Migalhas de Direito Médico e Bioética

Além da lei: os desafios do aborto legal no Brasil

Os debates pela descriminalização da interrupção voluntária da gestação têm se mostrado centrais em articulações dos movimentos feministas na América Latina e no Caribe, onde há países em que a legislação sobre o tema é bastante restritiva, como o Brasil.

4/12/2023

Aos fins de setembro de 2023, um conceito ainda pouco explorado juridicamente ganhou maior visibilidade a partir do voto da Ministra Rosa Weber no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442: o de justiça social reprodutiva.

Apontado no voto como uma forma de resposta aos deveres fundamentais de proteção aos direitos sexuais e reprodutivos, derivados do desenho constitucional brasileiro, a Ministra se posicionou pela não recepção parcial dos art. 124 e 126 do Código Penal, a fim de descriminalizar o aborto até a 12ª semana de gestação. O julgamento da ADPF, contudo, foi interrompido, ante o pedido de destaque feito pelo Ministro Luís Roberto Barroso, retirando a ação do Plenário Virtual e encaminhando-a para ser julgada no ambiente físico.

Os debates pela descriminalização da interrupção voluntária da gestação têm se mostrado centrais em articulações dos movimentos feministas na América Latina e no Caribe, onde há países em que a legislação sobre o tema é bastante restritiva, como o Brasil. Entretanto, ainda que o aborto permaneça tipificado no ordenamento jurídico brasileiro, fato é que, desde a década de 1940, ele  é permitido quando a gravidez é decorrente de estupro/violência sexual e há risco de vida para a gestante (art. 128, I e II, Código Penal). Em 2012, o STF estendeu a excludente para a gestação de anencéfalos, por meio da ADPF 54.

Em que pese o longo período de estagnação regulatória (entre 1940 e 1990), os procedimentos para acesso ao aborto legal possuem regulamentação - não somente pelos marcos normativos já mencionados, mas também por outras leis, guidelines internacionais - como o recente “Guia sobre cuidados no aborto”, da Organização Mundial da Saúde1, lançado em 2022 -, além da existência de normas infralegais (denominadas soft law interna, como resoluções, portarias, normas técnicas e protocolos) e de jurisprudência.

Como exemplo, citam-se a lei 12.845/2013 (“Lei do Minuto Seguinte”) e o decreto 7.958, de 13 de março de 2013, que estabelecem o atendimento às vítimas de violência sexual; na esfera infralegal, destacam-se a Portaria do Ministério da Saúde n° 1.508, de 1º de setembro de 2005, que estabelece o Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez nos casos previstos em lei, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), determinando os fluxos a serem seguidos por profissionais de saúde no atendimento de situações que se enquadram nas hipóteses legais, bem como as Normas Técnicas do Ministério da Saúde (MS) “Atenção Humanizada ao Abortamento” (2011), “Aspectos jurídicos do atendimento às vítimas de violência sexual – perguntas e respostas para profissionais de saúde (2011)”, “Prevenção e Tratamento dos Agravos à Saúde de Mulheres e Adolescentes Vítimas de Violência Sexual” (2012), e “Atenção às mulheres com gestação de Anencéfalos” (2014). Além disso, a realização do aborto nos casos de outras malformações fetais incompatíveis com a vida foi chancelada pelo Superior Tribunal de Justiça (REsp 1.467.888/GO), que também se manifestou recentemente (março de 2023) reiterando o dever legal de sigilo médico, inclusive em casos de suspeita de crime de aborto provocado pela própria gestante.

Apesar de as  hipóteses permissivas do aborto estarem inseridas em um quadro de legalidade bastante robusto, o acesso a esse direito vem sendo obstaculizado por diversas razões, como: i) a falta de divulgação, estrutura e acesso aos serviços de referência que realizam o procedimento; ii) a imposição de medidas restritivas, como objeção de consciência, exigência de Boletim de Ocorrência ou alvará judicial; iii) a restrição em razão da idade gestacional, dentre outros problemas.

