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“Doutor, o que eu tenho?” - A arte de diagnosticar e as nuances da responsabilidade civil médica

A arte de diagnosticar e as nuances da responsabilidade civil médica.

1/7/2024

Quando um paciente agenda uma consulta médica e vai ao encontro do profissional, ele espera um diagnóstico correto para iniciar o tratamento adequado para poder se recuperar da sua condição de saúde. A consulta na relação médico-paciente consiste na anamnese, no exame físico, hipótese ou conclusão diagnóstica, solicitação de exames complementares (laboratoriais ou de imagem) e a prescrição medicamentosa.1

Diagnosticar não é um ato simples, mas sim um processo complexo. Conforme Rizzardo (2013, p. 325), diagnosticar “constitui uma operação delicada, feita em vista dos sintomas apresentados, dos exames e verificações auscultadas em face de testes e de múltiplas reações”. Complementando essa visão, Kfouri Neto (2018, p. 219) define “o diagnóstico como o conjunto de atos médicos com a finalidade de reconhecer, identificar e interpretar sinais característicos da doença, para estabelecer a terapêutica adequada e necessária à obtenção da cura.”

Muito além de correlacionar sintomas e doenças, o diagnóstico estabelece a conduta médica e o prognóstico. Um diagnóstico correto considera todos os sinais e sintomas do paciente, bem como a anamnese, sem influenciar a descrição da evolução da doença (SCHAEFER, 2012, p. 65-66).

O erro de diagnóstico, por norma, não terá o condão indenizatório, desde que não tenha sido provocado por manifesta negligência (FRANÇA, 2014, p. 248). Porém, se um médico prudente não o cometesse, em iguais condições externas que o médico demandado, estaremos diante de um erro indenizável (KFOURI NETO, 2018, p.113). No mesmo sentido, Maldonado (2019, p. 46) afirma que “[...] o médico que, por erro grosseiro, venha causar dano ao paciente, tem o dever, como decorrência da responsabilidade civil, de indenizá-lo”.

Entretanto, se um erro de diagnóstico grosseiro não for identificado, qualquer demanda de indenização contra o médico não pode resultar em sua condenação. Como exemplo, tem-se o acórdão de apelação 0019735-58.2020.8.16.00142, proferido em 19/4/24, pela 10º Câmara Cível do TJ/PR, que se destaca por aplicar esta compreensão doutrinária, pois enfrentou diretamente a complexa questão do diagnóstico médico e decidiu pela ausência de responsabilidade civil do médico ao julgar ação de indenização por danos morais e patrimoniais em razão de suposta falha no atendimento médico e hospitalar dispensado ao filho da autora, que teve como diagnóstico primário adenite mesentérica, quando, na verdade, tratava-se de um quadro de apendicite aguda.

Ao analisar e julgar a situação apresentada, o acórdão destacou que o médico utilizou todos os meios diagnósticos disponíveis (exames laboratoriais, físicos e de imagem), conforme o art. 323 do Código de Ética Médica, e que a conduta médica foi considerada adequada, pois os exames não indicaram claramente um quadro de apendicite aguda. Assim, não houve culpa dos médicos nem nexo de causalidade entre o atendimento e os danos alegados pelo paciente. Dada a avaliação técnica e a ausência de erro grosseiro, o acórdão foi categórico no sentido de que não há fundamento para responsabilizar os profissionais de saúde ou o hospital pelo diagnóstico e tratamento fornecidos.

Partindo deste caso prático, evidencia-se que realizar um diagnóstico médico é um processo complexo que requer a integração de múltiplos dados clínicos e tecnológicos. A precisão depende da utilização adequada dos recursos diagnósticos e da análise minuciosa dos sintomas e exames. A atribuição de supostos erros de diagnóstico pode ocorrer devido à semelhança entre diferentes condições médicas e à evolução temporal dos sintomas. Inclusive, o acórdão destaca que, mesmo com alta competência técnica e diligência, o diagnóstico pode ser um desafio, sem que isso necessariamente implique culpa ou responsabilidade dos profissionais de saúde.

Nesta linha de raciocínio, Kfouri Neto (2018, p. 220) enfatiza que:

Existem sintomas inespecíficos, doenças assintomáticas, indícios claros de determinadas patologias que mascaram doenças mais graves, relatos inexatos dos próprios pacientes, males de evolução tão rápida – e, muitas vezes, letal – que torna impossível a efetivação de exames complementares, para auxiliar a fixação do correto diagnóstico.

