Uma sociedade simples de serviços médicos, quando diante de lucro, deve distribuí-lo aos sócios. Ademais, também pode haver a remuneração, por meio do pro labore, àqueles que exercem a administração da sociedade. Pode o fisco, diante disso, exigir contribuição previdenciária referente à totalidade do valor distribuído aos sócios administradores? E quanto à distribuição aos não sócios, caso não seja equitativa, pode cobrá-la por, supostamente, indicar vínculo trabalhista?
Para construir tais respostas, de início, podemos entender que a contribuição social para a seguridade cobrada do empregador ou das empresas de modo geral “[...] são impostos pelos fatos geradores e bases de cálculo, mas finalísticos pela vinculação da arrecadação [...]”1. Assim, por um lado, a contribuição previdenciária patronal é, de fato, imposto finalístico, mas, por outro, é tributo não vinculado, quando pode muito bem ser compreendido a partir da clássica fórmula carvalhiana “verbo e complemento”2.
Com efeito, a contribuição previdenciária patronal tem como critério material da hipótese “[...] pagar ou creditar salários e demais rendimentos do trabalho a empregado ou prestador de serviço [...]”3. Tudo, aliás, nos termos do art. 195, I, “a”, daCF/88. De toda sorte, na apresentação do critério material da contribuição previdenciária patronal, não parece haver disputa quanto aos verbos “pagar” ou “creditar”. O mesmo não ocorre, porém, com seu complemento, uma vez que o termo “salário” não é de fácil precisão.
Nesse sentido, uma ideia simples é que o significado da palavra “salário” deveria ser buscado em outras áreas que não a tributária, mais especificamente na área trabalhista, à qual estaria o legislador ordinário atado ao instituir essa contribuição. Todavia, visando a evitar tais discussões é que adveio a EC 20, de 1998, ampliando a competência tributária4 e estabelecendo que outros rendimentos do trabalho, além do salário, podem ser tributados, incluindo, assim, os “pagamentos de autônomos e administradores”. Com tal arranjo, portanto, diluíram-se as dúvidas, ao menos as mais consistentes, sobre se pagamentos a sócios em razão da administração da empresa poderiam ser eleitos como hipótese da contribuição previdenciária patronal, uma vez que pro labore significa “salário dos proprietários da empresa, provenientes de seus serviços prestados”5-6.
Agora, se o pro labore está ao alcance da contribuição previdenciária patronal, pois abrangido pelo conceito de demais rendimentos do trabalho, o mesmo não pode ser dito da distribuição de lucro, uma vez que, com efeito, decorre do capital e não do trabalho: por um lado, o lucro é produto do capital; por outro, a remuneração por exercer a função de administrador é produto do trabalho. Nessa linha, quando se trata de contribuição previdenciária patronal, o que se deve ter em conta não é o fato de ser sócio ou acionista, mas sim exercer ou não sua administração7.
Não precisamos discorrer, neste artigo, sobre o autônomo na contribuição previdenciária, figura na qual se compreende o profissional liberal, podendo focar-nos na sociedade simples, que não deve ser confundida com seus sócios. Com efeito, as sociedades são constituídas por contrato, sendo seu traço marcante a busca pelo lucro, e podem ser, no mais, classificadas em razão de sua atividade ou objeto, o que as faz simples ou empresárias. Por essa divisão, a sociedade empresária tem como escopo a atividade própria do empresário, por sua vez, a sociedade simples, também denominada de sociedade civil, “[...] deve ficar reservada às atividades típicas de profissões liberais ou prestadores de serviços técnicos [...]”8.
Nessa linha, médicos podem tornar-se sócios e formar sociedade com fito de prestar serviço de medicina9. Agora, se o objeto contratual é a prestação de serviços médicos, ao menos dois pontos precisam ser especificados, quais sejam, quem será o administrador dessa sociedade e qual a forma de distribuição dos resultados, tudo por meio do contrato social, o qual, entre outras funções, prevê a atividade econômica e a partilha de resultados.
