Antes da revolução das técnicas de reprodução assistida (RA), a revelação da paternidade dependia da vontade e da “memória”, da disposição e do conhecimento da mãe ou de terceiros. Atualmente, pesquisas e exames de DNA são capazes de abreviar esse caminho e de dispensar tais atributos ou vontades.
Assim, cabe perguntar se o doador de material biológico reprodutivo tem direito ao anonimato, se o conhecimento da ascendência genética seria um direito da pessoa gerada por técnica de RA e se seria possível haver conformação entre um e outro.
E, sendo admissível que haja a informação, convém investigar a quem competiria o dever de prestá-la à pessoa que quisesse conhecer a sua origem biológica.
No âmbito normativo, o tema da confidencialidade dos dados de doador de material reprodutivo é objeto da Declaração Universal sobre o genoma humano e os direitos humanos (arts. 7º e 9º) e da Declaração Internacional sobre os dados genéticos humanos (art. 14, a) da UNESCO, as quais estabelecem a confidencialidade dos dados biológicos e especificam que a identificação do doador é medida excepcional, a depender da regulamentação do país onde o material for tratado.
No Brasil, não há lei tratando especificamente a respeito do assunto.
Há, no entanto, projetos em tramitação na Câmara dos Deputados que tratam do tema da RA.
O mais importante para o objeto deste texto é o PL 4892/12, o qual institui o Estatuto da Reprodução Assistida, para regular a aplicação e utilização das técnicas de reprodução humana assistida e seus efeitos no âmbito das relações civis sociais.
No art. 6º, o PL proíbe a mistura de material genético de um dos pretensos genitores e o material genético de doador para evitar dúvida quanto à origem biológica do concebido.
No art. 7º, o PL trata dos princípios aplicáveis às técnicas de RA, dentre os quais estão “o superior interesse do menor” e a “transparência”.
No art. 13 do PL consta que todas as informações relativas a doadores e receptores devem ser coletadas, tratadas e guardadas em sigilo, não podendo ser facilitada, nem divulgada informação que permita a identificação civil do doador ou receptor.
Consta ainda que o médico deverá escolher o doador e assegurar, sempre que possível, a semelhança fenotípica, imunológica e a máxima compatibilidade entre doador e receptores (art. 16).
No PL consta utilização do material genético de doador para uma única gestação “no Estado da localização da unidade”, além de determinar a criação de um Banco de Células embrionárias para impedir reprodução assistida (RA) com o mesmo material no Estado em que já foi utilizado. O texto proíbe que médicos, funcionários e integrantes da equipe multidisciplinar sejam doadores de material biológico reprodutivo.
O art. 19 prevê a garantia de sigilo ao doador de gametas, “salvaguardado o direito da pessoa nascida com utilização de material genético de doador de conhecer sua origem biológica, mediante autorização judicial, em caso de interesse relevante para garantir a preservação de sua vida, manutenção de sua saúde física ou higidez psicológica e em outros casos graves que, a critério do juiz, assim o sejam reconhecidos por sentença judicial”, sendo que o mesmo direito é assegurado ao doador, “em caso de risco para sua vida, saúde ou, a critério do juiz, por outro motivo relevante”.
No âmbito do Conselho Federal de Medicina, a resolução 2.320/22, estabelecida com contornos de soft law, prevê o sigilo das informações sobre a identidade de doadores de gametas e de embriões, assim como dos receptores, e proíbe que doadores e receptores conheçam a identidade um do outro, “exceto na doação de gametas ou embriões para parentesco de até quarto grau, de um dos receptores (primeiro grau: pais e filhos; segundo grau: avós e irmãos; terceiro grau: tios e sobrinhos; quarto grau: primos), desde que não incorra em consanguinidade”. Ademais prevê como excepcional o fornecimento de informações, desde que estas sejam dirigidas exclusivamente aos médicos e com motivação de saúde, conforme o texto do Capítulo IV, ns. 2 e 4.
As Clínicas, centros ou serviços onde são feitas as doações devem manter o registro permanente dos dados clínicos de caráter geral, de características fenotípicas e, na região de localização da unidade, evitar-se-á que um doador tenha produzido mais de dois nascimentos de crianças de sexos diferentes em uma área de 1 milhão de habitantes, embora um doador possa contribuir para várias gestações em uma mesma família receptora (Capítulo IV, ns. 5 e 6).
