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O vilão dos quesitos periciais: como evitar o "prejudicado"?

A interseção entre conhecimentos científicos e processuais: a importância da prova pericial e dos quesitos periciais estratégicos como elemento de formação do livre convencimento motivado do juiz.

8/4/2024

Nas ações judiciais em Direito Médico e da Saúde, o esclarecimento dos fatos depende de conhecimentos científicos que o juízo não possui. Entra em cena, então, a ciência como meio de prova judicial, a prova científica.

Na prática, isso significa a necessidade de produção de uma prova pericial, no mais das vezes, uma perícia médica judicial. O resultado dessa prova pericial, expresso no laudo pericial, pode influenciar diretamente na decisão. Existe uma certa deferência do juiz ao laudo, ele se utiliza dos conhecimentos apresentados pelo perito para decidir. Portanto, o laudo médico pericial desempenha um papel importante na formação do livre convencimento motivado do juiz. Frequentemente, a sentença reflete as conclusões científicas nele apresentadas.

De tal forma que o êxito nessas ações está intimamente ligado ao resultado favorável da prova pericial, o qual, por sua vez, depende do convencimento do perito médico do juízo. As partes da ação buscam, por meio de argumentos científicos, persuadir o perito para que ele forme determinada convicção sobre os fatos. Nesse contexto, a elaboração de quesitos periciais desempenha um papel estratégico. Quesitos são perguntas direcionadas ao perito que ajudam a esclarecer os pontos controvertidos do caso e a delimitar o escopo da perícia. Eles são essenciais porque direcionam a análise do perito para os pontos-chaves do caso, facilitando, assim, a compreensão e a avaliação do juízo.

Neste texto examino a importância estratégica dos quesitos periciais e aponto algumas práticas que podem auxiliar advogados a aprimorar suas técnicas de quesitação e a extrair o máximo desse instrumento processual.

Faço um recorte para tratar dos quesitos periciais no processo civil. Conforme estabelecido no art. 473 do CPC, o laudo pericial deve incluir resposta conclusiva a todos os quesitos apresentados pelo juiz e pelas partes, sejam quesitos iniciais, suplementares (artigo 469) ou de esclarecimento (artigo 477). Essa regra processual, no entanto, não consegue evitar um problema prático enfrentado pelas partes: a resposta "prejudicado". Esta resposta, além de não ser conclusiva, não oferece pistas que auxiliem na interpretação do seu significado dentro do contexto fático específico, o que, evidentemente, prejudica a capacidade de argumentação das partes.

Quando o perito médico utiliza as expressões "prejudicado" ou "não se aplica" como resposta a um quesito pericial isso significa que ele não conseguiu oferecer uma resposta direta a esse quesito. Essa situação pode ocorrer por diversas razões. Destacarei aqui algumas que estão sob controle de quem formula o quesito:

  1. Ausência de informações essenciais para a análise: ocorre quando a resposta ao quesito depende de dados que não constam nos autos (problema de instrução), não existem na ciência médica (Medicina Baseada em Evidências) ou que só poderiam ser conhecidos caso o perito tivesse presenciado os fatos.
  2. Falta de clareza ou coerência textual (quesitos confusos):
    ocorre quando o quesito não é claro e sua mensagem se torna incompreensível. Ou seja, quando o perito sequer consegue entender o que lhe foi perguntado.
  3. Limitações da perícia: ocorre quando o quesito ultrapassa os limites de designação do perito ou refoge ao escopo da perícia. Por exemplo, quando o quesito adentra o campo do Direito, que está fora da área de expertise do perito médico.
  4. Impossibilidade fática de conclusões definitivas: ocorre quando o perito não consegue chegar a conclusões definitivas sobre determinados pontos controversos do caso devido à falta de evidências conclusivas, à limitações da ciência médica ou à dependência de interpretação subjetiva de evidências contraditórias.

