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Desvendando o encerramento do contrato de plano de saúde – cenário atual e mudanças recentes da regulamentação

As normas aplicáveis ao encerramento do plano de saúde, nas diferentes modalidades de contratação e as mudanças previstas até o final de 2024.

13/8/2024

A proposta do presente texto é esclarecer os pontos mais relevantes sobre o fim do contrato de plano de saúde, seja coletivo ou individual, por iniciativa da operadora de planos de saúde ou do beneficiário e as mudanças da regulamentação da ANS - Agência Nacional de Saúde Suplementar aplicáveis para esse cenário.

Por isso, diante da complexidade do mercado de planos de saúde, relevante abordar as nuances do encerramento da relação contratual considerando a modalidade do plano de saúde contratado e quem toma a iniciativa do pedido do encerramento do contrato.

Iniciativa da Operadora

Analisando as hipóteses de encerramento do plano de saúde, há uma variação relevante conforme a modalidade de contratação: Individual/familiar, coletivo empresarial ou por adesão.

Os contratos individuais e familiares são aqueles aquele que oferecem cobertura da atenção prestada para a livre adesão de beneficiários, pessoas naturais, com ou sem o grupo familiar.

Tais contratos poderão ser encerrados por iniciativa da operadora nos casos de fraude ou inadimplência do beneficiário, nos termos da lei de planos de saúde, lei 9.656/98, em seu artigo 13, parágrafo único, inciso II.

Art. 13. (...) Parágrafo único.  Os produtos de que trata o caput, contratados individualmente, terão vigência mínima de um ano, sendo vedadas: (...)

II - a suspensão ou a rescisão unilateral do contrato, salvo por fraude ou não-pagamento da mensalidade por período superior a sessenta dias, consecutivos ou não, nos últimos doze meses de vigência do contrato, desde que o consumidor seja comprovadamente notificado até o quinquagésimo dia de inadimplência; e

A fraude, no sentido jurídico civilista, é uma ação contrária àquilo que é verdade, honesto e correto. Para Silvio de Salvo Venosa1 “A fraude é o mais grave ato ilícito, destruidor das relações sociais, responsável por danos de vulto e, na maioria das vezes, de difícil reparação. É um vício de muitas faces, presente em inúmeras situações da vida cotidiana do homem e no Direito. Já para Maria Helena Diniz2constitui fraude contra credores a prática maliciosa, pelo devedor, de atos que desfalcam o seu patrimônio, com o escopo de colocá-lo a salvo de uma execução por dívidas em detrimento dos direitos creditórios alheios”.

É indispensável dizer que os pressupostos exigidos para a fraude, encontram respaldo no dolo, na coação e na simulação. Preleciona Greco3, “o agente atua com dolo, quando quer diretamente o resultado ou assume o risco de produzi-lo”. Desta forma, a simulação também se configura dentro da conduta fraudulenta, em que tenta se mascar a verdade dos fatos, e o agente assume o risco de causar danos com sua conduta.

A fraude viola frontalmente a boa-fé nas relações contratuais. A professora Thathyana Weinfurter Assad exprime bem a necessidade de preservação da confiança no convívio social4:

A confiança que um ser humano deposita no outro é algo precioso para que se possa conviver em sociedade. Se todos desconfiassem de todos, o caos social estaria estabelecido. Imagine, por um momento, o que ocorreria caso os motoristas resolvessem frear diante de sinais verdes, na desconfiança que os que estão cruzando, no sinal vermelho, estariam “furando” o semáforo. Imagine se cada um desconfiasse, sempre, que um documento de identidade, uma Carteira Nacional de Habilitação, um contrato, fossem falsos. Ou, pior, imagine se todos resolvessem começar a usar documentos falsos, de uma só vez. O bem jurídico “fé pública” é, portanto, relevante”.

No Direito Penal brasileiro, o conceito de fraude fica mais evidente no art. 171: “Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento”.

Sobre o tema, recomendamos a leitura do material produzido pelo IESS - Instituto de Estudos de Saúde Suplementar sobre fraudes e desperdícios em Saúde Suplementar.5 Nesse estudo são demonstrados os exemplos mais corriqueiros de fraudes no setor, como ocultação de condição pré-existente, falsificação de informações/documentos; empréstimo de cartão de usuário para terceiros, fornecimento de dados de acesso para terceiros, pedido de reembolso duplicado, atendimento falso, entre outros.

