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FIES para médicos: Abatimentos e suspensão no pagamento

A aprovação no vestibular de Medicina em instituições privadas no Brasil gera entusiasmo e preocupação com as mensalidades, que variam entre R$ 5.000,00 e R$ 14.500,00. O FIES ajuda financiando os custos, principalmente para alunos de baixa renda, com pagamentos após a conclusão do curso.

2/9/2024

Ao passar em um vestibular de Medicina em uma Instituição de Ensino Superior Privada, muitos alunos e familiares contemplam sentimentos paradoxais: o entusiasmo pela aprovação e a angústia de como pagarão as mensalidades do curso.

No Brasil, as mensalidades do curso de Medicina variam de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) a mais de R$ 14.500,00 (quatorze mil e quinhentos reais)1. Como alternativa para aqueles que não foram aprovados em Universidades Federais ou Estaduais e não possuem capacidade econômica para arcar sozinhos com o custo do curso, o Fundo de Financiamento Estudantil (FIES) entra em cena, oferecendo uma oportunidade valiosa para aliviar essa carga.

O FIES é uma política pública conduzida pelo Ministério da Educação e chancelada pela Lei nº 10.260/2001, com o objetivo de financiar a formação de alunos no ensino superior em instituições privadas. É um importante instrumento de democratização do acesso à educação superior, possibilitando que jovens talentos ingressem na faculdade de Medicina e realizem seus sonhos profissionais. O programa beneficia prioritariamente estudantes de baixa renda, oferecendo taxas de juros e encargos mais baixos do que o mercado2. Além disso, os estudantes pagam as mensalidades financiadas somente após a conclusão do curso.

Neste cenário, o Ministério da Educação (MEC) divulgou o ranking dos cursos mais demandados no Fies 2023, com a Medicina liderando como a graduação com o maior número de alunos solicitando financiamentos, totalizando 104.136 inscritos3. Embora o FIES tenha sido instituído para ampliar as chances de alunos de baixa renda, ele pode também resultar em endividamento significativo para os recém-formados. Atualmente, existem mais de 1,2 milhões de estudantes e profissionais inadimplentes com o financiamento4.

O Brasil conta com mais de 575 mil médicos5, um número que continua a crescer, em razão da existência de 3896 escolas médicas. Há, ainda, 294 pedidos para abertura de novas escolas de Medicina em andamento no Ministério da Educação (MEC)7. Contudo, muitos desses médicos ainda desconhecem os benefícios assegurados em lei para aqueles que se dedicaram à nobre missão de exercer a Medicina e aliviar sua dívida.

O primeiro benefício diz respeito ao abatimento do saldo devedor do FIES para os médicos que atuam ou atuaram pelo SUS em regime de Estratégia Saúde da Família (ESF), por no mínimo 12 meses, bem como, enquanto o profissional estiver vinculado a uma unidade ESF haverá ainda o direito na suspensão no pagamento das parcelas mensais do FIES. Ou seja, o direito consiste no abatimento do saldo devedor consolidado do FIES relativo a 1,00% (um inteiro por cento) por mês trabalhado, conforme disposto no artigo 6º, inciso II, da Lei nº 12.202/2010, e também na suspensão do pagamento das parcelas enquanto permanecer vinculado na unidade ESF.

O segundo e mais recente benefício é o abatimento para os profissionais da área da saúde que laboraram durante a pandemia da COVID-19 pelo SUS. Isso porque, em 2020, com o advento da pandemia, a Lei nº 14.024/2020 alterou diversos dispositivos da Lei n° 10.260/2001 (Lei do FIES), incluindo a benesse do abatimento mensal de 1% por mês trabalhado do saldo devedor do financiamento, também para os profissionais da área da saúde que trabalharam no âmbito do Sistema Único de Saúde, por no mínimo 6 meses, durante o período da pandemia da Covid-19.

O último benefício é exclusivo para médicos residentes e tem previsão no art. 6°-B, inciso II, §3° da Lei 12.202/2010, que concede o direito à carência estendida do FIES, ou seja, de retomar o pagamento das mensalidades do financiamento após a conclusão da residência médica.

