Migalhas de Direito Médico e Bioética

Teoria da perda de uma chance na perspectiva

A teoria da perda de uma chance surgiu na França, inicialmente resistente à indenização por chances perdidas. Ela permite a indenização quando alguém perde a oportunidade de um benefício devido a ação de terceiros, baseada na probabilidade do resultado, não na certeza absoluta do dano.

8/7/2024

1. PRIMEIRO APONTAMENTO SOBRE A TEORIA DA PERDA DE UMA CHANCE

As primeiras manifestações a respeito da utilização da teoria da perda de uma chance surgiram na França, mas, ao contrário do que muitos defendem, no final do século XIX esse país ainda era totalmente avesso à indenização das chances perdidas, uma vez que optava pela aplicação das normas mais estritas de reparação decorrentes da responsabilidade civil, impondo, necessariamente, a prova da certeza do dano.1

Por meio de pesquisas realizadas em decisões judiciais pelos irmãos Mazeaud, constatou-se que o primeiro julgado a abordar o tema foi um de 1896, da Corte de Apelação de Limoges, que cuidava do pedido de reparação elaborado por um dono de cavalos em face de uma empresa de transportes, em razão de o animal não ter chegado em tempo para participar de uma corrida. Porém, o pedido foi indeferido por não ser possível garantir que o animal venceria a corrida.2

A teoria é utilizada naquelas situações em que o lesado foi impedido de fazer uso de uma oportunidade de conquistar certo benefício ou deixar de sofrer um prejuízo, por culpa de um terceiro, contra o qual poderá exigir a indenização correspondente, a qual, contudo, jamais equivalerá ao resultado final, que será calculado com fundamento na probabilidade.3

A teoria surgiu diante da dificuldade do lesado provar o nexo causal e a extensão do dano, notadamente quando o fato danoso estava cercado por condições diversas, a exemplo dos casos de responsabilidade médica. Portanto, originou-se atrelada ao nexo causal, apesar de, na atualidade, a maior parte da doutrina vinculá-la à questão do dano.4

Foi a Corte de Grenoble (comuna francesa), conforme aponta o eminente jurista Miguel Kfouri Neto, a precursora na utilização de forma clara desta teoria à responsabilidade médica, a partir do caso de uma paciente com dores no punho que se submeteu a um exame radiográfico.5

O médico que analisou a radiografia não observou nenhuma fratura ou qualquer outra patologia, porém, 7 anos depois, apareceram fortes dores e o paciente moveu demanda judicial quando, então, analisando-se aquele primeiro exame, constatou-se a existência de uma fratura que não havia sido observada pelo médico. Diante do fato, a Corte deferiu uma reparação com supedâneo na teoria da perda de uma chance, em razão da não utilização, na primeira oportunidade, da terapia adequada.6

A perda de uma chance não guarda relação com um resultado certo, pois não existe certeza de que o evento se concretizará. Deve-se admiti-la como a perda de uma possibilidade de atingir um resultado ou de se impedir um dano. Não se exige a certeza do dano, mas certeza da probabilidade. A tarefa de analisar cada caso a fim de verificar se as possibilidades são concretas é do magistrado.7

A teoria da perda de uma chance não se trata nem de uma hipótese de dano emergente e nem de lucros cessantes, uma vez que, para caracterização destes últimos, é indispensável a certeza da obtenção do resultado, enquanto que, para verificação da primeira, basta a probabilidade de conquista do resultado almejado.8

No Brasil, as primeiras afirmações a respeito da teoria ocorrem no Rio Grande do Sul, em acórdãos prolatados pelo desembargador Ruy Rosado de Aguiar Júnior, o qual se inspirou numa palestra ministrada pelo professor François Chabas, em 23/5/90, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, denominada “La perte d’une chance en droit français. Tal pioneirismo foi endossado pelo destacado jurista brasileiro Dr. Miguel Kfouri Neto.” 9

O processo originou-se do caso de uma paciente que se submeteu a uma cirurgia refrativa, em 21/3/87, para correção de miopia em grau 4.00 no olho direito, com o fim de evitar o uso de lentes corretivas. A autora perdeu em primeira instância, mas conseguiu reformar a decisão perante a 4a Câmara Cível de Porto Alegre, sob relatoria do desembargador Ruy Rosado de Aguiar Junior, o qual, após análise do laudo pericial entendeu que o médico não tomou as cautelas necessárias e foi responsável pela perda da chance que a paciente tinha de corrigir sua visão.10

No Brasil, a teoria da perda de uma chance sempre foi e continua sendo utilizada com o fim de justificar uma eventual reparação a título de danos morais pela oportunidade perdida pelo paciente ou lesado.

Com base nessa noção de perda de chance, eu busquei dar uma nova roupagem para a Teoria da Perda de Uma Chance, fazendo uso da mesma de forma preventiva, antes que o dano se verifique, especificamente para os casos de tratamentos de saúde.

