Migalhas de Direito Médico e Bioética

Uma tríade no Direito Penal médico - Uma breve teoria Geral da responsabilidade penal médica – Parte I

Na situação de suspeita de aborto praticado pela própria paciente, o Médico não deve promover a comunicação do fato à Autoridade Policial, sob pena de incidir na quebra do sigilo médico profissional e responder na esfera criminal e ético-profissional, de acordo com as mais recentes decisões do c. STJ do ano de 2023.

6/5/2024

1. Introdução

Na situação de suspeita de aborto praticado pela própria paciente, o Médico não deve promover a comunicação do fato à Autoridade Policial, sob pena de incidir na quebra do sigilo médico profissional e responder na esfera criminal e ético-profissional, de acordo com as mais recentes decisões do c. STJ do ano de 2023.

Pois bem, essa é a ideia básica que pretendo deixar registrada ao final dessa tríade de textos de ingresso na Coluna Migalhas de Direito Médico e Bioética, agora na qualidade de um dos Coordenadores. Brevemente, portanto, registro meus cumprimentos e agradecimentos ao Migalhas, ao IMKN - Instituto Miguel Kfouri Neto, na pessoa do Mestre Kfouri e de sua Presidente Dra. Rafaella Nogaroli, aos Coordenadores Dra. Fernanda Schaefer e Dr. Igor Mascarenhas, aos Caros Amigos do Instituto MKN e aos prezados leitores desta valorosa coluna, razão última de nossos trabalhos por aqui.

Importantíssimo, mas subestimado – essa a atual condição de estudo científico do Direito Penal Médico no Brasil. Realmente, não há necessidade de grandes incursões para se chegar a essa notória conclusão, bastando fazer uma verificação do número de livros, aulas, lives e seminários em geral tendo como objeto a Responsabilidade Civil Médica, comparando com os trabalhos acadêmicos desenvolvidos na temática da Responsabilidade Penal Médica.

A impressão que tenho, sinceramente, é que a velha tripartição das esferas de Responsabilidade Médica (Responsabilidade Civil, Responsabilidade Penal e Responsabilidade Ética) está praticamente lacunosa, quase que esquecido um de seus pilares: o Direito Penal Médico.

Nesse cenário, não custa reiterar que nós – os Juristas Especialistas no Direito Médico – não podemos descurar do Direito Penal Médico, já que o eventual cometimento do Erro Médico vai acarretar, em termos de responsabilidade jurídica, duas vertentes imediatas de responsabilização: a civil e a penal – ambas com intersecções muito próximas.

Em outros termos de formulação, o Advogado que se proponha a atuar no consultivo e contencioso do Direito Médico na defesa dos direitos do Médico, para que possa assessorar o Profissional de Saúde de maneira integral sob o ponto de vista de sua proteção jurídica, deve conhecer, além da Responsabilidade Civil e Ética Médica, o próprio Direito Penal Médico.

A modesta recomendação nesse sentido seria muito confortável de minha parte, se não fosse para fornecer na sequência um conteúdo que considero mínimo para introduzir o Jurista na temática com uma visão panorâmica do Direito Penal Médico, pinçando, a seguir, uma de suas questões mais polêmicas e de vanguarda que tem gerado graves consequências profissionais e jurídicas, inclusive penais, aos Médicos: a questão da quebra do sigilo médico na suspeita de aborto praticado pela própria paciente.

Dessa forma, procurando fornecer um material de mero início de estudos no Direito Penal Médico, segue uma série de 3 artigos jurídicos com a seguinte cronologia: Parte I - Uma Breve Teoria Geral da Responsabilidade Penal Médica; Parte II – Crimes em Espécie Passíveis de Cometimento na Medicina; Parte III - A Questão do Sigilo Médico na Suspeita de Aborto pela Paciente.

