Recentemente, publiquei artigo aqui no Migalhas apresentando um critério de aferição de constitucionalidade de normas expedidas pelos Conselhos profissionais de saúde. Naquela oportunidade, defendi que a técnica de controle passa pela compreensão de que, desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, esses Conselhos fazem parte do SUS. Assim o sendo, suas normas devem estar vocacionadas aos objetivos desse sistema, quais sejam a satisfação do direito fundamental da saúde, priorizando ações preventivas e de proteção, sem prejuízo das assistenciais. Quanto ao tema específico da assistência, a técnica de controle passa pela análise do acesso. Desse modo, se a norma editada por um dado Conselho diminuir o acesso às ações e serviços de saúde, haverá sinal efetivo de inconstitucionalidade, já que na contramão dos objetivos do SUS.
Ao final do artigo, incomodou-me a ideia de não apresentar um pensamento propositivo. Ou seja, de qual é a melhor técnica para que os Conselhos venham a produzir normas que, para além de estar em sintonia com a Constituição, possam efetivamente colaborar com o desenvolvimento da saúde no país. Esse artigo nasce dessa inquietação.
O ponto inaugural da produção normativa dos Conselhos parte da compreensão de que a norma é veículo para modificar a regulação setorial. É fundamental compreender que regulação não é sinônimo de regulamentação. Esta última (pela qual se proíbe ou se condiciona certas condutas) é, em verdade, ferramenta da primeira. A regulação é uma técnica de intervenção do Estado em dado setor da sociedade, com o objetivo de orientar que as atividades desse setor colaborem com alcance de certos objetivos públicos. Pensando na saúde, a regulação haverá, por determinação constitucional, de orientar os atores desse setor a moldar suas atividades a bem de colaborar (direta ou indiretamente) com a missão de satisfação respectivo do direito fundamental.
A regulação é função do Estado, tal como define o artigo 174 da Constituição Federal. Pode ser coercitiva (sinônimo de regulamentação), mas não necessariamente. Há outras formas de o Estado regular a conduta de agentes privados, seja criando incentivos para a prática de certas condutas, seja pela imposição de ônus para atividades que se desvirtuem dos objetivos regulatórios. Mas a regulação irá tradicionalmente implicar novos custos ao regulado. Daí porque nem sempre a regulação é um bom negócio, na medida em que essa ampliação importará no aumento do preço da prestação, tendo potencial de diminuir o acesso. Além disso, provavelmente terá impacto econômico e na oferta de trabalho, desencadeando uma sequência de impactos que transbordam o próprio objetivo que se pretende atingir com a regulação.
Portanto, o agente regulador deve ter em mente que sua missão é de equilibrar múltiplas questões e interesses, de modo que o produto de sua regulação tenha maior capacidade de contribuir para os objetivos ao qual se destina, conduzindo as condutas dos agentes privados para essa finalidade, sem onerar em demasiado a atividade regulada e as demais atividades a ela subjacentes. É legítimo trabalho de um equilibrista.
Por isso, a primeira missão do agente regulador é decidir se irá ou não se valer da regular. Quando a decisão for positiva, compreendendo que o incremento dos ônus sociais derivados da regulação é sopesado por vantagens outras, deverá definir quais alternativas regulatórias se valerá: coerção, incentivos positivos para adoção de certas posturas ou incentivos negativos para frear condutas indesejadas.
A decisão de se e como regular, logo se vê, não trivial. Pensando na regulação produzida pelos Conselhos profissionais de saúde, o primeiro passo para essa tomada de decisão é compreender seu lugar no SUS e que, como integrante desse sistema, sua atividade regulatória deve se orientar à ampliação das chances de satisfação do direito fundamental à saúde. A partir dessa compreensão, os Conselhos se valem de um meio (regulação da atividade profissional) para o atingimento de um fim (atendimento do direito fundamental à saúde).
Regulação não é, claro, uma ciência exata. Mas têm mais chances de acertar na calibragem regulatória aqueles que se valem das ferramentas hoje disponíveis a qualquer agente regulador. Ainda que desnecessário fosse, todas elas têm hoje previsão legal expressa. Servem, em boa medida, para democratizar o processo de produção regulatória e assim, ampliando o diálogo com a sociedade, permitir que a regulação seja resultado de um processo mais participativo e menos impositivo. Esse processo não só aumenta as chances de acerto na regulação, como diminui os riscos de impactos negativos à sociedade que sequer foram cogitados pelo regulador.