Alguns casos emblemáticos são representativos da problemática desenhada por esses obstáculos. Em 2020, no estado do Espírito Santo, ganhou notoriedade o incidente envolvendo uma criança que, após ser vítima de repetidos abusos sexuais, ficou grávida aos dez anos2. A menina precisou viajar entre estados para realizar o procedimento de aborto legal, uma vez que tal intervenção foi negada em sua cidade natal. Já em 2022, em Santa Catarina, uma investigação conduzida pelos veículos “The Intercept” e Portal Catarinas3 revelou a história de outra criança, de 11 anos, que enfrentou repetidos abusos institucionais, particularmente durante uma audiência presidida por uma juíza, com a participação de uma promotora de justiça, pressionando a criança a prosseguir com a gravidez com frases como: “suportaria ficar mais um pouquinho?”, “queres escolher um nome?” e “você acha que o pai concordaria?”. No mesmo ano, no estado do Piauí, a imprensa divulgou o caso de uma menina de 12 anos, grávida pela segunda vez, expondo os detalhes dos abusos institucionais sofridos, incluindo a designação de um curador especial para o feto4.

Quem trabalha ou pesquisa esse tema sabe que não se tratam de casos isolados. Muito pelo contrário. No documentário intitulado “Além da lei – o aborto legal no Brasil”, lançado em 2018 pela Clínica de Direitos Humanos da Universidade Federal do Paraná (UFPR), relatam-se outras histórias nas quais se constatam as dificuldades de acessar o aborto legal por mulheres vítimas de violência sexual, assim como a visão de profissionais da saúde, juristas e ativistas sobre a questão5.

As sistemáticas ações e omissões por parte do Poder Público relacionadas acima provocaram, inclusive, o ajuizamento, em 2022, da ADPF 989, que objetiva o reconhecimento do Estado de Coisas Inconsticional relativamente ao aborto legal. Importante destacar que, à época da proposição da ação, vigorava a Portaria GM/MS nº 2.561, de 23 de setembro de 2020, que previa a necessidade de o(a) profissional médico(a) comunicar o aborto à autoridade policial responsável. Ademais, naquele ano, havia sido publicada a Nota Técnica “Atenção Técnica para Prevenção, Avaliação e Conduta nos Casos de Abortamento” - atualmente retirada da plataforma virtual do Ministério da Saúde -, na qual se indicam procedimentos obsoletos para se realizar o abortamento, como a curetagem, além de orientar a utilização de critérios não respaldados em guias internacionais de melhores práticas atuais, como o “Abortion Care Guideline”, da OMS (2022), como peso fetal e tempo de gestação em casos de aborto induzido, agravando ainda mais o quadro de inefetividade do aborto legal.

Não menos relevantes são os impactos causados pelas intersecções entre marcadores sociais como gênero, raça e classe no tocante a esse cenário.  De acordo com a Pesquisa Nacional do Aborto (2021), 74% das mulheres que já realizaram um aborto em sua vida eram negras. Em estudo realizado em Minas Gerais sobre as causalidades de mortalidade materna relacionada ao aborto6, apontou-se que 70% das mulheres que vieram a óbito por aborto eram negras. O cotejamento entre esses dados pode indicar maior dificuldade de acesso aos serviços de aborto nos casos permitidos por lei, levando mulheres negras que teriam direito à interrupção a se submeterem a procedimentos inseguros que culminam em sua morte.

Mais recentemente, já em novembro deste ano, no estado do Paraná, uma mulher indígena, vítima de violência sexual, morreu em decorrência do parto após ter o aborto legal negado em virtude da idade gestacional em que se encontrava quando buscou realizar o procedimento (26 semanas). Embora a atual gestão do Ministério da Saúde já tenha se manifestado no âmbito da ADPF 989 no sentido de que “não existe um prazo gestacional fixo para a realização do aborto decorrente de estupro ou qualquer outra circunstância legalmente prevista”, diretrizes e orientações contrárias a esse entendimento continuam a guiar a atuação de gestores e  profissionais da saúde no país.