Os objetivos centrais que impulsionam essa série de artigos sobre o Direito Penal Médico são os seguintes: 1) demonstrar aos Profissionais de Medicina que a prática anterior de determinadas condutas acabou resultando na instauração de inquéritos policiais e mesmo processos criminais, alguns deles culminando na aplicação de sanções penais contra os Médicos; 2) que, portanto, tais condutas devem ser evitadas para que os Médicos não suportem futuramente as mesmas consequências legais e prejudiciais no exercício de sua profissão; 3) preparar o Advogado Especialista no Direito Médico a prestar escorreita consultoria preventiva ao Profissional de Medicina, para que não incida nas mesmas condutas potencialmente passíveis de tipificação criminal e defendê-lo criminalmente no caso de já ter sido instaurado o contencioso procedimento penal – seja o inquérito ou o processo criminal.

Visando o alcance dos 3 objetivos acima e concluindo essa introdução, ressalto que essa percepção acerca da importância do fomento do estudo do Direito Penal Médico decorre da minha própria trajetória pela Jurisdição Criminal há mais de 20 anos, inclusive como Juiz Titular de Vara Criminal no Foro Central da Capital de São Paulo e hoje como Juiz Presidente do Tribunal do Júri, onde questões como a distinção entre dolo eventual e culpa consciente – com consequências tão importantes na seara dos delitos médicos, como veremos – sempre estão em evidência.

Essa mesma trajetória de carreira profissional, quando transportada para os trabalhos no âmbito científico-acadêmico de pesquisa, sempre me impulsionou a incluir o Direito Penal Médico nos cursos sob minha coordenação, e agora o seu conteúdo vem devidamente sistematizado no capítulo denominado “CRIMES MÉDICOS” no livro recém-lançado: “O ERRO MÉDICO NOS TRIBUNAIS”1.

O livro é fruto da tese de pós-doutorado pelo POSCOHR da Universidade de Coimbra, na linha de pesquisa “Direitos Humanos, Saúde e Justiça”, contando com o prefácio de Sua Excelência o Ministro Paulo Dias de Moura Ribeiro do STJ, obra e capítulo dos quais retiramos as fontes para a construção desse breve panorama do Direito Penal Médico, que passo a oferecer com plena satisfação e vivo agradecimento pela sua leitura!

2. Afinal, o que é um crime na área médica?

É importante notar, desde logo, que a diferenciação que se estabelece entre o erro médico e a iatrogenia, assim como suas consequências para a responsabilidade civil médica, tem a mesma importância para a responsabilidade penal do Médico.

Com efeito, da mesma maneira, só poderá haver a responsabilização penal do Médico se ficar demonstrado que o dano suportado pelo paciente tem nexo causal com uma conduta médica culposa por negligência, imprudência ou imperícia – ou, excepcionalmente, por dolo eventual, como veremos.

De outro lado, se ficar demonstrado que o dano suportado pelo paciente tem como causa um fator iatrogênico, isto é, não ligado ao erro médico, o profissional não deverá responder criminalmente pelo prejuízo suportado pelo paciente.

Dessa forma, temos o seguinte quadro para que um Médico possa ser condenado criminalmente por uma conduta sua: o dano suportado pelo paciente deve guardar nexo causal com uma ação culposa ou dolosa (por dolo eventual) do Médico; e mais, diferentemente lá da responsabilidade civil, aqui na responsabilidade penal deve haver uma previsão expressa na lei penal de que esse fato – exatamente como ocorrido em todas as suas circunstâncias – configura um crime e possui uma pena previamente cominada no ordenamento jurídico.

Na esfera da responsabilidade penal, portanto, a mesma conduta médica objeto de uma ação civil indenizatória poderá ser analisada à vista da legislação penal do país, para a verificação se a ação ou omissão praticada pelo profissional de saúde se enquadra em alguma das hipóteses legais previstas como delito.

Terá vez a responsabilização penal se a conduta médica for prevista como crime na lei penal brasileira e a sanção será a imposição de uma pena criminal, que pode ser desde uma multa até a reclusão de quem atuou com culpa ou, excepcionalmente, impulsionado em sua conduta pelo denominado dolo eventual – que é o fato de assumir o risco de produzir um dano.

