Migalhas de Direito Médico e Bioética

A mistanásia no contexto das pessoas idosas no Brasil

O presente artigo se propõe a analisar a mistanásia no âmbito das pessoas idosas, neste momento em que o envelhecimento, como fenômeno global, também se constitui preocupação da Bioética.

30/10/2023

"Não se pode esquecer de que a vida não deixa de ser uma passagem constante de uma vulnerabilidade para outra vulnerabilidade.
O sentido profundo do ser humano é o acolhimento e a proteção de sua vulnerabilidade" (Pessini, 2017, p. 80).

Sinopse 

A mistanásia é um fenômeno que inquieta a Bioética contemporânea, pois a morte indigna, decorrente de fome, miséria e abandono de pessoas vulneradas, cresce de forma exponencial. O presente artigo se propõe a analisar a mistanásia no âmbito das pessoas idosas, neste momento em que o envelhecimento, como fenômeno global, também se constitui preocupação da Bioética. O fato é que a vulnerabilidade das pessoas idosas, expõe-nas a riscos, vitimando-as de forma frequente e cruel, pois a sociedade, os hospitais e estabelecimentos similares e até mesmo as famílias praticam atos contra essas pessoas, levando-as a experimentarem a vida miserável e morte mistanásica. A população brasileira se encontra em franco processo de envelhecimento e as famílias seguem a mesma linha, têm envelhecido de forma progressiva e, nessa ambiência, filhos idosos (com mais de 60 anos) estão cuidando de seus pais muito mais idosos (às vezes com 80 a 95 anos), sem que houvesse tempo para se organizarem e se capacitarem para essa realidade. Então, quando as famílias não conseguem administrar as consequências advindas dessa transformação demográfica, praticam condutas criminosas contra as pessoas idosas, em razão de vários fatores, dentre os quais se destaca os óbices para exercerem suas atividades laborativas de forma plena. As práticas mais comuns são abandono afetivo, moral e material, dentro das próprias residências e ainda abandono hospitais e nas ruas para ser recolhida em abrigos. Todas essas hipóteses se tornam rotineiras, no Brasil e no mundo, e têm acarretado a morte mistanásica das pessoas idosas em grande proporção,  tornando-se necessária a adoção de urgentes políticas públicas, a fim de minimizar as mortes miseráveis e promover saúde e dignidade a essa população que já caminha para a última fase da existência humana. 

Introdução 

A mistanásia é um lamentável fenômeno da Bioética contemporânea, pois a morte indigna de pessoas vulneradas tem crescido de forma assustadora no Brasil e em outros países da América Latina. Trata-se da morte miserável, precoce e evitável de pessoas expostas a riscos dos quais elas não conseguem se proteger por si sós, necessitando buscar mecanismos estatais de defesa, aos quais, elas nem sempre têm acesso. São diversas situações de miséria, abandono social, desigualdade e até de homicídios, nos casos mais graves, concorrendo para a morte em condições precárias e indignas. A mistanásia se apresenta em muitas hipóteses decorrentes da precarização da saúde pública, da violência dos grandes centros urbanos, do abandono de pessoas necessitadas pelo Poder Público, em vários outros matizes e se manifesta até mesmo no âmbito das famílias que não cuidam de seus idosos, em especial, quando doentes, deixando-os desassistidos ou até mesmo abandonados à própria sorte.

Antes de se tratar da mistanásia no contexto das pessoas idosas, impende situá-las no contexto da legislação nacional, apresentando-se o art. 1º do Estatuto da Pessoa Idosa, que é a lei de tutela da parte frágil com a função de regulamentar os direitos dessa classe de pessoas: “[...] destinado a regular os direitos assegurados às pessoas com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos” (Brasil. Lei n. 10. 741, 2003). O envelhecimento no Brasil e no mundo, passa a se constituir preocupação como fenômeno global e objeto de estudo da Bioética, pois a população composta por pessoas idosas cresce de forma desproporcional, na medida em que, por um lado, as pessoas estão se cuidando melhor, cultivando hábitos saudáveis, adotando atividades físicas, além da evolução da ciência, que encontra solução para várias enfermidades antes fatais, incuráveis e que agora se tornam crônicas, por outro lado, decresce a taxa de natalidade, em razão da opção por famílias cada vez menores. Em razão desses fatores, as famílias estão envelhecendo e não raro nos deparamos com pessoas idosas cuidando de outras muito mais idosas: filho de mais de sessenta anos cuidando de seu ascendente octogenário ou nonagenário, ambos com suas limitações, às vezes ouvindo mal e com reais dificuldades de locomoção.

