Migalhas de Direito Médico e Bioética

Aplicações práticas dos diversos regimes de responsabilidade civil médica e hospitalar

A coluna analisa a jurisprudência do STJ sobre os diferentes regimes de responsabilidade civil médica e hospitalar: A teoria do risco administrativo, a responsabilidade objetiva e subjetiva no CDC e a culpa concorrente no Código Civil.

5/8/2024

As demandas de reparação de danos por responsabilidade civil médica e hospitalar tiveram um crescimento importante nos últimos anos. Conforme dados divulgados pelo CNJ, nos relatórios Justiça em Números, foram registrados cerca de 25 mil processos no ano de 2023, uma alta de 35% em relação ao volume apurado no ano de 2020.1 Os processos por “danos materiais ou morais decorrentes da prestação de serviços de saúde”, conforme nova classificação adotada pelo CNJ desde janeiro de 2024, tratam-se de demandas complexas, que envolvem uma série de nuances para apurar a presença dos elementos, que configuram o dever de reparação de danos sofridos pelos pacientes.

Além das questões técnicas da ciência médica que norteiam as investigações de eventuais falhas nos serviços médicos e hospitalares, a solução final dos processos depende também de outra questão, estritamente jurídica: O regime de responsabilidade civil aplicado no caso concreto. No presente artigo, analisam-se as principais orientações do STJ, a respeito da aplicação de três regimes distintos de responsabilidade civil, a partir da CF, do CDC e CC.

Da Constituição Federal, emerge a responsabilidade pela chamada teoria do risco administrativo. Conforme o art. 37, § 6º, CF, as pessoas jurídicas de Direito Púbico, e as de Direito Privado que prestam serviços públicos, respondem pelos danos que seus agentes causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso nos casos de dolo ou culpa. A responsabilidade civil nesse caso é objetiva, configura-se pela presença de três elementos:

  1. Dano moral ou material sofrido por alguém;
  2. Ação ou omissão que possa ser caracterizada como ato ilícito; e
  3. Nexo de causalidade entre o dano e ação ou omissão estatal, independentemente da apuração de culpa do profissional da saúde para determinar o dever de reparação de danos.

A responsabilidade civil do Estado pode ser excepcionada quando se constate:

  1. Culpa exclusiva da vítima ou de terceiro;
  2. Conduta do agente em exercício regular de direito; ou
  3. Excludentes de caso fortuito ou força maior.

Nesse regime, a culpa da vítima afasta o dever de reparação quando o dano não decorrer de infração do dever de diligência do agente público, caso em que não haverá nexo de causalidade entre ação/omissão e dano. A hipótese de culpa concorrente da vítima não é suficiente para afastar a responsabilidade do Estado.2

Esse regime se aplica aos atendimentos prestados no âmbito do SUS, seja diretamente por hospitais públicos, seja por estabelecimentos conveniados que atendam os pacientes pelo SUS. Nesses casos, o STJ já reconheceu que "restando comprovado o fato, o dano causado e o nexo de causalidade entre os dois últimos, consideram-se satisfeitos os requisitos para a caracterização da responsabilidade objetiva do Estado", já que nessa hipótese "não se exige a comprovação de dolo ou culpa por parte do agente".3

A apuração de culpa ou dolo das pessoas físicas, profissionais da saúde, é relegada às ações de regresso, que podem ser ajuizadas pelos prestadores de serviços de saúde contra os agentes, que tenham atendido o paciente. Importante destacar a decisão proferida em 2019 pelo STF, sob o rito da repercussão geral, no julgamento do RE 1.027.633/SP (Tema 940), em que se definiu que os processos de responsabilidade civil devem ser ajuizados contra o Estado ou a pessoa jurídica prestadora de serviço público, e não contra a pessoa física do agente, que somente deve responder em ação de regresso nos casos de culpa ou dolo em sua conduta. Embora o julgado de origem não trate da hipótese de responsabilidade civil médica e hospitalar, a orientação fixada pelo STF já foi acolhida pelo STJ em caso posterior, para reconhecer a ilegitimidade passiva de médico, para responder diretamente junto ao paciente por danos causados em atendimento pelo SUS.4

Um segundo regime de responsabilidade objetiva decorre do CDC, que estabeleceu, dentre os direitos básicos do consumidor, a prevenção e reparação integral dos danos sofridos pelos serviços e produtos disponibilizados no mercado de consumo. Em se tratando de danos decorrentes de serviços na área da saúde, incide a chamada responsabilidade pelo fato do serviço, que é tratada no art. 14 do CDC, que traz duas modalidades de responsabilização:

  1. Uma responsabilidade objetiva, que independe de culpa, conforme caput do artigo; e
  2. A responsabilidade subjetiva pessoal dos profissionais liberais, tratada no § 4º, do mesmo artigo.

Cumpre então compreender em que circustâncias pode-se aplicar um ou outro regime de responsabilidade.