Por um lado, o administrador da empresa deve receber pro labore, pagamento que está sujeito à contribuição previdenciária patronal, por outro, os sócios da empresa devem receber, em razão dessa condição, distribuição de lucros, a qual não se subsome, contudo, à contribuição em questão.
Em linhas gerais, o lucro é distribuído de forma proporcional ao capital social, mas, frisa-se, essa é a regra e nada impede que os sócios deliberem diferentemente. De certo, temos que a distribuição de lucros não precisa ser exatamente igual ao percentual das cotas de cada sócio, estabelecido contratualmente, e pode ser feita, havendo deliberação e concordância, em patamares diversos10.
Se há lucro, pode ele ser distribuído, mesmo que de modo desproporcional ao contrato social, desde que haja manifestação prévia dos sócios e até o limite de sua apuração, mas não há de se falar que tal distribuição configuraria uma espécie de pagamento por demais rendimentos do trabalho, uma vez que continua a ser remuneração do capital. Para tanto, receber lucro apurado em percentual diferente das cotas societárias — quer a maior, quer a menor — é situação permitida, chegando mesmo a ser comezinha e, portanto, não pode embasar qualquer exigência de contribuição previdenciária patronal.
Ademais, não há que se confundir a distribuição de lucros, que pode ser desproporcional à participação societária, com a remuneração para a administração da sociedade, uma vez que ambas têm, conceitualmente, naturezas distintas. Em um caso, o pagamento decorre do capital, em outro, do trabalho, sendo causa de invalidade de uma autuação não considerar essa distinção. Entretanto, cabe à empresa, ao realizar os lançamentos contábeis, demarcar isso para que não haja dúvidas sobre o que foi pago e a que título, o que se configura dever de cautela.
Sem dúvidas, os profissionais liberais, médicos no caso deste artigo, se presente affectio societatis, podem compor uma sociedade simples, não existindo qualquer impedimento a que o administrador dessa sociedade receba pro labore, muito menos que, havendo lucros, sejam eles distribuídos de forma desproporcional. Tais fatos estão plenamente de acordo com o Direito, sendo permitidos, portanto, e não podem ser tomados mesmo como indícios de irregulares, uma vez que chegam a ser ordinários.
Outra coisa seria a simulação11, que mereceria, evidentemente, reprovação. Assim, não se olvida que sempre há a possibilidade, principalmente em uma sociedade simples, de que haja, em vez de sócios, deveras, uma relação de subordinação entre os administradores e os outros sócios, que só ostentariam tal posição em aparência. Ou seja, não se pode descartar a priori a simulação. Contudo, haja vista a gravidade que tem tal afirmação, repercutindo, inclusive, em outras searas, como a penal, então “[...] as regras partem do pressuposto de que aquele que diz algo encontra-se (sic) preparado a provar o que diz [...]”12.
Portanto, se há empresa constituída por meio de contrato social, não se pode conjecturar, simplesmente, que se trata de simulação e determinar ao sujeito passivo que prove o contrário, depois, imaginando que ele não conseguiu isso fazer adequadamente, lavrar auto de infração exigindo tributo, no caso, a contribuição previdenciária patronal, como se a distribuição de lucros fosse, de fato, outros rendimentos do trabalho. Isso porque o ônus da prova cabe à fiscalização. Na verdade, pelo vínculo que a questão tem com o princípio da legalidade e da tipicidade, chega-se mesmo a afirmar que o ônus da prova é uma verdadeira obrigação da administração no caso da exigência de tributo.
Assim, em síntese, não se olvida que a questão societária é provada com o contrato social devidamente registrado e, nessa linha, não se pode, sem outras bases, simplesmente alegar que isso não seria prova suficiente. Ademais, não é o caso de fechar-se, totalmente, as portas ao uso de indícios pelo fisco, mas se deve ter em conta que algo só poderá exercer essa função se houver alguma relação entre o que se percebe e o que se alega como ilícito. Todavia, possuir em uma sociedade sócios-administradores e também sócios que não são administradores, bem como praticar uma distribuição de lucros desproporcional às cotas de cada um, não é indício de nada, uma vez que são atividades lícitas e comuns em todos os tipos de sociedade — o que inclui, por óbvio, a simples.