Assim, configurada a fraude, a operadora está autorizada a rescindir unilateralmente o contrato de plano de saúde individual/familiar.

A outra hipótese de rescisão do contrato individual por iniciativa da operadora se dá no caso de inadimplência do beneficiário, quando deixa de quitar pontualmente as contraprestações mensais do plano de saúde individual contratado. O próprio art. 13 da lei de planos de saúde traz as regras para a rescisão nessas hipóteses, quais sejam: (a) inadimplência superior a sessenta dias, consecutivos ou não, nos últimos doze meses de vigência do contrato; e (b) notificação do beneficiário até o quinquagésimo dia da inadimplência. Note-se que, pela letra da lei, um atraso de 5 dias no pagamento da mensalidade todos os meses autoriza que ao final do período de 12 meses a operadora encerre o contrato unilateralmente por inadimplência, pois o período de inadimplência poderá ser não consecutivo.

Um dos grandes temas em debate é a forma de notificação de inadimplência, que gera um atrito entre beneficiários e operadoras.

A ANS normatizou a notificação por inadimplência por meio da súmula 28 e do entendimento DIFIS 13. A súmula trazia regras específicas sobre o conteúdo da notificação e a ciência do beneficiário. Por sua vez, o entendimento DIFIS trata das regras para utilização de ferramenta eletrônica de comunicação como forma de comprovação da notificação por inadimplemento, destacando as regras de ciência do beneficiário sobre o conteúdo da notificação.

A partir de setembro de 2024, as regras da RN 593/23 entrarão nesse sistema, com novas formas de notificação da inadimplência. Falaremos ao final especificamente sobre a resolução que vai trazer novas nuances ao instituto do cancelamento por inadimplência – e não somente para os contratos individuais.

Ainda sobre o encerramento da relação contratual por iniciativa da operadora, passemos a abordar os contratos coletivos. Os contratos coletivos poderão ser empresariais ou por adesão.

O contrato coletivo empresarial oferece cobertura da atenção prestada à população delimitada e vinculada à pessoa jurídica por relação empregatícia ou estatutária, ou seja, a caracterização da modalidade se dá pelo tipo de vínculo entre o beneficiário e a pessoa jurídica contratante do plano de saúde.

Por sua vez, os contratos coletivos por adesão oferecem cobertura da atenção prestada à população que mantenha vínculo com pessoas jurídicas de caráter profissional, classista ou setorial. Diferentemente dos planos empresariais, os planos coletivos por adesão se caracteriza pelo tipo da pessoa jurídica contratante, pois somente aquelas definidas no artigo 156 da RN 557/23 estão autorizadas a contratar plano em tal modalidade, ou como se define na norma, são pessoas jurídica legitimadas.

Vale aqui diferenciar os institutos da elegibilidade e da legitimidade na contratação de planos coletivos. A legitimidade trata da regularidade da pessoa jurídica contratante, ou seja, quando a pessoa jurídica está apta a contratar o plano de saúde, preenchendo todos os requisitos para a modalidade eleita. Já a elegibilidade foca no beneficiário, quando são preenchidos todos os requisitos para aquele beneficiário se vincular ao plano coletivo oferecido pela pessoa jurídica contratante.

Feitas tais considerações, para os contratos coletivos, as operadoras poderão encerrar o plano de saúde em relação à pessoa jurídica contratante e em relação ao beneficiário

Em relação à pessoa jurídica contratante, a rescisão poderá ser motivada e imotivada. Em ambos os casos, deverá estar prevista no contrato firmado com a operadora. Em razão da anulação do parágrafo único do art. 17 da RN 195/09 pela Ação Civil Pública 0136265-83.2013.4.02.51.01 movida pelo Procon/RJ em face da ANS, foi afastada a vedação de cobrança de multa rescisória antes da vigência inicial do contrato. A redação atual determina que vale a previsão contratual e, havendo previsão de multa a qualquer tempo, ela poderá ser cobrada.

Outro motivo para a rescisão por iniciativa da operadora é a ilegitimidade, quando a pessoa jurídica não cumpre os requisitos para contratar plano coletivo. Tanto operadora como administradora de benefícios têm dever de conferência da legitimidade das pessoas jurídicas contratantes. Identificada tal irregularidade, a operadora tem autorização para encerrar o contrato de planos de saúde coletivo.

