Migalhas de Direito Médico e Bioética

Os danos que alguns médicos causam nas redes sociais

Um médico que viola as normas de publicidade exaradas pelo Conselho Federal de Medicina causa danos ao paciente que o segue?

3/4/2023

O dr. Fulano, médico que trabalha com questões estéticas, possui 2 milhões de seguidores no Instagram e, em seu perfil, mescla posts pessoais com posts profissionais. Ou seja, ao lado de fotos – do tipo família margarina - com seus filhos e sua mulher há também fotos de procedimentos pouco invasivos realizados no consultório, reels de alguns atendimentos, reposts de pacientes que publicam fotos com ele e, ainda, fotos dos trabalhos sociais que ele faz.

Na “bio” do seu perfil, há apenas a informação que ele é médico. O número do CRM e no Registro de Qualificação de Especialidade (RQE) não são divulgados.

Este é um caso fictício, que inventei para ilustrar a reflexão que proponho neste texto: um médico que viola as normas de publicidade exaradas pelo Conselho Federal de Medicina causa danos ao paciente que o segue?

De acordo com as atuais normas do Conselho Federal de Medicina (CFM), especialmente as resoluções CFM 1974/2011 e 2126/2015, o médico não pode postar fotos de seus pacientes. Nem se o paciente autorizar. Nem se o paciente pedir. Nem se o paciente já tiver divulgado a foto. Nem se a foto estiver rodando os grupos de whatsapp. Nem se a foto for capa do jornal de maior circulação do país. Não pode.

Estas mesmas normas vedam as postagens do tipo "antes e depois" a determinam que o médico deve divulgar o número do seu CRM e de seu RQE, caso se apresente como especialista, em todas as publicidades que fizer.

Há ainda uma lacuna normativa sobre a possibilidade de o médico misturar em um mesmo perfil, a vida pessoal e profissional. Sobre este tema, o médico e pesquisador australiano Neil David Long1, afirmou que "a confusão entre vida profissional e pessoal pode levar a infelizes consequências (...). Um momento de deslize pode deixar uma pegada digital permanente e prejudicar a confidencialidade, honestidade e confiança na profissão médica."

Na era da sociedade da espetacularização, a sociedade de consumo privilegia o produto/profissional/serviço mais exposto, mais curtido, mais seguido... e esse posto tem se tornado objeto de desejo de muitos médicos.

É inegável  que ter um perfil no instagram é uma forma de o médico fazer publicidade. E para muitas pessoas, há um excesso de conservadorismo – e muito atraso - nas atuais normas do CFM; afinal, as redes sociais hoje são um importante meio de comunicação e também de realização de negócios.

Poderíamos dizer, assim, que as violações que o dr. Fulano comete às normas do CFM não é de interesse de seus pacientes. Para estes, importa que o Dr. Fulano seja um bom médico, leia-se, os atenda com cordialidade e entregue os resultados desejados.

Todavia, a Medicina não é uma profissão de resultados, ela é uma profissão de cuidado. O objetivo do médico não é entregar ao paciente a estética desejada, é oferecer ao paciente o melhor cuidado, dentro da melhor técnica existente.

"Primum non nocere" (em tradução literal: "primeiro não fazer o mal") é uma máxima que rege a relação paciente-médico desde os primórdios. Significa, resumidamente, que antes de qualquer ato, o médico deve ponderar os efeitos maléficos deste ao paciente.

Se tais efeitos são claros em atuações negligentes, imperitas ou imprudentes, em temas afetos à publicidade médica a maleficiência não é tão cristalina. Ouso dizer, inclusive, que a maioria da população sequer consegue visualizar esta relação. Portanto, poderíamos concluir que o Dr. Fulano não causa danos ao paciente em sua atuação nas redes sociais.

Contudo, profissionais de saúde que trabalham e pesquisam saúde mental já defendem que  "o uso problemático da Internet tornou-se uma preocupação de saúde pública, particularmente entre adolescentes e adultos emergentes."2

E mais, há, atualmente, uma preocupação crescente na psicologia os efeitos psíquicos que o uso desadaptativo causam nas pessoas, incluindo aumento de transtornos psíquicos e de dificuldades em relacionamentos interpessoais.3-4-5

Por estas razões, entendo que o dr. Fulano causa, sim, graves danos aos seus atuais e futuros pacientes. Explico:

Em todo o mundo, a Medicina aparece como uma das profissões mais respeitadas e admiradas pela sociedade, portanto, como médico, o dr. Fulano ostenta uma posição de respeito e admiração.

Soma-se a isso, o fato de que o dr. Fulano tem 2 milhões de seguidores, o que dá a ele um status de bom profissional.

