A teoria da perda de uma chance é aplicada na jurisprudência brasileira desde a década de 19901. Mas, foi no ano de 2005, por meio de um julgado proferido pelo Superior Tribunal de Justiça em um caso que envolvia um programa de premiação televisivo que tomou maior notoriedade no país2.
Trata-se de uma teoria desenvolvida na França3, criada pela jurisprudência e dentro da qual ela tem o seu maior desenvolvimento e aplicação. E por isso, o objetivo presente é analisar como o Superior Tribunal de Justiça tem enfrentado a matéria. Para tanto, optou-se por analisar os julgados relativos à responsabilidade civil médica e, especialmente, quando se discute a probabilidade de cura ou sobrevida do paciente.
É preciso compreender que para sua aplicação devem estar presentes todos os pressupostos da responsabilidade civil, de acordo com o posicionamento doutrinário e jurisprudencial, que são categóricos em afirmar a necessidade de restarem configurados: o ato antijurídico, o dano e o nexo causal4.
O ato antijurídico será avaliado de acordo com os ditames existentes para sua configuração, isto é, a contrariedade ao direito em si5. Ocorre que os pressupostos do dano e do nexo causal serão avaliados de forma diversa, por meio de uma lente que tem como enfoque não o resultado suportado pela vítima.
Isso não significa dizer que há ausência de dano, mas sim que haverá um dano final, relativo ao total suportado pela vítima e um dano chance, que se refere a probabilidade perdida. Este último é que será reparado desde que seja “real, atual e certo, dentro de um juízo de probabilidade, e não de mera possibilidade”6.
O dano chance é avaliado pela probabilidade de que a vítima teria uma vantagem esperada ou poderia obstar um prejuízo7, mas nenhuma das duas hipóteses acontecerá, porque houve uma interrupção indevida do desencadeamento de fatos que poderia alcançar este resultado.
A primeira situação pode ser exemplificada pelo caso julgado do “Show do Milhão”, em que uma candidata se submeteu a uma série de perguntas e ao final, caso acertasse a última questão, alcançaria o prêmio de R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais). Contudo, este último questionamento foi formulado equivocadamente. Isto porque, a pergunta era sobre o percentual de terras destinado aos indígenas na Constituição Federal. Ocorre que não há percentual definido constitucionalmente e, assim, todas as alternativas estariam erradas. A candidata desistiu e posteriormente, processou o programa, pois não havia resposta correta e com isso, ninguém ganharia o prêmio. Se a pergunta estivesse correta e com possibilidade de acerto, não é possível saber se a candidata acertaria, todavia, é possível concluir que havia probabilidade de acerto. E é esta probabilidade definida pelo número de alternativas existentes e que poderiam ser escolhidas, que se configura na perda da chance de obter uma vantagem8.
Para a segunda hipótese, ou seja, quando o desencadeamento importará em obstar o prejuízo, é possível exemplificar casos médicos, no qual o paciente deseja estar curado de uma doença que lhe acomete, mas em razão de um erro médico (ato antijurídico), o profissional reduz as possibilidades concretas de cura do paciente, o que impede o tratamento adequado. Em razão das possíveis concausas de cura que possam restar configuradas, como o tipo de patologia, o estágio quando do diagnóstico e as reações pessoais ao tratamento, não é possível afirmar que uma correta atuação do médico resultaria sem dúvidas na cura total do paciente, mas diante das peculiaridades do caso é possível verificar a probabilidade de cura existente para um tratamento eficaz.
Nos dois casos, o dano é a chance perdida, seja em obter a vantagem esperada, seja em obstar o prejuízo. Por isso, fala-se em dano chance e não dano final. Após verificada a probabilidade existente no momento da ocorrência do ato antijurídico, “o liame causal a ser demonstrado é aquele existente entre a conduta ilícita e a chance perdida, sendo desnecessário que esse nexo se estabeleça diretamente com o dano final”9.
Diante da necessidade de estarem presentes os três pressupostos básicos da reparação, os quais serão estudados em relação ao dano chance, pode-se afirmar que há a possiblidade de aplicação da teoria em todos os possíveis casos de responsabilização, inclusive para atos médicos, conforme o entendimento da doutrina e da jurisprudência da corte superior que entende ser “plenamente cabível, ainda que se trate de erro médico, acolher a teoria da perda de uma chance para reconhecer a obrigação de indenizar (...)”10.
Em acórdão proferido pela Ministra Nancy Andrighi, foram analisados os argumentos contrários a aplicação da teoria da perda de uma chance para atos médicos. Mas, todos os argumentos foram confrontados e afastados para concluir pela possível e necessária aplicação da teoria. O julgamento foi proferido em processo no qual a paciente diagnosticada com câncer de mama foi submetida a masectomia parcial. Contudo, este não seria o tratamento adequado, mas sim a masectomia radical e, também, era necessária a recomendação de quimioterapia. Diante do inadequado tratamento, a paciente veio a óbito em decorrência da doença. Entendeu-se que o erro médico frustrou a possibilidade de cura da paciente. A responsabilidade do médico configura-se pelo “fato é que a chance de viver lhe foi subtraída, e isso basta.”11
Neste caso, não apenas se verificou a possibilidade da aplicação da teoria nos casos médicos, mas, também, considerou-se que a perda da chance de tratamento é uma chance reparável. E para saber se pode ou não existir a reparação é preciso fazer o mesmo raciocínio lógico para o dano final, isto é, avaliar se é um interesse juridicamente relevante que foi lesado12.