A operadora também poderá encerrar a relação contratual do plano coletivo somente em relação ao beneficiário, o que se denomina exclusão do contrato. O nome é bastante propício, pois o beneficiário é retirado da coletividade e o contrato em si continua inalterado. As hipóteses estão previstas na RN 557/22, em seu art. 24, que traz a questão da fraude (já abordada quando da tratativa para planos individuais) e a inelegibilidade, prevendo também a hipótese de pedido do beneficiário (a ser tratada adiante).

A inelegibilidade ocorre quando o beneficiário não atende os pressupostos para estar no contrato coletivo, com autorização para exclusão pela operadora. Assim, um exemplo bastante corriqueiro é quando o dependente atinge o limite de idade para estar no plano de saúde ou quando o beneficiário é demitido por junta causa da empresa que lhe ofertava plano de saúde.

A inadimplência também é uma hipótese de encerramento por iniciativa da operadora, nos casos em que o beneficiário arca com parte do pagamento da contraprestação no plano coletivo. As questões da notificação por inadimplência, como dito, serão alteradas pela RN 593/23.

Dentre os contratos coletivos empresariais, é preciso destacar o contrato firmado por MEI - Microempresário Individual. Essa figura jurídica está prevista na lei complementar 123/06 e possui regras específicas para uma ficção jurídica, em que uma pessoa natural ganha caracteres de pessoa jurídica. E na condição de pessoa jurídica, a regulamentação autoriza que o MEI contrate plano coletivo empresarial. Para tanto, é preciso preencher os requisitos que serão comprovados na contratação e anualmente no aniversário: (a) documento que confirme a sua inscrição nos órgãos competentes; (b) regularidade cadastral junto à Receita Federal; e (c) inscrição pelo período mínimo de 6 meses, de acordo com sua forma de constituição. Todos os beneficiários vinculados deverão preencher os requisitos de elegibilidade.

Identificada a ilegitimidade da contratação por MEI, a operadora poderá rescindir o contrato desde que realize a notificação com sessenta dias de antecedência. Nesse prazo, será dado ao MEI a possibilidade de regularização, devendo a operadora rescindir imediatamente ao final do prazo caso não regularizado.

Iniciativa do Beneficiário

O contrato de plano de saúde poderá também ser encerrado a pedido do beneficiário. A tratativa para tal cenário está prevista na RN 561/22.

Os planos de saúde individuais poderão ser cancelados pelo beneficiário presencialmente, na sede da operadora, por meio de atendimento telefônico ou por meio da página da operadora na internet. Recebido o pedido do beneficiário, a operadora deve entregar o comprovante de recebimento. E para todas as hipóteses o fim da relação com a operadora é imediato.

O pedido de cancelamento em contratos individuais não exime do pagamento da multa rescisória caso apresentado antes doze meses de vigência.

Para os contratos coletivos, o beneficiário poderá encaminhar o pedido à pessoa jurídica contratante, à administradora de benefícios responsável pelo contrato ou à operadora. Caso o beneficiário opte por encaminhar o pedido de cancelamento para a pessoa jurídica contratante, esta contará com trinta dias para encaminhar o pedido para a operadora e somente então o pedido terá efeito.

Nos demais casos – pedido direcionar para a operadora ou administradora –, o pedido terá efeito imediato. Em todos as hipóteses deve também ser entregue o comprovante de recebimento de pedido de exclusão.

Regras para Notificação de Inadimplência

Como exposto, em setembro de 2024 entrará em vigor a RN 593/23, alterando as regras para notificação por inadimplência. Pela normativa, a notificação prévia para cancelamento por inadimplência passa a ser obrigatória para planos coletivos (pelas regras da ANS, ela é obrigatória somente para contratos individuais).

A regra para a notificação prévia será de envio da notificação ao beneficiário até o quinquagésimo dia da inadimplência, garantido dez dias para que seja efetuado o pagamento. A exclusão será autorizada quando identificadas duas mensalidades não pagas, consecutivas ou não, no prazo de doze meses.

Ainda, a norma determina que a operadora comprove a efetivação da notificação, sob pena de não ter validade a medida.

O novo texto traz também a possibilidade de o beneficiário questionar o valor do débito e solicitar negociação e parcelamento, que não é de aceitação obrigatória da operadora. E a rescisão do beneficiário por fraude deverá seguir as regras da normativa.

