As reflexões aqui expostas foram apresentadas quando da minha participação no Simpósio de lançamento dos livros da Dra. Rafaella Nogaroli, intitulado “Responsabilidade Civil Médica e inteligência artificial: culpa médica e deveres de conduta no século XXI” e dos Dr. Nelson Rosenvald e Felipe Braga Netto, denominado “Responsabilidade Civil: Teoria Geral”, ocorrido na UniCuritiba-PR em outubro de 2023. O referido evento tinha como tema a “Inovação no Poder Judiciário: dilemas da responsabilidade civil para os próximos 30 anos”. Minha contribuição centrou-se na questão do “consentimento do paciente e as novas tecnologias”. Neste artigo, exploramos a intersecção desses temas e discutimos as implicações legais e éticas que emergem à medida que as tecnologias avançam, particularmente ao longo dos próximos 30 anos:
Imagine estar em 06 de outubro 2053 e experimentar a “medicina do futuro”. Você acorda às 05h58min com uma sensação desconfortável no peito e verifica seu sistema de monitoramento vital em seu pulso. Ele detecta uma anomalia em seu ritmo cardíaco e imediatamente aciona um sistema de saúde avançado. Em questão de minutos, um drone equipado com desfibriladores externos automáticos chega e fornece tratamento de desfibrilação rápida, salvando sua vida. Após a estabilização, wearables (dispositivos vestíveis inteligentes que permitem o monitoramento remoto dos pacientes) encaminham informações para uma central médica que encaminha até sua residência um robô cuidador. Ele injeta nanorrobôs em seu corpo, que viajam até o seu coração, localizam bloqueios nas artérias e os eliminam as anomalias ali presentes de forma precisa e eficaz. Em poucas horas, você se recupera completamente, sem a necessidade de cirurgia invasiva. A central de atendimento médico recebe todas essas informações, em segundos analisa esses dados com algoritmos de Inteligência Artificial e propõe um tratamento imediato.
Este é apenas um exemplo do que se projeta como avanço para a medicina em 2050, onde a integração da tecnologia, nanotecnologia e telemedicina proporciona tratamentos mais rápidos, precisos e menos invasivos, garantindo uma qualidade de vida e de sobrevida, incomparáveis com os dias atuais. Para compreendermos como será o consentimento do paciente do futuro se faz necessário conhecer um pouco mais sobre a respeito do cenário que se projeta acerca das tendências e dos avanços tecnológicos na medicina no ano de 2050 e de que maneira isso impactará as mudanças em relação ao consentimento do paciente nesse porvir.
Não obstante o exemplo acima, o tradicional jornal britânico Pulse1 publicou recentemente uma reportagem denominada “Dez maneiras pelas quais a medicina mudará até 2050”, listando as principais mudanças que deveremos testemunhar na área da saúde nos próximos 30 anos:
I) Medicina Personalizada: a genômica e a análise de Big Data permitirão tratamentos mais personalizados. Isso significa que os tratamentos serão ajustados às características genéticas e biomoleculares individuais e ambientais;
II) Impressão 3D de Órgãos: a bioimpressão, ou impressão 3D de tecidos e órgãos, poderá se tornar uma realidade. Isso revolucionará os transplantes, reduzindo listas de espera e problemas de rejeição;
III) Tecnologias Vestíveis e Implantes: dispositivos que monitoram constantemente a saúde do usuário, prevendo problemas antes que se tornem graves;
IV) Robótica: robôs serão cada vez mais comuns em cirurgias, permitindo procedimentos mais precisos e menos invasivos;
V) Terapias Genéticas: tratamentos que visam modificar ou substituir genes defeituosos podem se tornar mais comuns, tratando doenças antes consideradas incuráveis;
VI) Realidade Aumentada e Virtual: estas tecnologias poderão ser usadas em treinamento médico, planejamento cirúrgico e até em algumas terapias;
VII) Nanotecnologia: poderá ser usada para administrar medicamentos de maneira mais precisa, visando apenas células doentes e reduzindo efeitos colaterais;
VIII) Inteligência Artificial (IA): A IA poderá ser usada em diagnósticos, análise de imagens médicas, e até na previsão de surtos e epidemias;
IX) Telemedicina: Consultas e monitoramento à distância serão aprimoradas, com o uso de holograma, e dispositivos caseiros de monitoramento, se tornarão ainda mais comuns, especialmente em áreas remotas;
X) Novas Vacinas e Terapias: Com as lições aprendidas com a pandemia da COVID-19, investimentos em pesquisa de vacinas e terapias antivirais provavelmente continuarão crescendo.