Por isso nominei de Teoria da Perda de Uma Chance em Perspectiva, uma vez que o paciente pode estar diante de sua melhor chance de cura a ser perdida ou perante uma última chance de cura, caso não receba o tratamento adequado para sua patologia.

2. TEORIA DA PERDA DE UMA CHANCE EM PERSPECTIVA

Defendo a aplicação da Teoria da Perda de Uma Chance em Perspectiva para os casos de pacientes que precisam com urgência iniciar tratamentos de saúde, mesmo que seja por meio de tratamentos experimentais ou com uso de medicamentos OFF LABEL.

A finalidade é utilizar a teoria para fundamentar a concessão de medicamentos ou procedimentos médicos antes que a doença se agrave ou o paciente venha a óbito.

Para lançar luzes ao tema imaginemos a seguinte situação:

Determinada paciente, portadora de câncer de mama, já foi submetida às sessões de quimioterapia e radioterapia disponíveis no Sistema Único de Saúde Brasileiro, porém, sem alcançar remissão da doença. Então, sua médica oncologista toma ciência sobre uma nova medicação de alto custo, já reconhecida e aprovada em âmbito internacional, mas sem aprovação perante a ANVISA - Agência Nacional de Vigilância Sanitária.

Nessa hipótese, considerando o tempo que se leva para um medicamento ser aprovado e registrado perante ANVISA, bem como o risco de demora para a paciente, poderíamos fazer uso da Teoria da Perda de Uma Chance em Perspectiva para fundamentar o direito da paciente de fazer uso dessa medicação mesmo sem registro e aprovação da ANVISA, uma vez que ela pode estar diante de sua última chance de cura, qual seja, submeter-se ao uso dessa medicação ainda não registrada na ANVISA.

A Teoria da Perda de Uma Chance em Perspectiva também pode ser aplicada nos casos de prescrição de medicamentos órfãos11 para pacientes com doenças raras.

Para algumas doenças raras já existem medicamentos registrados perante a ANVISA, mas que ainda não foram incluídos na RENAME - Relação Nacional de Medicamentos Essenciais12, motivo pelo qual não são cobertos pela União ou pelo Estado.

Igualmente, ainda não foram incluídos no Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde, relação que as operadoras de planos privados de assistência à saúde tomam como referência para oferecer cobertura aos seus beneficiários.

Em relação aos medicamentos órfãos, tomemos como exemplo um dos medicamentos mais caros do mundo, chamado zolgensma (uma única doze pode custar mais de seis milhões de reais), indicado para AME - atrofia muscular espinhal tipo 1 com 2 cópias do gene SMN2, doença rara, degenerativa, passada de pais para filhos e que não tem cura.

“O prognóstico para pacientes portadores de AME tipo 1 com 2 cópias do SMN2 é grave; esses pacientes mostram sinais da doença logo após o nascimento (6 meses de vida), nunca adquirem a capacidade de sentar-se e geralmente não sobrevivem aos últimos 2 anos sem suporte ventilatório e nutricional mecânico significativo. A maioria dos pacientes com AME de início infantil não sobrevive à primeira infância devido à insuficiência respiratória. AME é a causa monogênica mais comum de mortalidade infantil.” 13

Esse medicamento é o que mais aumenta a chance de cura para AME. Apenas uma aplicação já surte efeito contra a doença, só que ela precisa ser feita até os dois primeiros anos de idade.

Nesse caso, estamos diante de uma situação clara de última chance de cura ou da melhor chance. Se a criança com AME não tomar a medicação ela, certamente, virá a óbito, motivo pelo qual ela tem direito de fazer uso dessa que pode ser sua última ou única chance de cura.

Nos casos de planos privados de assistência à saúde a teoria em discussão também pode ser aplicada, especialmente nos casos em que o tratamento prescrito ainda não foi incluído no Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde editado pela ANS.

Se o paciente tiver que aguardar a inclusão de um determinado tratamento ou medicamento no ROL, inclusive medicamentos de uso OFF LABEL (fora da bula), o que pode levar meses e até anos, ele poderá perder sua chance de cura ou melhora do quadro clínico, razão pela qual ele também poderia fundamentar seu pedido na teoria da perda de uma chance em perspectiva.

Em todas estas hipóteses os pacientes estão, em perspectiva, diante de uma clara probabilidade de perder uma última ou única chance de cura ou ainda uma chance de melhora do quadro clínico com ganho de sobrevida.