A chance da sobrevida se caracteriza quando o ato médico diminui ou afasta a possibilidade de cura e tratamento esperados13. Ela está “ligada não à vida, mas à sobrevivência, não a perda de um processo, mas ao seu êxito e não a permanência de uma enfermidade, mas de sua cura”14, relacionados com direitos fundamentais decorrentes da dignidade da pessoa humana e, portanto, tutelado pelo direito.
O Superior Tribunal de Justiça entende que a mera chance de sobrevida é reparável por ser juridicamente relevante. Este foi o posicionamento do voto do Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva no Recurso Especial n.º 1.335.622/DF, ao julgar o processo proposto em razão do falecimento de uma criança que contava, à época, com oito meses de vida.
A criança inicialmente foi atendida por um hospital, no qual houve o seu internamento. Com o agravamento do quadro clínico, os médicos recomendaram que a paciente deveria ser encaminhada a outro local com melhores recursos. Os pais foram instruídos a proporem ação judicial que permitisse a internação da menor neste hospital, cujo atendimento seria particular. Proposta a ação e obtida a liminar, o médico que acompanhava o quadro clínico da menor, entrou em contato com a médica plantonista do hospital, mas foi informado que era necessário o envio da decisão. O mesmo médico imprimiu uma cópia e pessoalmente encaminhou para a imediata transferência da paciente, mas novamente houve a negativa do internamento, por entenderem que não era válida a cópia da internet. Em razão disso, a paciente foi mantida em ventilação mecânica em equipamento ultrapassado e veio a falecer. Os pais propuseram ação em face do hospital que recusou o atendimento, mesmo com a ciência da gravidade e emergência existentes na situação, bem como de liminar concedida e que determinava o seu internamento. O hospital foi condenado ao pagamento de indenização, porque resto comprovado que “caso o tratamento fosse realizado, poderia a filha dos autores ter tido a chance de, ao menos, sobreviver”15 e esta chance foi considerada como reparável, pois se repara não a cura em si, mas a impossibilidade do seu tratamento que postergaria a vida dessa menor.
A partir deste julgado, a corte superior adotou o posicionamento de que “A simples chance (de cura ou sobrevivência) passa a ser considerada como bem juridicamente protegido, pelo que sua privação indevida vem a ser considerada como passível de ser reparada."16
Outros casos passaram a ter o mesmo entendimento. Como o julgamento do processo em que uma paciente que era acometida por leucemia sofreu tonturas, desmaiou e veio a óbito por traumatismo craniano. No caso, a descrição dos fatos revela que, por diversas vezes, a paciente esteve no hospital com sintomas que poderiam levar a crer da sua patologia, o que seria constatado por um simples hemograma completo. Não há certeza de que a queda foi ocasionada única e exclusivamente pela doença que lhe acometia, mas há certeza de que o melhor atendimento e verificação em tempo da sua doença teria evitado o mal maior. Por isso, entendeu-se que o erro de diagnóstico “retirou da paciente uma chance concreta e real de ter o mal que a afligia corretamente diagnosticado e de ter um tratamento adequado, ou seja, de obter uma vantagem”17.
Por ser reparável o dano chance e não o dano final, o valor da indenização também não pode se referir ao valor total. Como por exemplo, no julgamento proferido pelo Ministro Og Fernandes. Neste caso, uma paciente sofreu uma parada cardíaca e o seu marido entrou em contato com o serviço de emergência do Município. Ocorre que o atendimento foi inadequado e contrariou aos protocolos existentes, pois não houve a transferência da ligação para um médico responsável e, ainda, o atendente informou a impossibilidade de deslocamento de uma ambulância, porque a que estava no local estaria estragada, sem ao menos requerer o deslocamento de outra ambulância em localidade mais próxima. Em razão disos, o marido da vítima, amputado de uma mão, apesar de suas dificuldades físicas, foi obrigado a colocar a esposa em veículo de passeio e levar até o pronto socorro mais próximo, quando ela veio a óbito18.
O Superior Tribunal de Justiça entendeu pela perda da chance de sobrevida, ante o atendimento inadequado do atendente e arbitrou a indenização no percentual de 20% (vinte por cento) sobre os valores usuais de indenização por morte de ente querido da família19.
Assim, tem-se que o Superior Tribunal de Justiça entende pela aplicação da teoria da perda de chance para casos médicos e considera a impossibilidade de cura ou sobrevida como reparável (dano chance), uma vez que juridicamente relevante. Sendo que a indenização deverá considerar a chance perdida e a quantia que seria arbitrada para o dano final.
