Migalhas de Direito Médico e Bioética

Transplante de órgãos, tecidos e partes do corpo humano. O que esperar da campanha um só coração?

Poucas pessoas sabem, mas a declaração de doador tem forma livre. O que significa que o registro pode ser feito por diversos meios: diretivas antecipadas de vontade; escritura pública; instrumento particular; gravação em vídeo; declaração à equipe médica e até por manifestações em redes sociais.

21/5/2024

A doação de órgãos, tecidos e partes do corpo humano é um dos gestos mais altruístas conhecidos, mas também o que enfrenta uma série de resistências motivadas por diferentes razões, que acabaram refletindo na lei 9.434, de 4 de fevereiro de 1997.

Em 2001 o legislador alterou a norma para determinar que nos casos de retirada post mortem (após a morte) de tecidos, órgãos e partes do corpo humano não bastaria a declaração prévia do morto, seria também necessária a consulta à família que pode simplesmente desconsiderar a vontade declarada pelo falecido e negar a remoção. Trata-se de intervenção desarrazoada na autodeterminação sobre o corpo.

Desde então, muito se avançou nas técnicas de transplantes e nas discussões sobre as doações. Parte significativa da população compreende a importância do ato e se declara doadora, embora não tenha por hábito registrar essa vontade.

Poucas pessoas sabem, mas a declaração de doador tem forma livre. O que significa que o registro  pode ser feito por diversos meios: diretivas antecipadas de vontade; escritura pública; instrumento particular; gravação em vídeo; declaração à equipe médica e até por manifestações em redes sociais. Até pouco tempo, podia-se, inclusive, declarar a opção pela doação em documentos como a Carteira de Habilitação, opção que infelizmente já não existe mais.

Paradoxalmente, na mesma medida que a aceitação do ato aumenta, crescem as propostas de burocratização das declarações. Em abril passado comemoramos o lançamento da Campanha Um Só Coração: Seja Vida na Vida de Alguém. Doe Órgãos, idealizada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Colégio Notarial do Brasil e Ministério da Saúde. A iniciativa marcou a regulamentação do Sistema de Autorização Eletrônica de Doação de Órgãos1 (AEDO - Provimento n. 164/2024, CNJ), que prevê a autorização eletrônica gratuita por meio da Central Nacional de Doadores de Órgãos. Segundo a campanha, para ser doador bastaria formalizar a vontade por meio de um formulário digital.

Mas não é bem assim... A iniciativa que deveria facilitar o acesso à formalização da declaração, na verdade a dificulta: 1- porque adota o sistema e-notariado (Certificado Digital Notarizado ou Certificado ICP-Brasil), sistema que para liberar a assinatura digital exige que a pessoa compareça a um Cartório para coletar sua ficha de assinatura (se já não a tem); 2- após conseguir gerar a assinatura pelo e-notariado a pessoa ainda tem que agendar um horário com um Cartório para gravar a declaração em videoconferência, confirmando ser doadora de órgãos, tecidos e partes do corpo humano. Só após e com a assinatura digital de um notário, a AEDO ficaria disponível para consulta no Sistema Nacional de Transplantes.

Não foram poucos os relatos recebidos. Os próprios autores que este texto subscrevem tiveram percepções distintas do sistema. Enquanto um facilmente conseguiu produzir o documento, por já ter assinatura (em cartão físico) em cartório, o outro desistiu do processo por todas as dificuldades antes narradas, optando por manter sua declaração (já existente) em diretivas antecipadas de vontade.

Em resumo, o sistema não é intuitivo, exige conhecimentos informáticos que boa parte da população não tem; é restritivo; dificulta o acesso para pessoas que residem distantes de Cartórios; dificulta a finalização da declaração para pessoas que têm dificuldade com equipamentos eletrônicos; impede a declaração por quem não tem meios eletrônicos. Trata-se, portanto, de sistema que não voltou seus olhos à facilitação do acesso à declaração de doador, mas que a burocratiza em prol de uma desnecessária suposta segurança jurídica que, no final das contas, sequer servirá para dispensar a consulta à família para a remoção dos órgãos, de acordo com a legislação atual.

Infelizmente, da maneira proposta, é um sistema que tende ao desuso e que não alcançará as finalidades almejadas.

Por fim, apenas para registrar opções viáveis, se considerada necessária a assinatura digital, o banco de dados poderia usar a assinatura eletrônica fornecida pelo sistema gov.br, mais acessível (embora também possa restringir o acesso em razão das dificuldades de uso de sistemas eletrônicos e inexistência de tecnologia assistiva), tão segura quanto a utilizada pelo e-notariado, mas que não exige nenhum tipo deslocamento presencial. A gravação em vídeo poderia ser uma ação facultativa do declarante e não obrigatória. Se a família pretende questionar capacidade no momento da confecção da declaração, não é a existência de um vídeo que evitará a discussão, daí a importância de também de se pensar na (necessária) mudança da legislação, para retirar o protagonismo da família em uma decisão tão íntima, que por certo deve (ou deveria) ser unicamente do indivíduo em consulta à sua própria consciência.

Em temas que apresentam dilemas complexos, burocratizar a manifestação de vontade é deslocar o foco da discussão para noções idealizadas de suposta segurança jurídica. Dificulta-se a declaração, em vez de se promover ampla adesão e a realização da autonomia decisória.

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1 Disponível aqui.

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Colunistas

Fernanda Schaefer tem pós-Doutorado no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC/PR, bolsista CAPES. Doutorado em Direito das Relações Sociais na UFPR, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha) como bolsista CAPES. Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC/PR. Assessora Jurídica CAOP Saúde MP/PR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Miguel Kfouri Neto é desembargador do TJ/PR. Pós-doutor em Ciências Jurídico-Civis junto à Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Doutor em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP. Mestre em Direito das Relações Sociais pela UEL. Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Maringá. Licenciado em Letras-Português pela PUC/PR. Professor-Doutor integrante do Corpo Docente Permanente do Programa de Doutorado e Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA). Coordenador do grupo de pesquisas "Direito da Saúde e Empresas Médicas" (UNICURITIBA). Membro da Comissão de Direito Médico do Conselho Federal de Medicina.

Rafaella Nogaroli é assessora de desembargador no TJ/PR. Mestre em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Especialista em Direito Aplicado, Direito Processual Civil e Direito Médico. Supervisora acadêmica do curso de especialização em direito médico e bioética da EBRADI. Coordenadora do grupo de pesquisas "Direito da Saúde e Empresas Médicas" (UNICURITIBA), ao lado do prof. Miguel Kfouri Neto. Diretora adjunta e membro do IBERC.

Wendell Lopes Barbosa de Souza é juiz de Direito do TJ/SP desde 2003 e Membro Titular da COMESP (Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do TJ/SP). Pós-doutor e professor da temática "Feminicídio" na pós em "Direitos Humanos, Saúde e Justiça" pelo POSCOHR, sediado na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. Especialista em Direito Penal pela Escola Paulista da Magistratura. Mestre e doutor em Direito Civil Comparado pela PUC/SP. Pesquisa e Curso de Introdução ao Direito Americano na Fordham University – NY/EUA. Professor em diversas instituições. Autor de livro e publicações. MBA Executivo em Gestão da Saúde pela FGV.