Para tratar da função estratégica dos quesitos periciais, parto de duas premissas. Em primeiro lugar, os quesitos asseguram que o perito analise as principais teses e evidências do caso. De modo geral, não há mecanismo para assegurar que determinada tese ou evidência foi localizada, examinada e valorada pelo perito. Mas se essa tese ou evidência é inserida nos quesitos, cria-se uma garantia, tendo em vista que a resposta aos quesitos é obrigatória por força de lei. Os quesitos funcionam, portanto, como um controle poderoso sobre a atividade pericial.

Em segundo lugar, os quesitos representam o desfecho de um encadeamento de atos processuais de interesse médico-legal. Para ilustrar, utilizo um exemplo concreto. Em uma ação de responsabilidade médica há, inicialmente, uma instrução técnica pré-processual. Em seguida, há uma Análise Técnica de Viabilidade para verificar se as teses aventadas possuem base científica. Na sequência, as teses de maior nível de evidência são selecionadas e inseridas na ação. Somente após esses atos é que as partes indicam médico assistente técnico e apresentam os quesitos periciais. Ou seja, muito antes de apresentar os quesitos as partes precisam ter em mãos teses científicas fortes. São essas teses que darão sustentação aos quesitos.

Figura 1: Etapas que precedem a apresentação dos quesitos periciais.

Os quesitos desempenham funções fundamentais na ação judicial, incluindo:

Veja esse exemplo.

Quesito genérico:

Quesito estratégico:

Note-se que, ao reformular o quesito de maneira técnica e específica, a parte consegue direcionar a atenção do perito para as suas teses, influenciar sua análise e fortalecer seus argumentos. Isso implica em mudança de uma abordagem passiva para uma abordagem ativa no processo pericial. Essas alterações transmitem uma mensagem clara ao perito: a parte que apresenta esse quesito possui um conhecimento detalhado dos fatos, está familiarizada com as normas técnicas pertinentes e conhece o resultado da comparação entre ambos (fatos x padrões aceitos pela ciência médica). Além disso, quesitos sofisticados reduzem a necessidade de formulação de quesitos de esclarecimento e de impugnação ao laudo pericial.

De que forma, então, as partes podem formular quesitos periciais que reduzam a incidência de respostas “prejudicadas” e sejam capazes de convencer o perito médico nas ações em Direito Médico e da Saúde?

1. Tenha clareza sobre as suas teses científicas

É crucial compreender que, na perícia médica judicial, o foco está nas teses científicas, não nas teses jurídicas. O perito quer saber quais teses científicas estão dando sustentação às teses jurídicas. É impossível formular quesitos periciais que convencem se você não possui teses científicas fortes.

2. Não apresente quesitos genéricos

Os quesitos genéricos, comumente utilizados de forma repetida em diferentes ações, representam um grande risco para as partes. Além de não contribuírem para comprovar as teses defendidas, podem direcionar o debate para pontos que são contrários a elas.

3. Não apresente quesitos que não se conectam com as suas teses

Quesitos como "qual o diagnóstico?" ou "qual o tratamento?" não ajudam as partes a provarem as suas teses. Do ponto de vista estratégico, os quesitos não são o melhor instrumento para se esclarecer dúvidas que poderiam ser facilmente esclarecidas de outra forma, com uma consulta aos documentos médicos do caso, por exemplo. Os quesitos devem guiar o perito para que ele percorra as linhas argumentativas das partes, passando pelas principais teses e evidências. Após tomar ciência dessas linhas, o perito determina qual tem maior probabilidade de ser verdadeira e estar em conformidade com a ciência médica (verossimilhança e correspondência).

4. Não pergunte a opinião do perito, pergunte a “opinião” da Medicina Baseada em Evidências

O perito é nomeado pelo juízo como um preposto da ciência médica, está incumbido de apresentar, de forma acessível ao juízo e às partes, o entendimento da ciência médica sobre os fatos controversos em questão. A partir da utilização da pirâmide de evidências as partes conseguem reduzir a subjetividade e a discricionariedade nas respostas dos quesitos. 

5. Seja claro e direto

Se o texto do quesito é confuso, há uma grande probabilidade de ele não ser compreendido. E se não é compreendido, dificilmente será respondido de forma satisfatória. Quanto mais longo é o quesito, maior a chance de ele se tornar truncado. Caso a questão aborde um assunto complexo e impossível de ser tratado de forma concisa, é preferível dividir quesitos extensos em dois ou mais quesitos menores para garantir clareza na comunicação.

