1. Introdução
Ao analisarmos os processos por “erro médico”1 é possível observar uma crescente no número de demandas sem que, com isso, tenha ocorrido, de fato, um aumento de “erros” propriamente ditos. Ou seja, hoje em dia, ajuíza-se mais ações tendo o suposto erro médico como causa, mas não necessariamente, significa dizer que temos mais erros profissionais. De acordo com dados disponibilizados pela TV Justiça e CNJ, no ano de 2021 tivemos 35 mil novos processos por “erro médico”.2
O aumento do número de processo está relacionado com o elevado grau de solvência dos profissionais médicos, clínicas e hospitais, de modo que processar se torna um “bom negócio”.3 Esse bom negócio relacionado à judicialização gera condenações ou absolvições que, em 26% dos casos, é antagônica à legis artis, ou seja, temos más decisões que absolvem casos de violação à legis artis e casos de condenação sem descumprimento à legis artis.4 Nesse sentido, alguns autores apontam que as demandas médicas são verdadeiras loterias judiciais, decorrente da estrutura judicial.5
O problema, todavia, começa a surgir no cenário atual em que o Poder Judiciário, para além de permitir a estrutura de judicialização, ainda apresenta elementos favoráveis à judicialização como a gratuidade judiciária quase irrestrita e a não penalização do autor pela ignorância ao método bifásico.
Dentro de um contexto de excessiva litigiosidade, o que se observa é que algumas especialidades estão sendo esvaziadas, na medida em que os profissionais buscam mitigar o risco de processo e passam a atuar em especialidades menos sujeitas ao risco. Paralelamente, alguns profissionais têm encontrado, na medicina defensiva, uma forma de se proteger dos processos, desconsiderando que o e o exercício da medicina defensiva, per si, já é ilícito e pode gerar condenações desnecessárias.6
Frise-se que o presente texto não pretende ignorar a existência de possíveis erros e abusos por parte dos profissionais de saúde, porém, parte da realidade: o cenário é bem menos catastrófico do que aquele apresentado nos frios números da judicialização, para debater uma responsabilização responsável, seja por parte dos autores, seja por parte dos réus.
2. A gratuidade judiciária como elemento de fomento à judicialização da medicina
A mens legem da gratuidade judiciária, parte do pressuposto de que nada adiantaria garantir o direito de ação se não houvesse a possibilidade de um cidadão pobre acionar o Poder Judiciário. Nesse sentido dispõe o texto constitucional:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;
LXXIV - o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos;
Já o Código de Processo Civil dispõe que seu art. 98 que a gratuidade judiciária compreende inúmeras isenções como o dever de não pagar despesas como custas/preparo, honorários periciais e os honorários advocatícios em caso de sucumbência, ressalvada, em relação a estes, a suspensão da exigibilidade pelo prazo de 05 anos.
Em um primeiro momento, a concepção da gratuidade judiciária é razoável e lógica, pois os direitos fundamentais, per si, são insuficientes, devendo haver mecanismos de implementação de tais direitos através de garantias fundamentais. O direito de ação dissociado da gratuidade judiciária poderia gerar um Poder Judiciário elitizado, de forma que sua implementação é fundamental.
Todavia, observa-se que o objetivo da gratuidade judiciária foi deturpado e o instituto passou a fomentar verdadeiras aventuras jurídicas. Sob o pretexto de legitimar o acesso ao Poder Judiciário, a gratuidade tem sido utilizada como instrumento de aventuras jurídicas. É comum que o autor de uma ação de erro médico ignore, por completo, a viabilidade fática/jurídica do pedido e ajuíze sua demanda amparado apenas na existência do resultado adverso. Nesse sentido, Genival Veloso destaca que que é preciso desarmar a população de que todo e qualquer resultado sejam de responsabilidade médica.7 Todo erro erro médico é um resultado adverso, porém nem todo resultado adverso é um erro profissional.
Ao se ingressar, sob o manto da gratuidade com ações judiciais por resultado adverso e tratar tais resultados como erros os autores sobrecarregam o próprio Judiciário, gerando um efeito sistêmico de hiperlitigiosidade. A existência de litigantes frívolos e ambulance chasers gera uma redução da expectativa dos benefícios dos litigantes legítimos e um consequente prejuízo coletivo. A maior quantidade de fases processuais e o consequente alongamento do litígio apenas estimula um comportamento oportunista. 8
Nesse sentido Luciano Timm destaca que:
Assim, considerando-se o conjunto dessas variáveis e ainda diversas outras que fazem parte do sistema processual civil brasileiro, é possível constatar que tais circunstâncias servem de estímulo tanto para o excessivo ajuizamento de demandas judiciais, muitas delas inegavelmente temerárias ou frívolas (por exemplo, com baixíssima expectativa ou probabilidade de êxito, em decorrência da inadequação ou insuficiência de fundamentos fáticos e jurídicos), quanto para a interposição de expedientes recursais à exaustão, tendo em conta os baixos ônus e riscos de utilização desse sistema.
(...)