Por fim, mesmo que se reconheça alguma inconsistência na contabilidade empresarial, isso não é causa para desconsiderá-la in totum, o que somente pode ser realizado em situações extremas, pois, com efeito, o que sempre deve imperar é a proporcionalidade e a razoabilidade. Assim, se for clara o suficiente para que se distinga, especialmente em relação aos sócios-administradores, os recursos que lhe foram transferidos em razão da distribuição de lucros e aqueles que lhe foram a título de pro labore, então não poderá a fiscalização meramente desconsiderar tal condição e exigir, sobre todo o montante, contribuição previdenciária patronal.
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1 Sacha Calmon Navarro Coêlho, Contribuições no direito brasileiro: seus problemas e soluções. São Paulo: Quartier Latin, 2007. p. 94.
2 Depois de apontar o “critério material” como núcleo do tributo, ensina-nos Paulo de Barros Carvalho que “[...] será formado, invariavelmente, por um verbo seguido de seu complemento”. CARVALHO, Paulo de Barros. Teoria da norma tributária. 5.ed. São Paulo: Quartier Latin, 2009, p. 126.
3 Paulo de Barros Carvalho, Tributação sobre “vendas diretas” pelo INSS, in ______, Derivação e positivação no direito tributário, v. 1. São Paulo: Noeses, 2011, p. 93-116.
4 Sobre a norma de competência tributária, leia-se: Valterlei da Costa, Teoria trilógica do tributo: um estudo normativo sobre tributação, competência e lançamento. São Paulo: Noeses, 2024. p. 238 e seguintes.
5 Sérgio de Iudícibus e José Carlos Marion, Dicionário de termos de contabilidade. Colaboração de: Elias Pereira e Valmor Slomski. São Paulo: Atlas, 2001. Verbete “pró-labore”, p. 160.
6 Lei nº 8.212/90, com redação dada pela Lei nº 9.876/99: “Art. 22. A contribuição a cargo da empresa, destinada à Seguridade Social, além do disposto no art. 23, é de: [...] III - vinte por cento sobre o total das remunerações pagas ou creditadas a qualquer título, no decorrer do mês, aos segurados contribuintes individuais que lhe prestem serviços; [...]”.
7 “Administrador, nas sociedades por ações, é o diretor ou membro de Conselho de Administração. Nos demais tipos de sociedade, são considerados administradores os que praticam atos de gestão da sociedade com poderes oriundos do contrato social e que são aptos a obrigar a pessoa jurídica”. Edmar Andrade Filho, Imposto de renda das empresas. 10.ed. São Paulo: Atlas, 2013. p. 402.
9 Sílvio Venosa, Direito civil: contratos em espécie; v. III. 16.ed. São Paulo: Atlas, 2016. p. 644.
9 Maria Helena Diniz dá-nos como exemplo de sociedade simples: “[...] uma sociedade formada por um grupo de médicos, apoiados por enfermeiros, atendentes, nutricionistas etc., para o exercício de atividade profissional científica, tendo por objeto social a prestação do serviço de medicina [...]”. Curso de direito civil brasileiro: teoria geral do direito civil, v. 1. 28.ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 293.
10 “No caso de sociedade simples ou limitada, a lei autoriza cláusula de distribuição de lucro não proporcional ao capital para qualquer atividade. Se todos os sócios forem pessoas físicas, a distribuição desproporcional ao capital, mesmo sem cláusula contratual, não há infração tributária federal”. Hiromi Higuchi, Imposto de renda das empresas: interpretação e prática. 34. ed. São Paulo: IR Publicações, 2014. p. 529.
11 “Conduta consubstanciada em dar roupagem de verdade a uma situação inexiste [...]”. Eduardo Jardim, Dicionário jurídico tributário: verbete “simulação”. 6.ed. São Paulo: Dialética, 2008. p. 296.
12 Marcio Pestana, A prova no processo administrativo tributário: a teoria da comunicação. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007. p. 114.