Assim, ao divulgar sua família margarina, o Dr. Fulano pode fazer com que seus pacientes olhem para a própria vida e sintam-se fracassados. Ao divulgar os procedimentos feitos em consultório, o Dr. Fulano pode alimentar nas pessoas a falsa sensação de que os procedimentos estéticos são simples e sem riscos. Ao divulgar reels de alguns de atendimentos, pode gerar o desejo narcísico de que o seguidor seja o próximo paciente. Ao repostar posts feitos pelos pacientes, pode criar uma falsa sensação de proximidade e cuidado. Ao divulgar fotos os trabalhos sociais que pratica, pode ganhar a empatia de seus seguidores à despeito de suas competências técnicas.

Diante de tudo isso, é esperado que o leitor pense: "é simples, basta que o seguidor que se sinta mal deixe de seguir o dr. Fulano." É verdade, ele pode dar um unfollow no dr. Fulano. Mas as chances são pequenas.

E mais, o fato de o Dr. Fulano ser médico vulnera a maior parte do seu público que está lá porque confia, respeita e admira o médico. Assim, ainda que o malefício causado pelo dr. Fulano não seja explícito, não podemos negar a possibilidade de que ele exista. E, quiçá, de que ele seja ainda mais grave do que os demais, exatamente por ser um dano não reconhecido.

__________

1 Long, Neil David (2018). The good, the bad and the ugly of social media: How to navigate through the noise. Emergency Medicine Australasia, –. doi:10.1111/1742-6723.13098 

2 Shahla Ostovar;Reyhaneh Bagheri;Mark D. Griffiths;Intan Hashimah Mohd Hashima; (2021). Internet addiction and maladaptive schemas: The potential role of disconnection/rejection and impaired autonomy/performance . Clinical Psychology & Psychotherapy, –. doi:10.1002/cpp.2581

3 Ostovar S, Bagheri R, Griffiths MD, Mohd Hashima IH. Internet addiction and maladaptive schemas: The potential role of disconnection/rejection and impaired autonomy/performance. Clin Psychol Psychother. 2021 Nov;28(6):1509-1524. doi: 10.1002/cpp.2581. Epub 2021 Mar 23. PMID: 33687117.

4 Zsila Á, McCutcheon LE, Demetrovics Z. The association of celebrity worship with problematic Internet use, maladaptive daydreaming, and desire for fame. J Behav Addict. 2018 Sep 1;7(3):654-664. doi: 10.1556/2006.7.2018.76. Epub 2018 Sep 17. PMID: 30221539; PMCID: PMC6426373.

5 Fioravanti G, Flett G, Hewitt P, Rugai L, Casale S. How maladaptive cognitions contribute to the development of problematic social media use. Addict Behav Rep. 2020 Feb 21;11:100267. doi: 10.1016/j.abrep.2020.100267. PMID: 32467856; PMCID: PMC7244923.

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Colunistas

Fernanda Schaefer tem pós-Doutorado no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC/PR, bolsista CAPES. Doutorado em Direito das Relações Sociais na UFPR, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha) como bolsista CAPES. Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC/PR. Assessora Jurídica CAOP Saúde MP/PR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Miguel Kfouri Neto é desembargador do TJ/PR. Pós-doutor em Ciências Jurídico-Civis junto à Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Doutor em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP. Mestre em Direito das Relações Sociais pela UEL. Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Maringá. Licenciado em Letras-Português pela PUC/PR. Professor-Doutor integrante do Corpo Docente Permanente do Programa de Doutorado e Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA). Coordenador do grupo de pesquisas "Direito da Saúde e Empresas Médicas" (UNICURITIBA). Membro da Comissão de Direito Médico do Conselho Federal de Medicina.

Rafaella Nogaroli é assessora de desembargador no TJ/PR. Mestre em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Especialista em Direito Aplicado, Direito Processual Civil e Direito Médico. Supervisora acadêmica do curso de especialização em direito médico e bioética da EBRADI. Coordenadora do grupo de pesquisas "Direito da Saúde e Empresas Médicas" (UNICURITIBA), ao lado do prof. Miguel Kfouri Neto. Diretora adjunta e membro do IBERC.

Wendell Lopes Barbosa de Souza é juiz de Direito do TJ/SP desde 2003 e Membro Titular da COMESP (Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do TJ/SP). Pós-doutor e professor da temática "Feminicídio" na pós em "Direitos Humanos, Saúde e Justiça" pelo POSCOHR, sediado na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. Especialista em Direito Penal pela Escola Paulista da Magistratura. Mestre e doutor em Direito Civil Comparado pela PUC/SP. Pesquisa e Curso de Introdução ao Direito Americano na Fordham University – NY/EUA. Professor em diversas instituições. Autor de livro e publicações. MBA Executivo em Gestão da Saúde pela FGV.