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1 GONDIM, Glenda Gonçalves. A reparação civil na teoria da perda de uma chance. São Paulo: Editora Clássica, 2013, p. 59. Disponível em < https://editoraclassica.com.br/livro/a-reparacao-civil-na-teoria-da-perda-de-uma-chance>
2 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n.º 788.459/BA. Quarta Turma. Relator Ministro Fernando Gonçalves. Julgamento em 08 de novembro de 2005. Publicado no Diário da Justiça de 13 de março de 2006, p. 334.
3 GONDIM, Glenda Gonçalves. Obra citada, p. 55.
4 Neste sentido, transcreve-se trecho da ementa do julgamento proferido pela Ministra Nancy Andrighi, no Recurso Especial n.º 1.666.388/SP, do qual se extrai a seguinte conclusão: “A visão tradicional da responsabilidade civil subjetiva; na qual é imprescindível a demonstração do dano, do ato ilícito e do nexo de causalidade entre o dano sofrido pela vítima e o ato praticado pelo sujeito; não é mitigada na teoria da perda de uma chance.” (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso especial n.º 1.662.338/SP. Terceira Turma. Relatora Ministra Nancy Andrighi. Julgamento em 12 de dezembro de 2017. Publicado no Diário da Justiça eletrônico de 02 de fevereiro de 2018.)
5 THIBIERGE, Catherine. Libres propos sur l’evolution du droit de la responsabilité. Revue Trimestrielle de Droit Civil, Paris, v.3, p.561-584, jul./set. 1999, p. 572.
6 BRASIL. Recurso Especial n.º 1.104.665/RS. Terceira Turma. Relator Ministro Massami Ami Uyeda. Julgamento em 09 de junho de 2009. Diário da Justiça eletrônico em 03 de agosto de 2009.
7 Esta referência é adotada em julgados do Superior Tribunal de Justiça, nos seguintes termos: “(...) 2. A teoria da perda de uma chance comporta duplo viés, ora justificando o dever de indenizar em decorrência da frustração da expectativa de se obter uma vantagem ou um ganho futuro, desde que séria e real a possibilidade de êxito (perda da chance clássica), ora amparando a pretensão ressarcitória pela conduta omissiva que, se praticada a contento, poderia evitar o prejuízo suportado pela vítima (perda da chance atípica).” (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n.º 1.677.083/SP. Terceira Turma. Relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. Julgamento em 14 de novembro de 2017. Publicado no Diário da Justiça eletrônico de 20 de novembro de 2017).
8 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n.º 788.459/BA. Quarta Turma. Relator Ministro Fernando Gonçalves. Julgamento em 08 de novembro de 2005. Publicado no Diário da Justiça de 13 de março de 2006, p. 334.
9 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo interno no Recurso Especial n.º 1.923.907/PR. Terceira Turma. Relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino. Julgamento em 20 de março de 2023. Publicado no Diário da Justiça Eletrônico de 23 de março de 2023.
10 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial n.º 553.104/RS. Quarta Turma. Relator Ministro Marco Buzzi. Julgamento em 01 de dezembro de 2015. Publicado no Diário da Justiça eletrônico em 07 de dezembro de 2015.
11 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso especial n.º 1.254.141/PR. Terceira Turma. Relatora Ministra Nancy Andrighi. Julgamento em 04 de dezembro de 2012. Publicado no Diário da Justiça eletrônico em 20 de fevereiro de 2013.
12 LORENZO, Miguel Federico de. El daño injusto en la responsabilidad civil: alterum non laedere. Buenos Aires: Abeledo – Perrot, 1997, p. 51.
13 KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil do médico. 8ª ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 75.
14 CHABAS, François. La perte d’une chance em droit français. In: GUILLOD, Olivier (Ed.). Développements recents du droit de la responsabilité civile. Zurique: Schulthess Polygraphischer Verlag, 1991, p. 133. [tradução livre]
15 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n.º 1.335.622/DF. Terceira Turma. Relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. Julgamento em 18 de dezembro de 2012. Publicado no Diário da Justiça eletrônico de 27 de fevereiro de 2013.
16 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n.º 1.335.622/DF. Terceira Turma. Relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. Julgamento em 18 de dezembro de 2012. Publicado no Diário da Justiça eletrônico de 27 de fevereiro de 2013.
17 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n.º 1.677.083/SP. Terceira Turma. Relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. Julgamento em 14 de novembro de 2017. Publicado no Diário da Justiça eletrônico de 20 de novembro de 2017.
18 Informações constantes do acórdão recorrido. (BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Apelação Cível n.º 0000845-85.2011.8.24.0007. Quinta Câmara de Direito Público. Relator Hélio do Valle Pereira. Julgamento em 23 de fevereiro de 2021).
19 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial n.º 2.000.983/SC. Segunda Turma. Relator Ministro Og Fernandes. Julgamento em 02 de agosto de 2022. Publicado no Diário da Justiça eletrônico de 09 de agosto de 2022.