Foram determinadas as formas de notificação, que deverão constar no contrato, quais sejam:

  1. Correio eletrônico (e-mail) com certificado digital e com confirmação de leitura;
  2. Mensagem de texto para telefones celulares (SMS);
  3. Mensagem em aplicativo de dispositivos móveis que permita a troca de mensagens criptografadas;
  4. Ligação telefônica gravada, de forma pessoal ou pelo sistema URA (unidade de resposta audível), com confirmação de dados pelo interlocutor;
  5. Carta, com aviso de recebimento (AR) dos correios, não sendo necessária a assinatura da pessoa natural a ser notificada;
  6. Preposto da operadora, com comprovante de recebimento assinado pela pessoa natural a ser notificada; ou
  7. Site ou aplicativo da operadora.

Espera-se com tais previsões estabelecer uma relação com menos atritos entre beneficiário e operadora, quando se trata de cancelamento por inadimplência. Notadamente, um dos objetos mais demandados tanto nas instâncias administrativas como nas ações judiciais.

Concluindo, espera-se com o presente texto destacar as nuances do encerramento da relação contratual de plano de saúde, esclarecendo os principais diferenciais e os resultados de cada tipo de encerramento, conforme a modalidade contratada e a iniciativa do pedido. Importante destacar que as normativas da ANS são constantemente alteradas, recomendando ao leitor a atualização constante das questões regulatórias em saúde suplementar.

__________

1 VENOSA, Silvio. Salvo. Direito Civil. 12ª ed. Saraiva, 2009. P. 433.

2 DINIZ, Maria Helena Curso de Direito Civil Brasileiro. 23ª ed. Saraiva, 2007. P. 97.

3 GRECO, Rogério. Código Penal Comentado. 4º ed. Niterói: Impetus. 2010. 1020 p. P. 151.

4 Disponível aqui. Acesso em 05.05.2023.

5 Disponível aqui.

6 Art. 15. Plano privado de assistência à saúde coletivo por adesão é aquele que oferece cobertura da atenção prestada à população que mantenha vínculo com as seguintes pessoas jurídicas de caráter profissional, classista ou setorial:

I – conselhos profissionais e entidades de classe, nos quais seja necessário o registro para o exercício da profissão;

II – sindicatos, centrais sindicais e respectivas federações e confederações;

III – associações profissionais legalmente constituídas;

IV - cooperativas que congreguem membros de categorias ou classes de profissões regulamentadas;

V - caixas de assistência e fundações de direito privado que se enquadrem nas disposições desta resolução; e

VI - entidades previstas na lei 7.395, de 31 de outubro de 1985, e na lei 7.398, de 4 de novembro de 1985.

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Fernanda Schaefer tem pós-Doutorado no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC/PR, bolsista CAPES. Doutorado em Direito das Relações Sociais na UFPR, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha) como bolsista CAPES. Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC/PR. Assessora Jurídica CAOP Saúde MP/PR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Miguel Kfouri Neto é desembargador do TJ/PR. Pós-doutor em Ciências Jurídico-Civis junto à Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Doutor em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP. Mestre em Direito das Relações Sociais pela UEL. Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Maringá. Licenciado em Letras-Português pela PUC/PR. Professor-Doutor integrante do Corpo Docente Permanente do Programa de Doutorado e Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA). Coordenador do grupo de pesquisas "Direito da Saúde e Empresas Médicas" (UNICURITIBA). Membro da Comissão de Direito Médico do Conselho Federal de Medicina.

Rafaella Nogaroli é assessora de desembargador no TJ/PR. Mestre em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Especialista em Direito Aplicado, Direito Processual Civil e Direito Médico. Supervisora acadêmica do curso de especialização em direito médico e bioética da EBRADI. Coordenadora do grupo de pesquisas "Direito da Saúde e Empresas Médicas" (UNICURITIBA), ao lado do prof. Miguel Kfouri Neto. Diretora adjunta e membro do IBERC.

Wendell Lopes Barbosa de Souza é juiz de Direito do TJ/SP desde 2003 e Membro Titular da COMESP (Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do TJ/SP). Pós-doutor e professor da temática "Feminicídio" na pós em "Direitos Humanos, Saúde e Justiça" pelo POSCOHR, sediado na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. Especialista em Direito Penal pela Escola Paulista da Magistratura. Mestre e doutor em Direito Civil Comparado pela PUC/SP. Pesquisa e Curso de Introdução ao Direito Americano na Fordham University – NY/EUA. Professor em diversas instituições. Autor de livro e publicações. MBA Executivo em Gestão da Saúde pela FGV.