Oportuno ressaltar que embora não seja exigido o pagamento por parte dos beneficiários da AJG, isso não significa que esses custos deixem de existir e tampouco que ninguém irá suportá-los, de acordo com a célebre frase popularizada por Milton Friedman: “Não existe almoço grátis”. Muito pelo contrário, certamente alguém terá que fazê-lo (precisamente, o contribuinte que subsidia o Poder Judiciário).9
Ademais, é preciso lembrar que o acesso à direitos/garantias sociais impacta no orçamento, de modo que se deve exigir um comportamento responsável dos litigantes, evitando-se um exercício do direito de ação patológico e que é lesivo para a sociedade como um todo.
Nesse contexto, a gratuidade judiciária deve representar uma garantia de ordem extraordinária e não ordinária, visto que, conforme será abordado no tópico seguinte, os honorários sucumbenciais servem como um obstáculo à litigância banalizada.
3. A condenação em honorários sucumbenciais em caso de não acolhimento integral do pedido de condenações por danos extrapatrimoniais
Sob a égide do antigo CPC, o STJ editou, no ano de 2006, a súmula 326 que dispõe que: “na ação de indenização por dano moral, a condenação em montante inferior ao postulado na inicial não implica sucumbência recíproca.”
Considerando que no antigo CPC não era necessário indicar expressamente o montante pretendido a título de indenização, por vezes, o valor da causa e o pedido estimado não guardavam similitude. Ocorre que, a partir do Novo CPC, nos termos do art. 292, V, o valor da causa deve corresponder ao valor pretendido.
Como advogado atuante na defesa médica, não raras vezes sou surpreendido com pedidos de indenização por dano moral que oscilam entre R$30.000,00 e R$1.000.000,00 para supostos erros idênticos.
Diante disso, criou-se uma interpretação doutrinária e jurisprudencial no sentido de que a súmula 326 do STJ não seria mais válida, na medida em que, ao fixar a pretensão financeira pretendida, o autor restringiria o seu pedido e, na eventualidade de não acatamento integral do pretendido, ter-se-ia uma sucumbência recíproca.
Ocorre que a 4ª Turma do STJ, por ocasião do julgamento do REsp 1.837.386 – SP, julgado em 16/8/22, compreendeu unanimemente que a súmula continuava válida, pois a atuação do autor teria natureza meramente estimativa, ao passo que caberia ao Poder Judiciário definir, com competência exclusiva, o valor da pretensão reparatória e está ocorre com elevada carga de subjetividade.
É importante considerar que, a despeito do entendimento apontado pela 4ª turma, o próprio STJ desde o início dos anos 2000 tem adotado o método bifásico10 de forma implícita e, a partir de 2011, passou a incorporar, expressamente, a previsão do uso do método bifásico para eliminar a elevada carga de subjetividade nas condenações por danos extrapatrimoniais.11
O método bifásico é caracterizado pelo estabelecimento de uma “pena” base a partir da análise dos casos análogos em determinada corte e a posterior majoração ou redução da pena em razão das agravantes e atenuantes próprias do caso concreto. Logo, a fase primária do método bifásico é objetiva, enquanto a segunda fase buscaria promover a justiça à luz das particularidades do caso concreto. Desta forma, o argumento posto de que há uma elevada carga de subjetividade não encontraria respaldo a partir do próprio entendimento do STJ.12
Paralelamente, aponta-se para a criação do “paradoxo do vencedor”.13 Sobre o tema, Alexandre Gomes afirma que permitir a condenação por sucumbência recíproca poderia gerar, procedências de demanda em que o montante indenizatório fosse inferior ao dever de custear honorários sucumbenciais.14
Em sentido contrário, alguns autores apontam para a possibilidade de condenação aos honorários sucumbenciais quando o valor pretendido não for integralmente acolhido a partir de uma leitura do art. 292, V do CPC.15
Em posição intermediária Fernando Andreoni Vasconcellos defende a impossibilidade de não condenação aos honorários sucumbenciais nos casos em que, ainda que não acolhido in totum a pretensão, estes encontram-se devidamente motivados e em consonância com a jurisprudência majoritária ou quando não houver jurisprudência pacificada e estável sobre a matéria.16
A verdade é que os valores trazidos no atual Código de Processo exigem a colaboração de todos os envolvidos com a proposta de uma pacificação do conflito. A funcionalização do processo exige que as partes busquem pretensões reparatórias verossímeis e dialógicas com os precedentes judiciais e particularidades do caso; ou seja, situações que divirjam dos precedentes e do uso do método bifásico devem ser compreendidas como exercício abusivo do direito de ação.
Desta forma, a manutenção da súmula representa uma desconsideração com o trabalho desenvolvido pelo advogado da parte adversa, na medida em que o trabalho – questionável até – desempenhado pelo advogado do autor seria remunerado através de honorários sucumbenciais, ao passo que o êxito do advogado do réu em providenciar argumentos jurídicos para reduzir, significativamente, as pretensões do autor seria reduzido a nada.17
Imaginemos um autor que ingressa com uma ação indenizatória por suposto erro médico e pedido de dano moral no montante de R$2.000.000,00 (dois milhões de reais) e a condenação seja de “apenas” R$50.000,00 (cinquenta mil reais). Das duas uma: ou o advogado da parte autora não possui base técnica nenhuma para aplicar o método bifásico ou o advogado do réu desenvolveu uma argumentação espetacular para afastar quase que a integralidade da pretensão autoral. Apesar da condenação ter sido apenas 2,5% do valor pretendido, apenas o advogado aventureiro terá direito aos honorários sucumbenciais.