O consentimento deve ser obtido por termo, contendo todos os aspectos médicos da técnica, com os resultados obtidos na unidade de tratamento, com a técnica proposta, além de dados de caráter biológico, jurídico e ético. Tanto o processo informativo decisório quanto o de consentimento abrange o doador e os receptores, cada um com as suas peculiaridades informacionais e decisórias.
Nesse contexto em que se vislumbra uma nítida tendência de sigilo, não se pode perder de vista a prioridade dos direitos da criança e do adolescente prevista no art. 227 da CF e a Convenção Internacional dos Direitos da Criança da ONU (art. 3.1), que estabelece que as ações relativas às crianças e adolescentes devem considerar o “interesse maior” destes.
Além disso, há possibilidade de emprego, por analogia, do art. 48 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), segundo o qual “o adotado tem direito de conhecer sua origem biológica, bem como de obter acesso irrestrito ao processo no qual a medida foi aplicada e seus eventuais incidentes”. Seguindo esse raciocínio, se o adotado tem o direito de conhecer a sua origem biológica, qual seria a razão para a criança gerada por técnica de RA ser privada desse direito?
Não se está aqui tratando do direito da filiação ou do estado de filiação (paternidade jurídica), porque este está radicado no Direito de Família e abrange fatores mais amplos que os meramente biológicos. É dizer: o reconhecimento da filiação jurídica do direito de família admite tanto a filiação biológica quanto a não biológica, conquanto possa prescindir de fatores biológicos. O conhecimento da origem genética é distinto, constitui objeto do estudo do biodireito e diz respeito aos direitos de personalidade e não trata da constituição de parentesco legal.
Assim, com base no direito geral da personalidade, entende-se que deve ser assegurado ao indivíduo o direito de ter informações sobre a sua origem genética tanto quanto da sua ascendência. A legitimidade dessa pretensão está assentada no direito geral de personalidade e ao seu livre desenvolvimento, além do direito à saúde e a prevalência do direito da criança e do adolescente, quando for o caso.
Ademais, assume relevância o critério finalístico avindo do texto das normas antes referidas, do qual é extraída a necessidade de preservar o sigilo dos dados do doador, que (ao menos em princípio) realiza o ato de doação de material genético com finalidade altruísta, desinteressada e não remunerada: quando a função informacional diz respeito ao atendimento de necessidades relevantes e juridicamente suficientes e justificáveis daquele cuja informação seja necessária. Tais necessidades (interesses jurídicos relevantes) em geral são ligadas à saúde física ou psíquica daquele que quer conhecer a sua origem genética. Quando houver essa fundamentação relevante e juridicamente aceitável, será justificável a postulação de obtenção das informações quanto a origem genética.
Os destinatários da pretensão processual a ser exercida são, conforme o caso, dos pais, caso eles tenham sido responsáveis pelos atos de concepção (situação de inseminação caseira, por exemplo) ou a clínica de fertilização ou profissional que realizou o procedimento, caso a concepção tenha decorrido do emprego de técnicas de RA.
Com isso, fica claro que, caso a informação seja postulada judicialmente, não o será por ação investigatória de paternidade. Há, inclusive, a possibilidade de uso de habeas data para a obtenção de informações (para dados constantes de registros ou bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público), conforme as circunstâncias concretas, lembrando-se que tais dados são qualificados como sensíveis pela LGPD e, portanto, recebem elevado grau de proteção.
A questão a tratar brevemente agora é saber se o filho que não recebe essa informação a que teria direito poderia ser indenizado ao deixar de ser informado. A resposta dependerá das circunstâncias de cada caso concretamente considerado. Hipoteticamente, na situação de um filho com problema de saúde cujo tratamento seja mais eficaz se houver a informação sobre a origem genética, a falha informativa poderá ensejar a ocorrência de danos patrimoniais, caso esse filho-paciente tenha despesas de tratamentos de saúde que não incidiriam se a informação sobre a origem genética fosse relevante e não tivesse sido ocultada.
Quanto aos danos extrapatrimoniais no exemplo acima, podem estar presentes se, v.g., o filho tivesse que conviver com uma doença que pudesse ser eliminada ou mitigada com a possibilidade de identificação e de disposição de auxílio por parte das pessoas a ele vinculadas geneticamente.
A pretensão para ser atendida, no entanto, depende de prova e deve ser dirigida aos pais, caso a ocultação ocorra em razão de ato a eles imputável (situação de inseminação caseira, por exemplo) ou à clínica de fertilização ou profissional que realizou o procedimento, caso deixe de fornecer os dados do doador ou doadora do material genético.