A essa lista ainda se acrescentam terapias com Células-Tronco; interfaces brain-computer; biotecnologia CRISPR; smart drugs; novos métodos de monitoramento contínuo; imuno-oncologia, entre diversas outras promessas que reforçarão a esperança de dias melhores, mas também a importância preservarmos à autodeterminação dos pacientes face às novas tecnologias em saúde.
Do exposto, pode se extrair que a medicina do futuro será cada vez mais multifuncional, caracterizada pelos quatro “P's” fundamentais: preventiva, preditiva, personalizada e proativa. Isso significa que a medicina se concentrará no descobrimento antecipado de doenças, na previsão de riscos individuais, na adaptação dos tratamentos às características individuais e na promoção do bem-estar geral.
Entraremos em uma era onde a robótica e a IA não serão apenas ferramentas, mas assumirão um papel de maior relevância nas decisões em saúde, com as quais interagiremos diariamente. Assistentes virtuais, robôs de cuidado e algoritmos de recomendação moldarão nossas experiências e as decisões médicas.
O grande dilema será ético. Ao consideramos que os algoritmos de machine learning, tomarão cada vez mais decisões autônomas cada vez mais baseadas em seus “aprendizados”, de forma que surgirão questionamentos como: “quem será o responsável por essa decisão?” Será o fabricante, programador ou o usuário? E como garantiremos que os usuários realmente consintam e compreendam como essas tecnologias funcionam, especialmente quando os algoritmos são tão complexos que até mesmo os especialistas têm dificuldade em interpretá-los? Será correto uma máquina substituir a expertise médica? Quem assumirá os riscos dessa intervenção? Até que ponto os pacientes entenderão a extensão e o uso desses dados?
De fato, o consentimento do paciente, de forma clara, livre e esclarecida, está longe de ser um direito aperfeiçoado pela doutrina e jurisprudência nacionais e estrangeiras, mas ainda será indispensável e considerado como um “porto-seguro” para a autodeterminação do paciente. Trata-se de um instituto que está em constante evolução, que será aprimorado com as mudanças proporcionadas pelo avanço da relação médico-paciente e, em especial, pelas que surgirão como resultado do uso de Big Data.
Nesse sentido, será ainda mais essencial compreender o consentimento informado em relação às novas tecnologias médicas nas próximas décadas, uma vez que a medicina continuará a evoluir e a incorporar novidades cada vez mais sofisticadas. Nesse cenário e contexto, abaixo são propostas algumas reflexões que devem ser consideradas para garantir um consentimento informado, transparente e ético, capaz de garantir a autodeterminação do paciente perante os avanços da medicina:
I. Transparência e Compreensão: o consentimento informado deverá ser um processo dialógico, transparente e compreensível para os pacientes. Isso implicará em fornecer informações detalhadas sobre as tecnologias envolvidas, seus objetivos, benefícios esperados, comprovações científicas, limitações, riscos médicos e possíveis alternativas. Os profissionais de saúde deverão garantir que os pacientes tenham um entendimento claro do que estão consentindo.
II. Autonomia e livre escolha do paciente: o princípio da autonomia do paciente continuará sendo fundamental. Os pacientes deverão ter o direito de tomar decisões informadas e livres sobre seu próprio tratamento, sem estar influenciados por algoritmos. Em outras palavras, eles deverão ser informados sobre as opções disponíveis e ter a liberdade de aceitar ou recusar um tratamento ou procedimento, mantendo-se as diretrizes atuais.