Vale dizer que não se cogita, na prestação de serviços médicos, da prática de um ato criminal lastreado no dolo direto, que é a vontade livre e consciente da realização da ação delituosa voltada para a lesão da vítima ou provocação de sua morte – como, por exemplo, no totalmente excepcional e trágico Caso Pavesi – que nem prefiro tratar como um caso médico.

3. Crimes por ação e omissão do Médico  

No mais das vezes, como estudamos na responsabilidade civil médica, a conduta do Médico causadora do dano se dá por meio de uma ação, isto é, de um fazer, de uma conduta positiva. Se essa ação for culposa e causar um dano previsto na lei penal como crime, teremos um crime médico por ação médica.

Mas, o mesmo resultado danoso ao paciente previsto como crime pode decorrer de uma omissão médica, quando o profissional tinha o dever legal de agir e não o fez, concluindo-se, então, que houve crime médico por omissão médica.

Veja-se como se dá a relação de causalidade na ação e na omissão nos crimes médicos de acordo com a previsão do Código Penal brasileiro:

Art. 13 - O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido.

Relevância da omissão

§ 2.º - A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem:

a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; 

b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado; 

c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado.

Como exemplo, temos abaixo a hipótese de uma verdadeira tragédia provocada por uma ação médica considerada como delituosa que ceifou a vida de vários pacientes:

Apelação cível. Ação de indenização. Erro médico. Sentença de parcial procedência. Recurso da parte ré. Alegada ausência de nexo de causalidade entre a conduta do médico réu e o óbito da filha dos autores. Rejeição. Responsabilidade do profissional que já foi apreciada pelo juízo da vara criminal. Culpabilidade do réu que foi reconhecida em relação ao delito de homicídio culposo decorrente de erro médico. Impossibilidade de rediscussão. Parte que desrespeitou as orientações emitidas pela anvisa para exames semelhantes ao realizado pela filha dos autores (endoscopia). Uso da substância lidocaína na forma contraindicada pelas autoridades competentes. Conduta que levou a óbito a filha dos autores, além de outros pacientes que compareceram à clínica no dia dos fatos. Responsabilidade solidária dos apelantes configurada. Dever de indenizar inconteste. Dano moral. Pretendida a redução do quantum arbitrado. Impossibilidade. Perda prematura de um filho. Valor que não se mostra exorbitante quando ponderada a dor incomensurável dos autores. Manutenção que se impõe. Pensão mensal vitalícia. Dependência financeira presumida. Família de baixa renda. Parte ré que ainda objetiva limitar o encargo para a data em que a filha dos autores completaria 25 (vinte e cinco) anos. Não acolhimento. Teto de percepção da verba estipulado pelo juízo a quo em 60 (sessenta) anos de idade. Entendimento do superior tribunal de justiça no sentido de perpetuar a verba até o momento em que a de cujus faria 65 (sessenta e cinco) anos de idade. Reforma da sentença que, contudo, é inviável, ante a ausência de recurso dos autores no tópico. Fixação de honorários recursais. Recurso conhecido e desprovido.2 (grifei)

De outro lado, segue uma outra hipótese de homicídio, essa agora por omissão médica:

REVISÃO CRIMINAL. Homicídio culposo. Artigo 121, §§ 3.º e 4.º, do CP. Erro médico. Condenação por culpa decorrente de negligência e imperícia. Conduta omissiva imputada a cirurgião plantonista em hospital. Atendimento a vítima com quadro de "abdômen agudo cirúrgico". Inação por não analisar as imagens da tomografia solicitada pelo próprio peticionário no dia da entrada da paciente no pronto socorro e também por não ter passado o caso a outro colega para avaliação do quadro com a necessária celeridade. Contribuição da conduta do corréu para a ocorrência do resultado típico. Comprovação de avaliação tardia e incorreta dos exames efetuados pelo médico cirurgião que sucedeu o peticionário no atendimento da ofendida. Nexo causal entre a omissão e o resultado morte, advindo de quadro infeccioso generalizado oriundo de "apendicite aguda". Condutas sucessivas e concorrentes para agravamento do quadro clínico e consequente óbito. Pretendida rescisão do julgado com base em nova prova de inocência constituída por laudo pericial produzido na demanda indenizatória em trâmite no juízo cível. Pleito fundado no artigo 621, inciso III, do CPP. Elemento inapto à desconstituição do julgado. Condenação fundada em laudo do IMESC e nos elementos colhidos no procedimento ético profissional do CREMESP. Condenação mantida. PENA. Acréscimo de 2/3 fundado na gravidade da culpa. Consideração de aspectos que não extrapolam as elementares do próprio tipo culposo. Ausência de circunstância extraordinária a justificar maior reprovabilidade da conduta. Afastamento. Causa de aumento da inobservância de regra técnica de profissão (§ 4.º). Manutenção. Reprimenda concretizada em 1 ano e 4 meses de detenção no regime aberto. Substituição da privativa de liberdade por duas restritivas de direitos. Pedido rescisório indeferido. Concessão, no entanto, de habeas corpus de ofício para efetuar a sobredita redução da pena.3 (grifei)

4. Excludentes de ilicitude médica – não há crime nessas hipóteses     

Trata-se de situações nas quais, muito embora seja provocado um dano ao paciente, a conduta de quem causou o prejuízo está justificada e amparada pela legislação brasileira.

As excludentes de ilicitude penal médica são as mesmas do art. 23 do Código Penal:

Art. 23 - Não há crime quando o agente pratica o fato:

I - Em estado de necessidade;

II - Em legítima defesa;

III - Em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.

No Direito Médico em específico, não vislumbramos a hipótese de legítima defesa, mas vamos trazer dois exemplos das duas outras causas excludentes de ilicitude médica.

a) Estado de necessidade, que vem detalhado no art. 24 do Código Penal:

Art. 24 - Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se.

Exemplo: aborto praticado por médico quando não há outro meio de salvar a vida da gestante (art. 128, I, do CP).

b) Estrito cumprimento do dever legal ou exercício regular de um direito como previsto no artigo 23 do CP, ocorrendo nas situações em que o médico pratica uma ação no exercício legal e regulamentar de sua profissão, sem possibilidade de ser punido por isso.

Exemplo: o aborto com o consentimento da gestante, quando a gravidez resulte de estupro (art. 128, II, do CP).

5. A suspensão do exercício da Medicina imposta como pena alternativa criminal

As chamadas penas restritivas de direitos ou alternativas substituem a pena privativa de liberdade (reclusão ou detenção) quando a lei permite. Segundo o art. 43 do Código Penal, são as seguintes: I - prestação pecuniária; II - perda de bens e valores; III - limitação de fim de semana; IV - prestação de serviço a comunidade ou a entidades públicas; V - interdição temporária de direitos.

A questão que se coloca é se o juiz criminal, ao reconhecer a existência de um crime e fixar uma sanção criminal, pode substituir a pena privativa de liberdade pela pena alternativa prevista no inciso V do art. 43 acima: a interdição temporária de direitos na modalidade suspensão do exercício da Medicina.     

Por mais que não se concorde com essa solução, verifica-se que o Superior Tribunal de Justiça ratificou a decisão das instâncias inferiores num caso em que a pena privativa de liberdade do médico foi substituída pela suspensão do exercício de sua profissão:

Trata-se de habeas corpus com pedido liminar impetrado em favor de MARCELO FIGUEIREDO SOUZA COSTA, apontando como autoridade coatora o TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS GERAIS (Apelação n. 1.0343.11.000949-9/001). Depreende-se dos autos que o réu foi condenado às penas de 1 ano e 8 meses de reclusão e 4 meses de detenção, em regime aberto, e ao pagamento de 20 dias-multa, pela prática dos delitos inscritos nos arts. 121, §§ 3.º e 4.º, e 319, c/c o art. 69, todos do Código Penal (homicídio culposo circunstanciado e prevaricação). A sanção corporal foi substituída por prestação de serviços à comunidade e interdição temporária de direitos, consistente na proibição do exercício da Medicina pelo tempo da pena privativa de liberdade aplicada. Ante o exposto, denego a ordem. Outrossim, julgo prejudicado o pedido de reconsideração de e-STJ de fls. 229/234.4 (grifei)