Diante dessa complexidade, é crucial que os médicos utilizem todas as ferramentas à sua disposição. Além da empatia, do zelo e do cuidado, o avanço tecnológico deve ser utilizado pelo médico como meio para corroborar para um diagnóstico ideal. Gonçalves (2013, p. 268) faz um importante alerta para casos nos quais os profissionais dispensam a utilização da tecnologia, vejamos:

Diante do avanço médico-tecnológico de hoje, que permite ao médico apoiar- se em exames de laboratório, ultrassom, ressonância magnética, tomografia computadorizada e outros, maior rigor deve existir na análise da responsabilidade dos referidos profissionais quando não atacaram o verdadeiro mal e o paciente, em razão de diagnóstico equivocado, submeteu- se a tratamento inócuo e teve a sua situação agravada, principalmente se verificar que deveriam e poderiam ter sido submetido ao seu cliente a esses exames e não o fizeram, optando por um diagnóstico precipitado e impreciso.

Ademais, o erro de diagnóstico divide-se em duas categorias: Erro de diagnóstico evitável e erro de diagnóstico inevitável. Schaefer (2012, p. 66) explica que inevitáveis são aqueles decorrentes da própria limitação da ciência médica (como doenças ainda não catalogadas) e por isso não constituem faltas graves e consequentemente não são puníveis. Por outro lado, erros de diagnóstico evitáveis podem gerar a responsabilidade do médico. A autora esclarece que “são erros que teriam sido evitados se todas as precauções necessárias (como realização de exames clínicos, laboratoriais, físicos, etc.) tivessem sido tomadas”.

Dessa forma, é essencial que os médicos façam uso das novas tecnologias disponíveis para embasar seus diagnósticos e realizem anamnese completa antes de levantar hipóteses diagnósticas. Isso não só melhora a precisão, mas também reduz a probabilidade de erros evitáveis que poderiam resultar em responsabilidade civil.

Sobre a responsabilidade civil médica, convém esclarecer que o médico responde com base na teoria subjetiva, que se fundamenta na aferição de culpa stricto sensu (negligência, imprudência e imperícia), conforme estabelecido nos artigos 186 e 951 do Código Civil, cabendo, então, à vítima comprovar o nexo de causalidade entre o dano e o ato médico culposo. Neste contexto, Kfouri Neto (2018, p. 224), assevera que, para a identificação da culpa na conduta do médico ao efetuar um diagnóstico, é necessário considerar fatores “como açodamento, pressa e precipitação (imprudência), falta de exames imprescindíveis (negligência) ou desconhecimento da ciência médica (imperícia).”

Diante de todo o exposto, conclui-se, que a arte de diagnosticar exige precisão, empatia e o uso adequado das tecnologias disponíveis. Erros de diagnóstico, embora muitas vezes inevitáveis, podem ser minimizados com práticas diligentes e uma abordagem criteriosa. E a responsabilidade civil médica se torna uma realidade quando o erro poderia ter sido evitado com a devida cautela, destacando a importância do contínuo aprimoramento e rigor na prática médica.

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CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA: Resolução CFM nº 2.217/2018, modificada pelas Resoluções CFM nº 2.222/2018 e 2.226/2019 – Brasília: Conselho Federal de Medicina, 2019.

CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução CFM nº 1.958/2010. Disponível aqui. Acesso em 22 de maio de 2024.

FRANÇA, Genival Veloso de. Direito médico. 12. ed. rev., atual. ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2014.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: responsabilidade civil. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. v. 4.

KFOURI NETO, Migue. Responsabilidade civil dos hospitais: Código Civil e Código de Defesa do Consumidor. – 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2018.

KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil do médico. 9 ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais Ltda., 2018.

MALDONADO, José Carlos. Iatrogenia e erro médico: sob o enfoque da responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

SCHAEFER, Fernanda. Responsabilidade civil do médico & erro de diagnóstico. 11. reimp. Curitiba: Juruá, 2012.

SOUZA, Wendel Lopes Barbosa de. O erro médico nos tribunais. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2024.

RIZZARDO, Arnaldo. Responsabilidade civil. 6.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013.

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1 RESOLUÇÃO CFM n.º 1.958/2010. Disponível aqui. Acesso em 22 maio 2024.