Descortina-se então uma realidade à vista desta transformação demográfica: a sociedade não está preparada para cuidar dessas pessoas, não opera pequenas adaptações no interior das residências que podem fazer grande diferença para a segura locomoção, como assentar barras de apoio nos boxes e sanitários e corrimãos nas escadas, por exemplo. Tem-se assistido a muitos acidentes domiciliares com grandes consequências como sérias fraturas, fato que demonstra a necessidade de precaução, de medidas preventivas às quedas. Esse é apenas um dos vários aspectos a serem observados na conjuntura do cuidado às pessoas idosas, pois “as quedas lideram as internações”, somaram 48.940, segundo estudo realizado em 2000 acerca das causas externas de mortes de pessoas idosas (Gawryszewski; Jorge; Koizumi, RAMB, 2004).

É preciso se compreender que nenhuma dessas justificativas pode ser considerada como razoável para levar a família ao abandono de seus ascendentes, de várias formas. No caso do abandono material, falta alimentação adequada, condições de higiene e mínimo conforto, sabendo-se que tais situações ensejam a prática de mistanásia e que a consequência natural da vida indigna é a morte igualmente indigna e miserável de pessoas que não dispõem de mecanismos de defesa capazes de se colocarem a salvo dos riscos. Ante esses fatos, o presente artigo se propõe a despertar a comunidade cientifica para a cruel realidade de saúde pública e interesse social que é o aumento de casos de banalização da vida das pessoas idosas e a consequente morte mistanásica delas. E, lançando um olhar prospectivo, realiza um breve exame de algumas medidas preventivas ou políticas públicas a serem adotadas no sentido de minimizar as mortes mistanásicas dessa faixa composta por pessoas que já deram sua contribuição à sociedade, criaram suas famílias e agora dependem de serem acolhidas em sua vulnerabilidade a fim de oferecer dignidade para dar cumprimento e completude à sua existência nos seus derradeiros dias.

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Colunistas

Fernanda Schaefer tem pós-Doutorado no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC/PR, bolsista CAPES. Doutorado em Direito das Relações Sociais na UFPR, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha) como bolsista CAPES. Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC/PR. Assessora Jurídica CAOP Saúde MP/PR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Miguel Kfouri Neto é desembargador do TJ/PR. Pós-doutor em Ciências Jurídico-Civis junto à Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Doutor em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP. Mestre em Direito das Relações Sociais pela UEL. Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Maringá. Licenciado em Letras-Português pela PUC/PR. Professor-Doutor integrante do Corpo Docente Permanente do Programa de Doutorado e Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA). Coordenador do grupo de pesquisas "Direito da Saúde e Empresas Médicas" (UNICURITIBA). Membro da Comissão de Direito Médico do Conselho Federal de Medicina.

Rafaella Nogaroli é assessora de desembargador no TJ/PR. Mestre em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Especialista em Direito Aplicado, Direito Processual Civil e Direito Médico. Supervisora acadêmica do curso de especialização em direito médico e bioética da EBRADI. Coordenadora do grupo de pesquisas "Direito da Saúde e Empresas Médicas" (UNICURITIBA), ao lado do prof. Miguel Kfouri Neto. Diretora adjunta e membro do IBERC.

Wendell Lopes Barbosa de Souza é juiz de Direito do TJ/SP desde 2003 e Membro Titular da COMESP (Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do TJ/SP). Pós-doutor e professor da temática "Feminicídio" na pós em "Direitos Humanos, Saúde e Justiça" pelo POSCOHR, sediado na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. Especialista em Direito Penal pela Escola Paulista da Magistratura. Mestre e doutor em Direito Civil Comparado pela PUC/SP. Pesquisa e Curso de Introdução ao Direito Americano na Fordham University – NY/EUA. Professor em diversas instituições. Autor de livro e publicações. MBA Executivo em Gestão da Saúde pela FGV.