Desta forma, o médico poderá solicitar a carência estendida até o final da residência médica, desde que: I) seja graduado em curso de Medicina que tenha avaliação positiva perante o Ministério da Educação (conceito maior ou igual a três); II) o médico residente esteja credenciado pela Comissão Nacional de Residência Médica com matrícula ativa no Programa de Residência Médica e instituição a que esteja vinculado, III) a especialidade cursada esteja dentro das 19 especialidades prioritárias para o SUS, conforme o Anexo II, da Portaria conjunta SGTES/SAS Nº 3, de 19 de fevereiro de 2013 do Ministério da Saúde.

Além disso, há uma discussão sobre a necessidade de o médico estar em fase de carência para que tenha direito a este benefício, porém, os Tribunais Federais Brasileiros8 vêm entendendo que independente da fase contratual em que se encontra o médico, o direito à extensão da carência do FIES está resguardada por lei.

Todavia, a concessão dos benefícios de abatimento previstos na legislação para médicos é um direito que, muitas vezes, é negado administrativamente. Seja por omissão na análise dos pedidos ou por negativas indevidas, razão pela qual muitos profissionais se veem obrigados a buscar o Poder Judiciário para assegurar seus direitos. Esses obstáculos administrativos não só causam frustração, mas também prolongam sua carga financeira e emocional.

Ao recorrer ao Judiciário, os médicos não estão apenas reivindicando seus direitos, mas também buscando uma solução justa e eficaz para um problema que deveria ser resolvido administrativamente.

No que concerne aos benefícios concedidos para os médicos residentes, o Judiciário tem reconhecido que possuem direito à extensão do período de carência do FIES durante a Residência Médica, mas apesar das previsões legais, a Portaria Normativa MEC nº 7/2013 tenta impedir a extensão da carência se o contrato do FIES já estiver na fase de amortização.

Nesse sentido, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região – TRF1ª, tem permitido a extensão da carência se os requisitos legais forem cumpridos9. Também há posicionamento pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região – TRF4ª no sentido de que a Residência Médica em especialidades consideradas prioritárias pelo Ministério da Saúde, tais como: Clínica Médica, Cirurgia Geral, Ginecologia, Pediatria, Neonatologia, Medicina Intensiva, Medicina de Família e Comunidade, Medicina de Urgência, Psiquiatria, Anestesiologia, Nefrologia, Neurocirurgia, Ortopedia e Traumatologia, Cirurgia do Trauma, Cancerologia Clínica, Cancerologia Cirúrgica, Cancerologia Pediátrica, Radiologia e Diagnóstico por Imagem e Radioterapia, conferem ao residente o direito de extensão da carência do FIES10.

Quanto ao benefício concedido aos médicos que atuam na estratégia saúde da família, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região – TRF1ª tem proferido acórdãos no sentido de que os médicos que trabalham em Equipes de Saúde da Família em áreas prioritárias têm direito ao abatimento de 1% do saldo devedor do FIES, incluindo os juros devidos no período, independentemente da data de contratação do financiamento, conforme o art. 6º-B da Lei 10.260/200111. Para tanto, o médico deve comprovar que está trabalhando em áreas com carência de profissionais de saúde, definidas como prioritárias pelo Ministério da Saúde12, conforme Portaria Conjunta nº. 2, de 25 de agosto de 2011.

Para profissionais que trabalhem no SUS durante a vigência da emergência sanitária da Covid-19, sabe-se que a Portaria que regulamenta o benefício de Abatimento Covid ainda não foi publicada pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação - FNDE/MEC. Razão pela qual, a análise dos requerimentos não tem sido realizada de forma administrativa, pois o entendimento do FNDE é de que “a contagem é dentro do período de vigência da emergência sanitária decorrente da pandemia da Covid-19, conforme o Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, e que o período de vigência deste Decreto é de 20 de março de 2020 até 31 de dezembro de 2020”13.