III. Uso responsável de dados: as tecnologias médicas muitas vezes envolvem o uso de dados pessoais dos pacientes. Os pacientes deverão ser informados sobre como seus dados serão usados, protegidos e compartilhados, para evitar problemas como o caso Cambridge Analytica (2018), YouTube, que foi multado em US$ 170 milhões (Singer e Conger 2019) por ter extratificado dados para direcionar propaganda para o público infantil ou, ainda, do clube britânico, Bounty, que foi multado em £ 400.000 (2019) por compartilhar dados de mais de 14 milhões de seus usuários com terceiros para fins de marketing. Como se vê desde já, a privacidade e a segurança dos dados do paciente são preocupações críticas, ainda mais tratando-se da saúde e bem-estar da população.
Com efeito, sobre os itens acima, em 2021, a Organização Mundial da Saúde (OMS) lançou o pioneiro relatório global “Ética e Governança da Inteligência Artificial na Saúde” (Ethics and Governance of Artificial Intelligence for Health)[2]. Após extenso processo de pesquisa e consultas com a participação de especialistas de todo o mundo, o referido relatório forneceu orientações abrangentes para todos os relacionados no desenvolvimento, uso e impacto da IA na área da saúde, listando a autonomia, a transparência e a privacidade de dados como seus pilares fundamentais.
IV. Inteligibilidade e explicabilidade das tecnologias: Devido à complexidade das tecnologias médicas avançadas, será importante que os profissionais de saúde se esforcem para explicar de maneira compreensível como essas tecnologias funcionarão e como poderão afetar o tratamento do paciente, seus riscos e benefícios, incluindo a possibilidade de erros ou resultados inesperados.
V. Responsabilidade e prestação de contas: Deverá haver mecanismos claros de responsabilidade civil e criminal para lidar com erros ou decisões incorretas da IA.
VI. Registro e documentação: Continuará a ser fundamental documentar todo o processo de obtenção do consentimento informado, incluindo as informações fornecidas ao paciente, as perguntas feitas pelo paciente e as decisões tomadas, em especial em prontuários eletrônicos que conterão todas as informações de saúde do paciente. Isso será importante em caso de disputas legais ou éticas no futuro.
VII. Aprimoramento do consentimento informado: Em um ambiente em constante evolução, os profissionais de saúde devem estar dispostos a se manterem atualizados sobre as mais recentes tecnologias e práticas éticas relacionadas ao consentimento informado. Isso inclui participar de treinamentos e educação continuada. Podemos incluir aí um consentimento livre e esclarecido digital, pois será provável que o consentimento seja obtido de forma mais eficaz e segura através de meios eletrônicos. Ademais, novos recursos como o design thinking deverão ser usados para facilitar o processo comunicativo.
VIII. Envolvimento do paciente nas decisões: mais do que nunca, os pacientes deverão ser incentivados a fazer perguntas, expressar preocupações e participar ativamente das decisões sobre seu tratamento. Apesar da constante demanda e falta de tempo, os profissionais de saúde continuarão a criar um ambiente de comunicação aberta e colaborativa.
IX. Regulamentação e ética: Os Conselhos de Medicina, as organizações médicas e demais autoridades de saúde deverão continuar a desenvolver diretrizes e regulamentos que orientem a obtenção do consentimento informado em um cenário tecnológico em constante mudança. A ética médica deverá ser central a todas as práticas relacionadas ao consentimento informado.
X. Responsabilidade compartilhada: O consentimento informado não deverá ser apenas uma formalidade, mas um compromisso mútuo entre o paciente e o profissional de saúde, para garantir o melhor atendimento possível. Ambos têm responsabilidades na tomada de decisões informada e na busca do melhor resultado para a saúde do paciente.
Em conclusão podemos compreender que o consentimento informado para os próximos 30 anos deverá continuar sendo um processo dinâmico e colaborativo que levará em consideração a evolução constante da medicina e das tecnologias de saúde. A transparência da relação médico, a autonomia do paciente e o uso ético das tecnologias seguirão como elementos essenciais para garantir o cuidado adequado e o respeito pelos direitos dos pacientes.
- Conforme reportagem: “Ten ways medicine will change by 2050”. Disponível em: https://www.pulsetoday.co.uk/views/practice-personal-finance/ten-ways-medicine-will-change-by-2050/. Acesso em 01 de outubro de 2023.
- Para maiores informações: https://www.who.int/publications/i/item/9789240029200.