A responsabilidade objetiva é empresarial, pode ser aplicada aos hospitais, clínicas, laboratórios, etc., em duas hipóteses distintas. A primeira, é quando o dano causado para o paciente decorre diretamente de uma falha dos serviços hospitalares em si, e não de uma atuação culposa pessoal dos profissionais da saúde.5 São casos como de infecção hospitalar6, contaminações por transfusão saguínea dentro do período da janela imunológica7, resultados falsos positivos ou negativos em exames laboratoriais.8

A segunda hipótese é uma forma de responsabilidade solidária, em que a pessoa jurídica fornecedora de serviços de saúde responde de forma objetiva pela atuação culposa dos profissionais da saúde. Essa responsabilização se assemelha à regra prevista no art. 932, III, do Código Civil, de que o empregador ou comitente responde pelos danos causados por seus empregados, serviçais ou prepostos. Nesse ponto, é necessário então distinguir as situações em que o(a) médico(a) atua em nome próprio, dos casos em que atua como preposto(a) do hospital.

No primeiro caso, a procura do paciente é pelo médico, que utiliza a estrutura do hospital sem agir com subordinação, já que é direito do médico internar seus pacientes em hospitais, mesmo que não faça parte de seu corpo clínico.9 É o que ocorre por exemplo em procedimentos eletivos, em que a realização de uma cirurgia é precedida de uma série de atendimentos, muitas das vezes em seu consultório particular, para então se utiilizar da estrutura do hospital no procedimento cirúrgico. Havendo uma eventual complicação na cirurgia, o hospital não responderá pelos danos, se restar demonstrado que o(a) médico(a) agiu em nome próprio e não como seu preposto.10

Situação distinta ocorre nos casos em que a procura do paciente é pela estrutura hospitalar, notadamente nos casos de atendimentos em urgência e emergência, ou mesmo em cirurgias eletivas em que fique claramente constatado que o(a) médico(a) atua de forma subordinada ao estabelecimento de saúde.11 Em situações como tais, uma vez demonstrada a atuação culposa do(a) profissional da saúde, estará configurada a responsabilidade objetiva e solidária do estabelecimento.12

Note-se que a responsabilidade civil dos profissionais da saúde, pessoas físicas que atuam no atendimento aos pacientes, é em regra subjetiva. Tanto no regime do CDC, quanto no do CC, sua responsabilização depende da demontração de culpa, nas modalidades de negligência, imprudência ou imperícia. A diferença crucial entre o regime de responsabilidade do CDC para o do CC reside quanto à noção de culpa concorrente.

O Código Civil prevê, no art. 945, que se a vítima concorrer para o dano, o valor da indenização será fixado considerando a gravidade de sua culpa em confronto com a do autor do dano. Além disso, o art. 944 do diploma civil permite a redução equitativa da indenização, se houver desproporção excessiva entre a gravidade da culpa e do dano. No CDC, não há previsão de redução da reparação ante eventual culpa concorrente da vítima, já que o estatuto consumerista  estabelece a reparação integral dos danos como direito básico do consumidor. Somente a culpa exclusiva da vítima ou de terceiro é que é capaz de afastar o dever de reparação dos danos no CDC, como já observou o STJ, em caso de danos causados por uso indevido de medicamento.13

Em síntese, a definição do regime de responsabilidade civil médica e hospitalar depende:

  1. Se o atendimento foi prestado no âmbito do SUS;
  2. Se a relação é ou não de consumo;
  3. Se o(a) médico(a) atuou em nome próprio ou como preposto do hospital; e (iv) se o dano decorre de ato médico ou de falha na estrutura do serviço hospitalar.

_________

1 Disponível aqui. 26/02/2024, acesso em 28/07/2024.

2 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 9 ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 1304-1320.

3 STJ, AGRG no REsp. 403236/DF, Segunda Turma, Rel. Min. OG Fernandes, j. 5/12/2013. O caso analisado reconheceu o direito de um paciente à indenização, em razão de sequelas no aparelho fonatório após se submeter a uma traqueostomia. A investigação probatória afastou a hipótese de culpa do médico.

4 STJ. AgInt no Agravo em Resp 1448067/SC, Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, j. 29/04/2020.

5 “O art. 14 do CDC, conforme melhor doutrina, não conflita com essa conclusão, dado que a responsabilidade objetiva, nele prevista para o prestador de serviços, no presente caso, o hospital, circunscreve-se apenas aos serviços única e exclusivamente relacionados com o estabelecimento empresarial propriamente dito, ou seja, aqueles que digam respeito à estadia do paciente (internação), instalações, equipamentos, serviços auxiliares (enfermagem, exames, radiologia), etc e não aos serviços técnicos-profissionais dos médicos que ali atuam, permanecendo estes na relação subjetiva de preposição (culpa)”. STJ, RESp. 258.389/SP. Quarta Turma. Rel.Min. Fernando Gonçalves, j. 16/06/2005. 