Guardado o devido respeito, segundo meu entendimento, a decisão nesse sentido acaba por subtrair do Médico a garantia fundamental ao exercício do seu ofício ou profissão e não pode ser aplicada como sanção de natureza criminal, mas sim deve ser reservada à analise da responsabilização ético-profissional pelo órgão de classe competente.

6. Relativa independência entre as esferas criminal e cível

Sabemos que, pelo princípio da independência das instâncias, em tese, a violação de um só dever, por parte do Médico, caracterizando-se eventualmente ilícito penal e civil numa só conduta médica, pode desencadear, em princípio, responsabilização nas duas instâncias concomitantemente e de modo independente. Isto é, o Médico pode ser absolvido em uma instância e vir a ser condenado em outra, pois, em regra e em princípio, as esferas de responsabilidade são autônomas entre si – penal e civil.

É a norma estabelecida na primeira parte do art. 935 do Código Civil, fixando, em princípio, uma certa independência entre as instâncias cível e criminal de apuração da responsabilidade médico-jurídica, conforme abaixo:

Art. 935 - A responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal.

Porém, veja-se que, na segunda parte do mesmo art. 935 do CC, a regra da independência absoluta entre as instâncias é mitigada, criando-se uma causa de vinculação da Justiça Cível na hipótese de a Justiça Criminal fixar de maneira cabal acerca da existência e da autoria de um fato criminal médico.

Em outras palavras, uma vez declarado definitivamente pela Justiça Criminal que houve um crime médico e que determinado profissional é autor deste mesmo fato, essas questões não podem mais ser objeto de discussão na Justiça Cível – aqui caberá apenas a fixação da quantia da indenização médica e sua execução patrimonial:

Apelação cível. Erro médico. Indenização. Falecimento do filho da autora. Erro de diagnóstico, que culminou no óbito do filho da autora. Ação julgada improcedente. Responsabilidade solidária (art. 7.º do CDC). Preliminar de ilegitimidade passiva da corré, previna rejeitada. Inconformismo da autora. Reconhecimento da culpa dos apelantes no âmbito penal. Acórdão que condenou os réus por homicídio culposo. Aplicação do artigo 935 do cc. Impossibilidade de discussão sobre a existência do fato ou sobre quem seja o autor. Questões já decididas na esfera criminal. Extinção da punibilidade que não afasta a responsabilidade civil - dever de indenizar. Art. 67, II, do CPP). Precedentes do STJ. Sentença penal condenatória considerada título executivo judicial (art. 515, VI, do CPC). Dano material restrito às despesas com sepultamento. Reparação devida. Honorários contratuais e despesas extrajudiciais que não comportam reparação. Dano moral evidente. Indenização arbitrada em R$50.000,00. Dado provimento parcial ao recurso5 (grifei)

De outro lado, se o Médico foi beneficiado com uma absolvição no juízo criminal, mas essa absolvição decorreu de uma dúvida na formação da culpa, por exemplo, por insuficiência de provas, o paciente, ainda assim, continua com a oportunidade de ajuizar uma ação civil indenizatória contra o profissional para a obtenção de uma indenização.

7. Dolo eventual x culpa consciente e as principais diferenças legais práticas dessa distinção no cometimento de um crime na área médica – o caso do homicídio

Há uma diferenciação muito sofisticada e técnica que merece uma breve menção, no que tange à distinção entre dolo eventual x culpa consciente. Na culpa consciente, o agente, confiando em suas habilidades, pratica o ato prevendo que seja possível a ocorrência de algum resultado adverso, mas confia firmemente que isso não ocorrerá. No dolo eventual, o agente também prevê a possibilidade da ocorrência de um resultado adverso, embora não o deseje diretamente, mas acaba assumindo o risco de produzir o dano por força de sua conduta.

