisa e Curso de Introdução ao Direito Americano na Fordham University – NY/EUA. Professor em diversas instituições. Autor de livro e publicações. MBA Executivo em Gestão da Saúde pela FGV.