Entretanto, o Judiciário posiciona-se de forma diversa, entende que a ausência de regulamentação específica não pode impedir os beneficiários de usufruir do direito ao abatimento concedido na legislação. Mesmo sem a regulamentação formal, a falta de regras não deve causar prejuízo financeiro aos beneficiários do FIES que atuaram durante a pandemia.

No que se refere ao período de vigência do abatimento, o Judiciário tem realizado uma interpretação mais ampla ao reconhecer que a emergência sanitária foi definida pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, entretanto, foi encerrada pela Portaria GM/MS nº 913/2022 em 22 de abril de 2022, de modo que, deve ser levado em consideração todo o período de atuação dos profissionais durante a emergência sanitária para calcular o abatimento14. O que significa que o tempo de trabalho durante a pandemia estende o benefício proporcionalmente15.

Diante de tudo que foi explicitado, é importante ressaltar que o Fundo de Financiamento Estudantil (FIES) oferece um suporte crucial para estudantes de Medicina, possibilitando que muitos realizem seus sonhos de cursar o ensino superior. No entanto, os desafios administrativos e as lacunas na regulamentação específica, especialmente em períodos de crise como a pandemia de COVID-19, por vezes complicam o acesso aos benefícios previstos.

As decisões judiciais desempenham um papel fundamental em garantir que os direitos desses profissionais sejam respeitados, reconhecendo a extensão dos períodos de carência e abatimento mesmo na ausência de regulamentação formal. Assim, a busca pela justiça se mostra essencial para que médicos e até mesmo outros profissionais de saúde possam usufruir plenamente dos benefícios do FIES, mitigando o impacto financeiro e emocional de suas dívidas estudantis enquanto continuam a desempenhar suas funções essenciais para a sociedade. 

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1 Disponível aqui. Acesso em: 25 jun. 2024.

2 Disponível aqui. Acesso em:  29 jun. 2024.

3 Disponível aqui. Acesso em: 25 jun. 2024.

4 Disponível aqui. Acesso em: 25 jun. 2024.

5 Disponível aqui. Acesso em 28 jun. 2024

6 Disponível aqui. Acesso em 28 jun. 2024

7 Disponível aqui. Acesso em 10 jul. 2024.

8 TRF-1 - REOMS: 10043816420224013600, Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL JAMIL ROSA DE JESUS OLIVEIRA, Data de Julgamento: 17/04/2023, 6ª Turma, Data de Publicação: PJe 19/04/2023.

9 TRF-4 - APL: 50092256620224047201 SC, Relator: VÂNIA HACK DE ALMEIDA, Data de Julgamento: 07/03/2023, TERCEIRA TURMA.

10 TRF-1 - AC: 10347959520204013800, Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL CARLOS AUGUSTO PIRES BRANDÃO, Data de Julgamento: 31/08/2022, 5ª Turma, Data de Publicação: PJe 31/08/2022.

11 TRF-1 - AC: 10286418120214013200, Relator: DESEMBARGADORA FEDERAL DANIELE MARANHÃO COSTA, Data de Julgamento: 12/04/2023, 5ª Turma, Data de Publicação: PJe 19/04/2023.

12 FIESMED. Abatimento – Carência estendida. Disponível aqui. Acesso em 11 jul 2024.

13 TRF-3 - AI: 50205702820224030000 SP, Relator: RENATA ANDRADE LOTUFO, Data de Julgamento: 10/08/2023, 2ª Turma, Data de Publicação: DJEN DATA: 16/08/2023.

14 TRF-3 - AI: 50205702820224030000 SP, Relator: RENATA ANDRADE LOTUFO, Data de Julgamento: 10/08/2023, 2ª Turma, Data de Publicação: DJEN DATA: 16/08/2023.

15 TRF-3 - AI: 50205702820224030000 SP, Relator: RENATA ANDRADE LOTUFO, Data de Julgamento: 10/08/2023, 2ª Turma, Data de Publicação: DJEN DATA: 16/08/2023.

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AGÊNCIA GOV. Renegociação do Fies para até 1,2 milhão de pessoas tem início nesta terça (7). Disponível aqui. Acesso em 16 jul. 2024.