As diferenças básicas entre o reconhecimento de um homicídio na modalidade culposa e na modalidade de dolo eventual são de duas vertentes: uma – de conteúdo – sob o ponto de vista da própria intensidade da sanção criminal; e outra – de forma – sob o ponto de vista do procedimento criminal a ser adotado em cada uma das situações. Explico.          

No caso de homicídio culposo, o processo será julgado por um Juiz de Direito monocrático e a pena é bem mais branda (detenção de 1 a 3 anos). No caso de homicídio com dolo eventual, a pena é bem mais elevada (reclusão de 6 a 20 anos), com o seguinte “detalhe” que muda todo o panorama de exposição do profissional: o julgamento final é feito pelo Tribunal do Júri Popular da Comarca onde o serviço médico foi prestado.

Dito isso, na Parte II dessa série de Direito Penal Médico, veremos dois casos relatados pelo Eminente Desembargador Miguel Kfouri Neto do Tribunal de Justiça do Paraná, cada qual num sentido – um homicídio culposo e um homicídio com dolo eventual, ambos na área médica.

__________

1 SOUZA, Wendell Lopes Barbosa de. O Erro Médico nos Tribunais. Editora Foco, abril de 2024, cap. 12: Crimes Médicos.

2 BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Apelação 0000045-30.2012.8.24.0037/SC, Relator Desembargador Sérgio Izidoro Heil, Julgamento: 07/03/2023.

3 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Processo 2132292-17.2020.8.26.0000, 8.º Grupo de Direito Criminal, Relator Desembargador Otávio de Almeida Toledo, Julgamento: 08/04/2021, Publicação: 08/04/2021.

4 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas corpus 684954 MG 2021/0248166-0, Relator Ministro Antônio Saldanha Palheiro, Julgamento: 05.10.2021.

5 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Processo 0050906-85.2012.8.26.0547, 8.ª Câmara de Direito Privado, Relator Desembargador Silvério da Silva, Julgamento: 18/11/2020, Publicação: 01/12/2020.

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Fernanda Schaefer tem pós-Doutorado no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC/PR, bolsista CAPES. Doutorado em Direito das Relações Sociais na UFPR, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha) como bolsista CAPES. Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC/PR. Assessora Jurídica CAOP Saúde MP/PR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Miguel Kfouri Neto é desembargador do TJ/PR. Pós-doutor em Ciências Jurídico-Civis junto à Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Doutor em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP. Mestre em Direito das Relações Sociais pela UEL. Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Maringá. Licenciado em Letras-Português pela PUC/PR. Professor-Doutor integrante do Corpo Docente Permanente do Programa de Doutorado e Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA). Coordenador do grupo de pesquisas "Direito da Saúde e Empresas Médicas" (UNICURITIBA). Membro da Comissão de Direito Médico do Conselho Federal de Medicina.

Rafaella Nogaroli é assessora de desembargador no TJ/PR. Mestre em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Especialista em Direito Aplicado, Direito Processual Civil e Direito Médico. Supervisora acadêmica do curso de especialização em direito médico e bioética da EBRADI. Coordenadora do grupo de pesquisas "Direito da Saúde e Empresas Médicas" (UNICURITIBA), ao lado do prof. Miguel Kfouri Neto. Diretora adjunta e membro do IBERC.

Wendell Lopes Barbosa de Souza é juiz de Direito do TJ/SP desde 2003 e Membro Titular da COMESP (Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do TJ/SP). Pós-doutor e professor da temática "Feminicídio" na pós em "Direitos Humanos, Saúde e Justiça" pelo POSCOHR, sediado na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. Especialista em Direito Penal pela Escola Paulista da Magistratura. Mestre e doutor em Direito Civil Comparado pela PUC/SP. Pesquisa e Curso de Introdução ao Direito Americano na Fordham University – NY/EUA. Professor em diversas instituições. Autor de livro e publicações. MBA Executivo em Gestão da Saúde pela FGV.