2 APELAÇÃO. “AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E PATRIMONIAIS POR FALHA NA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS MÉDICOS”. ALEGAÇÃO DE ERRO MÉDICO. ERRO DE DIAGNÓSTICO. AUTOR QUE FOI ATENDIDO NO PRONTO ATENDIMENTO DO HOSPITAL REQUERIDO, PELOS MÉDICOS RÉUS. QUADRO DE FEBRE, DOR ABDOMINAL, VÔMITO, DIARREIA E AUSÊNCIA DE APETITE. EXAMES DE IMAGEM INCONCLUSIVOS. EXAME DE SANGUE QUE APONTOU INFECÇÃO. DIAGNÓSTICO DE ADENITE MESENTÉRICA. MENOR QUE FOI MEDICADO, COM ALTA POSTERIOR, SOB INDICAÇÃO DE RETORNO EM 24 HORAS NA PERSISTÊNCIA DOS SINTOMAS. RETORNO EM OUTRO NOSOCÔMIO, COM ATENDIMENTO DEPOIS DE MAIS DE 34 HORAS DA ALTA MÉDICA. FEITO EXAME DE TOMOGRAFIA, QUE APONTOU APENDICITE AGUDA COM SUPURAÇÃO. INTERVENÇÃO CIRÚRGICA E POSTERIOR RESTABELCIMENTO, SEM COMPLICAÇÕES. AUTORES QUE AFIRMAM QUE O ATRASO NO DIAGNÓSTICO CORRETO, CAUSOU A PERFURAÇÃO DO APÊNDICE, COLOCANDO A VIDA DO MENOR EM RISCO. APLICAÇÃO DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. RESPONSABILIDADE DO PROFISSIONAL MÉDICO SUBJETIVA. INTELIGÊNCIA DO ART. 14, §4º DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. RESPONSABILIDADE DO HOSPITAL OBJETIVA, MEDIANTE CARACTERIZAÇÃO DA RESPONSABILIDADE DO MÉDICO. INSTRUÇÃO DO PROCESSO COM PERÍCIA, COMPLEMENTADA EM SEGUNDO GRAU. AUSÊNCIA DE RESPONSABILIDADE DOS MÉDICOS E, DE CONSEQUÊNCIA, DO HOSPITAL. INEXISTÊNCIA DE ERRO DE DIAGNÓSTICO GROSSEIRO. QUADRO DE ADENITE MESENTÉRICA QUE SE ASSEMELHA AO QUADRO DE APENDICITE. EXAME FÍSICO QUE NÃO APONTOU QUADRO DE DOR TRADICIONAL DA MOLÉSTIA. EXAMES DE IMAGEM QUE NÃO APONTARAM ALTERAÇÕES SUFICIENTES PARA O DIAGNÓSTICO DE APENDICITE AGUDA. EVOLUÇÃO NATURAL DO QUADRO. MÉDICOS QUE AGIRAM CONFORME PRÁXIS MÉDICA, SOLICITANDO EXAMES, MEDICANDO E INTERPRETANDO O ESTADO CLÍNICO CONFORME SE APRESENTOU NO MOMENTO. AUSÊNCIA DE RESPONSABILIDADE DOS REQUERIDOS. PEDIDO IMPROCEDENTE. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO. (TJPR - 10ª Câmara Cível - 0019735-58.2020.8.16.0014 - Londrina -  Rel.: DESEMBARGADORA ANGELA KHURY -  J. 22.04.2024)

3 Art. 32. [É vedado ao médico:] Deixar de usar todos os meios disponíveis de promoção de saúde e de prevenção, diagnóstico e tratamento de doenças, cientificamente reconhecidos e a seu alcance, em favor do paciente.

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Fernanda Schaefer tem pós-Doutorado no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC/PR, bolsista CAPES. Doutorado em Direito das Relações Sociais na UFPR, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha) como bolsista CAPES. Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC/PR. Assessora Jurídica CAOP Saúde MP/PR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Miguel Kfouri Neto é desembargador do TJ/PR. Pós-doutor em Ciências Jurídico-Civis junto à Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Doutor em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP. Mestre em Direito das Relações Sociais pela UEL. Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Maringá. Licenciado em Letras-Português pela PUC/PR. Professor-Doutor integrante do Corpo Docente Permanente do Programa de Doutorado e Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA). Coordenador do grupo de pesquisas "Direito da Saúde e Empresas Médicas" (UNICURITIBA). Membro da Comissão de Direito Médico do Conselho Federal de Medicina.

Rafaella Nogaroli é assessora de desembargador no TJ/PR. Mestre em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Especialista em Direito Aplicado, Direito Processual Civil e Direito Médico. Supervisora acadêmica do curso de especialização em direito médico e bioética da EBRADI. Coordenadora do grupo de pesquisas "Direito da Saúde e Empresas Médicas" (UNICURITIBA), ao lado do prof. Miguel Kfouri Neto. Diretora adjunta e membro do IBERC.

Wendell Lopes Barbosa de Souza é juiz de Direito do TJ/SP desde 2003 e Membro Titular da COMESP (Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do TJ/SP). Pós-doutor e professor da temática "Feminicídio" na pós em "Direitos Humanos, Saúde e Justiça" pelo POSCOHR, sediado na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. Especialista em Direito Penal pela Escola Paulista da Magistratura. Mestre e doutor em Direito Civil Comparado pela PUC/SP. Pesquisa e Curso de Introdução ao Direito Americano na Fordham University – NY/EUA. Professor em diversas instituições. Autor de livro e publicações. MBA Executivo em Gestão da Saúde pela FGV.