BRASIL. Tribunal Regional Federal da 1ª Região. TRF-1 - REOMS: 10043816420224013600, Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL JAMIL ROSA DE JESUS OLIVEIRA, Data de Julgamento: 17/04/2023, 6ª Turma, Data de Publicação: PJe 19/04/2023.

BRASIL. Tribunal Regional Federal da 1ª Região. TRF-1 - AC: 10347959520204013800, Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL CARLOS AUGUSTO PIRES BRANDÃO, Data de Julgamento: 31/08/2022, 5ª Turma, Data de Publicação: PJe 31/08/2022.

BRASIL. Tribunal Regional Federal da 1ª Região. TRF-1 - AC: 10286418120214013200, Relator: DESEMBARGADORA FEDERAL DANIELE MARANHÃO COSTA, Data de Julgamento: 12/04/2023, 5ª Turma, Data de Publicação: PJe 19/04/2023.

BRASIL. Tribunal Regional Federal da 3ª Região. TRF-3 - AI: 50205702820224030000 SP, Relator: RENATA ANDRADE LOTUFO, Data de Julgamento: 10/08/2023, 2ª Turma, Data de Publicação: DJEN DATA: 16/08/2023.

BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. TRF-4 - APL: 50092256620224047201 SC, Relator: VÂNIA HACK DE ALMEIDA, Data de Julgamento: 07/03/2023, TERCEIRA TURMA.

CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Aumento recorde no total de médicos no País pode ser cenário de risco para a assistência, avalia Conselho Federal de Medicina. Disponível aqui. Acesso em 16 jul. 2024.

CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Demografia Médica. Disponível aqui. Acesso em 16 jul. 2024.

EDUCA MAIS BRASIL. Saiba quais são os cursos mais procurados no Fies 2023.1. Disponível aqui. Acesso em 25 jun. 2024.

ESCOLAS MÉDICAS DO BRASIL. Valores das mensalidades dos cursos de medicina. Disponível aqui. Acesso em 25 jun. 2024.

FIESMED. Abatimento – Carência estendida. Disponível aqui. Acesso em 11 jul. 2024.

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. FIES. Disponível aqui. Acesso em 29 jun. 2024.

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Fernanda Schaefer tem pós-Doutorado no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC/PR, bolsista CAPES. Doutorado em Direito das Relações Sociais na UFPR, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha) como bolsista CAPES. Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC/PR. Assessora Jurídica CAOP Saúde MP/PR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Miguel Kfouri Neto é desembargador do TJ/PR. Pós-doutor em Ciências Jurídico-Civis junto à Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Doutor em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP. Mestre em Direito das Relações Sociais pela UEL. Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Maringá. Licenciado em Letras-Português pela PUC/PR. Professor-Doutor integrante do Corpo Docente Permanente do Programa de Doutorado e Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA). Coordenador do grupo de pesquisas "Direito da Saúde e Empresas Médicas" (UNICURITIBA). Membro da Comissão de Direito Médico do Conselho Federal de Medicina.

Rafaella Nogaroli é assessora de desembargador no TJ/PR. Mestre em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Especialista em Direito Aplicado, Direito Processual Civil e Direito Médico. Supervisora acadêmica do curso de especialização em direito médico e bioética da EBRADI. Coordenadora do grupo de pesquisas "Direito da Saúde e Empresas Médicas" (UNICURITIBA), ao lado do prof. Miguel Kfouri Neto. Diretora adjunta e membro do IBERC.

Wendell Lopes Barbosa de Souza é juiz de Direito do TJ/SP desde 2003 e Membro Titular da COMESP (Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do TJ/SP). Pós-doutor e professor da temática "Feminicídio" na pós em "Direitos Humanos, Saúde e Justiça" pelo POSCOHR, sediado na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. Especialista em Direito Penal pela Escola Paulista da Magistratura. Mestre e doutor em Direito Civil Comparado pela PUC/SP. Pesquisa e Curso de Introdução ao Direito Americano na Fordham University – NY/EUA. Professor em diversas instituições. Autor de livro e publicações. MBA Executivo em Gestão da Saúde pela FGV.