Como se vê, a carência de normativas e mecanismos positivos que reforcem o dever de implementação e assistência ao aborto legal com base nas melhoras práticas e evidências científicas tem ocasionado múltiplas violações aos direitos fundamentais de meninas, mulheres e demais pessoas com capacidade de gestar, incluindo o direito à vida.

Se buscamos um horizonte de descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação, sem a necessidade de qualquer outra condicionante, é imperativo que o Poder Público e todos os profissionais envolvidos atendam ao dever jurídico de assegurar o acesso ao aborto previsto em lei. Para tanto,  mostra-se necessária a cooperação dos órgãos administrativos competentes, removendo-se os entraves ilegais de ordem regulatória e sanitária que se opõem à concretização do sistema constitucional de justiça social reprodutiva outrora afirmado pela Ministra Rosa Weber em seu voto.

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1 ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Abortion care guideline. Genebra: World Health Organization. 2022.

2 JIMENEZ, Carla. Menina de 10 anos violentada faz aborto legal, sob alarde de conservadores à porta do hospital. 2020. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-08-16/menina-de-10-anos-violentada-fara-aborto-legal-sob-alarde-de-conservadores-a-porta-do-hospital.html. Acesso em: 01 de dez. 2023.

3 GUIMARÃES, Paula et al. Em audiência, juíza de SC induz menina de 11 anos grávida após estupro a desistir de aborto. Portal Catarinas; The Intercept. 20 de jun 2022. Disponível aqui. Acesso em: 01 dez 2023.

4 SENA, Yala. Justiça nomeia defensora para atuar em favor do feto de menina estuprada no Piauí. Folha de S. Paulo. 2 fev. 2023. Disponível aqui. Acesso em 01 dez 2023.

5 O documentário está disponível na plataforma YouTube.

6 Martins, E. F, Almeida, P. F. B, Paixão, C. O, Bicalho, P. G, Errico, L. S. P. Causas múltiplas de mortalidade materna relacionada ao aborto no Estado de Minas Gerais, Brasil, 2000-2011. Cadernos de Saúde Pública, 2017; v. 33, n. 1. Disponível aqui.

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Fernanda Schaefer tem pós-Doutorado no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC/PR, bolsista CAPES. Doutorado em Direito das Relações Sociais na UFPR, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha) como bolsista CAPES. Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC/PR. Assessora Jurídica CAOP Saúde MP/PR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Miguel Kfouri Neto é desembargador do TJ/PR. Pós-doutor em Ciências Jurídico-Civis junto à Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Doutor em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP. Mestre em Direito das Relações Sociais pela UEL. Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Maringá. Licenciado em Letras-Português pela PUC/PR. Professor-Doutor integrante do Corpo Docente Permanente do Programa de Doutorado e Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA). Coordenador do grupo de pesquisas "Direito da Saúde e Empresas Médicas" (UNICURITIBA). Membro da Comissão de Direito Médico do Conselho Federal de Medicina.

Rafaella Nogaroli é assessora de desembargador no TJ/PR. Mestre em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Especialista em Direito Aplicado, Direito Processual Civil e Direito Médico. Supervisora acadêmica do curso de especialização em direito médico e bioética da EBRADI. Coordenadora do grupo de pesquisas "Direito da Saúde e Empresas Médicas" (UNICURITIBA), ao lado do prof. Miguel Kfouri Neto. Diretora adjunta e membro do IBERC.

Wendell Lopes Barbosa de Souza é juiz de Direito do TJ/SP desde 2003 e Membro Titular da COMESP (Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do TJ/SP). Pós-doutor e professor da temática "Feminicídio" na pós em "Direitos Humanos, Saúde e Justiça" pelo POSCOHR, sediado na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. Especialista em Direito Penal pela Escola Paulista da Magistratura. Mestre e doutor em Direito Civil Comparado pela PUC/SP. Pesquisa e Curso de Introdução ao Direito Americano na Fordham University – NY/EUA. Professor em diversas instituições. Autor de livro e publicações. MBA Executivo em Gestão da Saúde pela FGV.