E, no âmbito dos Conselhos profissionais, isso me parece fundamental, especialmente para impedir que a regulação deles derivada seja fruto da percepção única dos que compõem aquela determinada profissão de saúde. Afinal, a regulação desses Conselhos é meio para atendimento de finalidades que transbordam o interesse de determinada categoria profissional.
As ferramentas regulatórias mais consagradas, e que já se viu utilizadas ocasionalmente pelos Conselhos, são as audiências e consultas públicas. Por meio desses instrumentos, os Conselhos deverão interagir publicamente, de modo a colher impressões de como a pretensa regulação irá afetar os múltiplos setores da sociedade. Além disso, há de convidar aqueles atores que podem ter sua atividade mais intensamente atingidas, como a ANVISA, ANS, Ministério e secretarias de saúde, por exemplo.
Mas a consulta e audiência públicas não são as únicas ferramentas disponíveis. Talvez uma significativamente relevante é a AIR (Análise de Impacto Regulatório). Segundo o artigo 5º da Lei da Liberdade Econômica nº 13.874/2019, sua utilização é obrigatória, toda vez que órgãos e entidades estatais (tal qual os Conselhos) editarem normas "de interesse geral de agentes econômicos ou de usuários dos serviços prestados". A AIR, aliás, foi devidamente regulamentada (vide decreto 10.411/2020). Por esse regulamento, só está dispensada o AIR quando a regulação a ser produzida for de baixo impacto, conceito assim compreendido como aquele que: "não provoque aumento expressivo de custos para os agentes econômicos ou para os usuários dos serviços prestados; não provoque aumento expressivo de despesa orçamentária ou financeira; e não repercuta de forma substancial nas políticas públicas de saúde, de segurança, ambientais, econômicas ou sociais" (alíneas do inciso II do artigo 2º do decreto 10.411/2020).
A AIR é uma atividade preditiva, aplicada com vistas a antever os impactos da regulação num dado setor e na sociedade como um todo. Seus resultados permitem melhor calibrar a regulação, auxiliando na produção material de norma, orientando se o seu conteúdo seja coercitivo ou de fomento, bem como definindo mitigadores voltados à diminuição ou compensação pelos impactos negativos derivados da regulação.
Há técnicas específicas para elaboração dessas análises, tal como aquelas referidas nas alíneas do artigo 7º do decreto 10.411/2020: análise multicritério; análise de custo-benefício; análise de custo-efetividade; análise de custo; análise de risco; ou análise risco-risco. Agências reguladores independentes (tal como ANVISA e ANS) valem-se há mais de década da AIR e certamente podem exportar know-how aos Conselhos profissionais, auxiliando na execução da ferramenta a partir das melhores práticas.
Outras ferramentas, que não serão aprofundadas nesse artigo, são igualmente úteis aos Conselhos profissionais de saúde. Refiro aqui, por exemplo, ao sandbox regulatório (ambiente regulatório experimental), com previsão expressa no artigo 11 da na Lei Complementar do Empreendedorismo Inovador nº 182/2021. Trata-se de técnica valiosíssima, especialmente diante da intensidade da inovação tecnologia experimentada no setor da saúde. Além disso, é possível relembrar da revisão regulatória, da agenda regulatória e da Análise de Resultado Regulatório (ARR).
Fato é que atualmente a regulação da saúde sofre de uma enorme disformidade técnica. Isso impacta negativamente o setor e, por consequência, impõe obstáculo maior à satisfação do direito fundamental à saúde. Há, de um lado, agências regulatórias independentes, como ANVISA e ANS. Regidas pela Lei Geral das Agências (lei 13.848/2019) e por leis próprias, trabalham com as técnicas regulatórias aqui referidas e tantas outras igualmente sofisticadas. De outro, os Conselhos profissionais de saúde, compostos por representantes eleitos pelos profissionais da área. Esses dirigentes dominam, em maior ou maior medida, o conteúdo da ciência da área da saúde e a prática profissional. Mas a eles faltam, visivelmente, instrumentos e conhecimento técnico capazes de auxiliar na produção da boa regulação. Ambos os atores regulatórios erram. Mas erra menos quem se vale de uma técnica de produção da regulação, combinada com objetivos bem definidos.
Espero ter alcançado o objetivo de apresentar um texto propositivo. Busquei apresentar que a decisão por regular e complexa e, uma vez positiva, o caminho para alcançar uma regulação de qualidade é recheado de desafios. Apresentei algumas das ferramentas mais eficientes para ampliar as chances de atingir esse resultado ótimo. Não faltando esforço e espírito de contribuição, torço para que esse artigo seja a centelha para que os Conselhos profissionais de saúde possam efetivamente começar a se valer das melhores práticas regulatórias.