6 STJ. AgInt no ARESP 747.320/DF. Quarta Turma. Rel.  Min. Lázaro Guimarães. J. 14/08/2018.

7 STJ. RESp 1645786/PR.Terceira Turma. Rela. Min. Nancy Andrighi, j. 18/05/2017.

8 “O laboratório possui obrigação de resultado na realização de exame médico, de maneira que o fornecimento de diagnóstico incorreto configura defeito na prestação do serviço, a implicar responsabilidade objetiva, com base no art. 14, caput, do CDC”. STJ. RESp. 1653134/SP. Terceira Turma. Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 17/10/2017.

9 Código de Ética Médica, Capítulo II, Direitos do médico. É direito do Médico:

“Art. 25. Internar e assistir seus pacientes em hospitais privados, com ou sem caráter filantrópico, ainda que não faça parte do seu corpo clínico, respeitadas as normas técnicas da instituição”.

10 “A doutrina tem afirmado que a responsabilidade médica empresarial, no caso de hospitais, é objetiva, indicando o parágrafo primeiro do artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor como a norma sustentadora de tal entendimento. Contudo, a responsabilidade do hospital somente tem espaço quando o dano decorrer de falha de serviços cuja atribuição é afeta única e exclusivamente ao hospital. Nas hipóteses de dano decorrente de falha técnica restrita ao profissional médico, mormente quando este não tem nenhum vínculo com o hospital – seja de emprego ou de mera preposição –, não cabe atribuir ao nosocômio a obrigação de indenizar”. STJ, RESp 908.359/SC. Segunda Seção. Relator  p/ acórdão Min. João Otávio de Noronha. J. 27/08/2008..

11 “Uma vez caracterizada a culpa do médico que atua em determinado serviço disponibilizado por estabelecimento de saúde (art. 14, § 4º, CDC), responde a clínica de forma objetiva e solidária pelos danos decorrentes do defeito no serviço prestado, nos termos do art. 14, § 1º, CDC”. STJ. RESp. 605435/RJ. Quarta Turma. Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 22/09/2009. O caso é de paciente que sofreu sequelas após complicação anestésica em cirurgia plástica. Os médicos e a clínica foram condenados solidariamente na reparação de danos, entendendo-se que o anestesista, que agiu de forma negligente, era subordinado ao chefe da equipe médica e à clínica.

12 “O reconhecimento da responsabilidade solidária do hospital não transforma a obrigação de meio do médico, em obrigação de resultado, pois a responsabilidade do hospital somente se configura quando comprovada a culpa do médico integrante de seu corpo plantonista, conforme a teoria de responsabilidade subjetiva dos profissionais liberais abrigada pelo Código de Defesa do Consumidor.”STJ. RESp. 1.579.954/ MG. Terceira Turma. Rela. Min. Nancy Andrighi, j. 08/05/2018.

13 STJ. RESp.971845/DF. Terceira Turma. Rel. p/ acórdão Min Nancy Andrighi, j. 21/08/2008.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Colunistas

Fernanda Schaefer tem pós-Doutorado no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC/PR, bolsista CAPES. Doutorado em Direito das Relações Sociais na UFPR, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha) como bolsista CAPES. Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC/PR. Assessora Jurídica CAOP Saúde MP/PR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Miguel Kfouri Neto é desembargador do TJ/PR. Pós-doutor em Ciências Jurídico-Civis junto à Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Doutor em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP. Mestre em Direito das Relações Sociais pela UEL. Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Maringá. Licenciado em Letras-Português pela PUC/PR. Professor-Doutor integrante do Corpo Docente Permanente do Programa de Doutorado e Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA). Coordenador do grupo de pesquisas "Direito da Saúde e Empresas Médicas" (UNICURITIBA). Membro da Comissão de Direito Médico do Conselho Federal de Medicina.

Rafaella Nogaroli é assessora de desembargador no TJ/PR. Mestre em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Especialista em Direito Aplicado, Direito Processual Civil e Direito Médico. Supervisora acadêmica do curso de especialização em direito médico e bioética da EBRADI. Coordenadora do grupo de pesquisas "Direito da Saúde e Empresas Médicas" (UNICURITIBA), ao lado do prof. Miguel Kfouri Neto. Diretora adjunta e membro do IBERC.

Wendell Lopes Barbosa de Souza é juiz de Direito do TJ/SP desde 2003 e Membro Titular da COMESP (Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do TJ/SP). Pós-doutor e professor da temática "Feminicídio" na pós em "Direitos Humanos, Saúde e Justiça" pelo POSCOHR, sediado na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. Especialista em Direito Penal pela Escola Paulista da Magistratura. Mestre e doutor em Direito Civil Comparado pela PUC/SP. Pesquisa e Curso de Introdução ao Direito Americano na Fordham University – NY/EUA. Professor em diversas instituições. Autor de livro e publicações. MBA Executivo em Gestão da Saúde pela FGV.