Diante desses apontamentos, penso que seria razoável fazermos o seguinte questionamento:

  1. Os pacientes que fazem uso do SUS ou dos planos privados de assistência à saúde tem direito de fazer uso de todas as alternativas de tratamentos de saúde disponíveis, inclusive aqueles que ainda não foram aprovados e registrados perante a ANVISA ou incluídos no Rol da ANS?
  2. Tratamentos ainda considerados experimentais, inclusive medicamentos de uso OFF LABEL, mas que já possuam evidências de eficácia, os quais podem ser considerados como única ou última alternativa de cura, também devem ser cobertos pelo SUS e pelos planos de saúde?

Penso que a resposta deveria ser positiva para essas duas perguntas, uma vez que estamos diante de direito fundamental albergado pela Constituição Federal Brasileira.

Apesar disso, mesmo que você pense diferente, espero que esses apontamentos e questionamentos levem a uma profunda reflexão a respeito de um tema tão importante e que demanda urgência na criação de políticas públicas relacionadas, especialmente porque diretamente relacionado a pacientes com doenças raras e oncológicas.

____________

1 HIGA, Flávio da Costa. Responsabilidade civil: a perda de uma chance no direito do trabalho. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 15.

2 HIGA, Flávio da Costa. Responsabilidade civil: a perda de uma chance no direito do trabalho. São Paulo: Saraiva, 2012, 15.

3 GUEDES, Gisele Sampaio da Cruz. Lucros cessantes: do bom-senso ao postulado normativo da razoabilidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 105.

4 GUEDES, Gisele Sampaio da Cruz. Lucros cessantes: do bom-senso ao postulado normativo da razoabilidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 106-107.

5 KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil dos hospitais: código civil e código de defesa do consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 246.

6 KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil dos hospitais: código civil e código de defesa do consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 246.

7 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. São Paulo: Atlas, 2011, p. 99.

8 MELO, Raimundo Simão de. Direito ambiental do trabalho e a saúde do trabalhador: responsabilidades legais, dano material, dano moral, dano estético, indenização pela perda de uma chance, prescrição. 5. ed. São Paulo: LTR, 2013, p. 464.

9 SILVA, Rafael Peteffi da. Responsabilidade civil pela perda de uma chance. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 194.

10 HIGA, Flávio da Costa. Responsabilidade civil: a perda de uma chance no direito do trabalho. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 44-45.

11 Um medicamento órfão é um medicamento desenvolvido para o tratamento de uma doença rara. Uma doença rara é definida como uma condição que afeta uma porcentagem muito pequena da população e é fatal ou gravemente debilitante. [...] o número de pacientes é tão pequeno que uma doença rara muitas vezes não é "adotada" pela indústria farmacêutica (daí a expressão medicamento órfão). Disponível aqui.

12 A Relação Nacional de Medicamentos Essenciais - Rename é um importante instrumento orientador do uso de medicamentos e insumos no SUS. A Rename 2022 apresenta os medicamentos oferecidos em todos os níveis de atenção e nas linhas de cuidado do SUS, proporcionando transparência nas informações sobre o acesso aos medicamentos da rede. Disponível aqui.

13 Disponível aqui

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Colunistas

Fernanda Schaefer tem pós-Doutorado no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC/PR, bolsista CAPES. Doutorado em Direito das Relações Sociais na UFPR, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha) como bolsista CAPES. Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC/PR. Assessora Jurídica CAOP Saúde MP/PR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Miguel Kfouri Neto é desembargador do TJ/PR. Pós-doutor em Ciências Jurídico-Civis junto à Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Doutor em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP. Mestre em Direito das Relações Sociais pela UEL. Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Maringá. Licenciado em Letras-Português pela PUC/PR. Professor-Doutor integrante do Corpo Docente Permanente do Programa de Doutorado e Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA). Coordenador do grupo de pesquisas "Direito da Saúde e Empresas Médicas" (UNICURITIBA). Membro da Comissão de Direito Médico do Conselho Federal de Medicina.

Rafaella Nogaroli é assessora de desembargador no TJ/PR. Mestre em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Especialista em Direito Aplicado, Direito Processual Civil e Direito Médico. Supervisora acadêmica do curso de especialização em direito médico e bioética da EBRADI. Coordenadora do grupo de pesquisas "Direito da Saúde e Empresas Médicas" (UNICURITIBA), ao lado do prof. Miguel Kfouri Neto. Diretora adjunta e membro do IBERC.

Wendell Lopes Barbosa de Souza é juiz de Direito do TJ/SP desde 2003 e Membro Titular da COMESP (Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do TJ/SP). Pós-doutor e professor da temática "Feminicídio" na pós em "Direitos Humanos, Saúde e Justiça" pelo POSCOHR, sediado na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. Especialista em Direito Penal pela Escola Paulista da Magistratura. Mestre e doutor em Direito Civil Comparado pela PUC/SP. Pesquisa e Curso de Introdução ao Direito Americano na Fordham University – NY/EUA. Professor em diversas instituições. Autor de livro e publicações. MBA Executivo em Gestão da Saúde pela FGV.