6. Quesite comparando e contrastando

Nas ações judiciais envolvendo Direito Médico e da Saúde a análise médico pericial crucial baseia-se na comparação dos fatos (registros dos prontuários médicos e demais documentos de interesse médico-legal) com os padrões técnicos estabelecidos pela ciência médica (Medicina Baseada em Evidências). Esse é o quebra-cabeça que será montado pelo perito. Quando as partes apresentam essa análise comparativa nos quesitos, ou seja, quando apresentam o quebra-cabeça já montado, isso gera um efeito de persuasão no perito, pois ele consegue rapidamente compreender a estrutura do caso.

7. Utilize elementos visuais para destacar as suas principais evidências

Os quesitos são uma ferramenta valiosa para as partes destacarem de forma objetiva os elementos essenciais de sua argumentação: suas teses científicas e suas evidências científicas. Ao ancorar os quesitos nesses pontos e ao empregar recursos visuais para apresentá-los, as partes favorecem a compreensão dos fatos pelo perito, tornando-a rápida e acessível.

8. Inclua a frase “em caso de resposta prejudicada, esclareça o motivo”

Se todas as estratégias anteriores não surtirem efeito, as partes podem assegurar que a resposta “prejudicada” venha acompanhada de explicações sobre a sua causa. Isso permitirá reformular o quesito para uma nova apresentação (quesitos de esclarecimento), recuperando assim as chances de provar as teses e de convencer o perito.

Investir tempo e esforço na elaboração de quesitos periciais sofisticados pode ser crucial para determinar se um laudo pericial será favorável ou desfavorável. Quando as partes são representadas por advogados que dominam técnicas de quesitação estratégica, elas possuem maior capacidade de influenciar o resultado da perícia por meio da apresentação de subsídios científicos ao perito médico. O êxito nas ações em Direito Médico e da Saúde passa pelo êxito na perícia médica judicial. E a utilização de quesitos que convencem e convertem emerge como uma ferramenta fundamental para as partes alcançarem esse objetivo. 

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Fernanda Schaefer tem pós-Doutorado no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC/PR, bolsista CAPES. Doutorado em Direito das Relações Sociais na UFPR, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha) como bolsista CAPES. Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC/PR. Assessora Jurídica CAOP Saúde MP/PR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Miguel Kfouri Neto é desembargador do TJ/PR. Pós-doutor em Ciências Jurídico-Civis junto à Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Doutor em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP. Mestre em Direito das Relações Sociais pela UEL. Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Maringá. Licenciado em Letras-Português pela PUC/PR. Professor-Doutor integrante do Corpo Docente Permanente do Programa de Doutorado e Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA). Coordenador do grupo de pesquisas "Direito da Saúde e Empresas Médicas" (UNICURITIBA). Membro da Comissão de Direito Médico do Conselho Federal de Medicina.

Rafaella Nogaroli é assessora de desembargador no TJ/PR. Mestre em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Especialista em Direito Aplicado, Direito Processual Civil e Direito Médico. Supervisora acadêmica do curso de especialização em direito médico e bioética da EBRADI. Coordenadora do grupo de pesquisas "Direito da Saúde e Empresas Médicas" (UNICURITIBA), ao lado do prof. Miguel Kfouri Neto. Diretora adjunta e membro do IBERC.

Wendell Lopes Barbosa de Souza é juiz de Direito do TJ/SP desde 2003 e Membro Titular da COMESP (Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do TJ/SP). Pós-doutor e professor da temática "Feminicídio" na pós em "Direitos Humanos, Saúde e Justiça" pelo POSCOHR, sediado na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. Especialista em Direito Penal pela Escola Paulista da Magistratura. Mestre e doutor em Direito Civil Comparado pela PUC/SP. Pesquisa e Curso de Introdução ao Direito Americano na Fordham University – NY/EUA. Professor em diversas instituições. Autor de livro e publicações. MBA Executivo em Gestão da Saúde pela FGV.