Como pontifica Timm:
Em um país notoriamente assolado pelo problema da litigância excessiva, o instituto dos honorários sucumbenciais cria baliza fundamental à operacionalização de princípios como o direito à duração razoável do processo e da isonomia, ao exigir responsabilidade e ponderação dos que buscam a prestação jurisdicional – algo mais facilmente visível a partir do ferramental teórico da Análise Econômica do Direito;18
Logo, mostra-se imperiosa a superação da súmula 326 do STJ, por expressa previsão legal e também por uma necessidade de redução da litigiosidade abusiva, sob pena de se violar um dos preceitos basilares de não se remunerar a própria torpeza.
4. Conclusão
O ajuizamento de ações objetivando a condenação de profissional de saúde por suposto erro exige responsabilidade. . Não podemos compactuar com o exercício abusivo do direito de ação em demandas que debatam responsabilidade extrapatrimonial ou com a deturpação de instrumentos processuais para legitimar finalidades indevidas. A responsabilidade civil e o processo civil precisam ser funcionalizados para coibir aventuras jurídicas e, ao mesmo tempo, garantir previsibilidade das decisões.
A gratuidade judiciária não pode ser utilizada como subterfúgio para o exercício do direito de ação dissociado na realidade fática e jurídica. Ao se tornar a regra de acesso ao Judiciário, a gratuidade judiciária reduz os ônus do litigante aventureiro e lança o prejuízo para o réu e para a sociedade.
No tocante à súmula 326 do STJ, mantido o entendimento de que os valores pretendidos a título de dano moral são meramente indicativos, o pedido de condenação por danos extrapatrimoniais pode ser utilizado como meio de pressão abusiva, na medida em que haverá uma inflação dos pedidos com consequente repercussão em custas recursais e honorários periciais sem que haja qualquer responsabilização do autor pela demanda.
Se há uma crítica à litigiosidade excessiva, uma parcela significativa dessa responsabilidade é do próprio Poder Judiciário que não é apenas um figurante, mas verdadeiro coprotagonista - com os autores - de demandas infundadas, com valores astronômicos e sob o pálio da justiça gratuita e/ou Súmula 326 do STJ.
1 Nomenclatura que será adotada por ser o padrão fixado pelo CNJ para fins de elaboração do relatório do Justiça em Números, porém, por vezes, o suposto erro médico não se trata de um erro do profissional de medicina, mas de um outro profissional de saúde ou mesmo de um problema multifatorial que não é de responsabilidade do médico.
2 BRASIL. CNJ registra quase 35 mil novos processos por erro médico no país. Disponível aqui. Acesso em 10 set. 2022.
3 MASCARENHAS, Igor de Lucena; BAHIA, Saulo José Casali. O exercício da medicina defensiva enquanto reação às decisões judiciais: o papel do Judiciário na construção de uma postura ética no exercício médico. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 31, n. 141, p. 339-355, maio/jun. 2022.
4 PEREIRA, André Gonçalo Dias. Direito dos pacientes e responsabilidade médica. Coimbra: Coimbra Editora, 2015. p. 21
5 COUTO FILHO, Antonio Ferreira; SOUZA, Alex Pereira. Instituições de Direito Médico. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 60
6 MASCARENHAS, Igor de Lucena; BAHIA, Saulo José Casali. O exercício da medicina defensiva enquanto reação às decisões judiciais: o papel do Judiciário na construção de uma postura ética no exercício médico. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 31, n. 141, p. 339-355, maio/jun. 2022.
7 FRANÇA, Genival Veloso. Comentários ao Código de Ética Médica. 6 ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2010. P. 58
8 PATRÍCIO, Miguel Carlos Teixeira. Análise económica da responsabilidade civil médica. Lisboa: AAFDL Editora, 2017.
9 TIMM, Luciano Benetti. Parecer. Disponível aqui. Acesso em 10 de out. 2019.
10 Para fins de melhor compreensão do processo de quantificação do dano extrapatrimonial, sugerimos a leitura de MARANHÃO, Clayton; NOGAROLI, Rafaella. O método bifásico como critério de quantificação dos danos morais e estéticos decorrentes da atividade médica na jurisprudência do TJ/PR. Migalhas de Responsabilidade Civil. Disponível aqui.
11 REsp 959.780/ES, relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 26/4/11, DJe de 6/5/11
12 Apesar da solução apontada, é importante registrar que o próprio STJ é oscilante em relação a uma possível harmonização dos valores, conforme aponta Luciana Berlini - BERLINI, Luciana Fernandes. O quantum indenizatório nas relações médico-pacientes. In: In: ROSENVALD, Nelson; MENEZES, Joyceane Bezerra de; DADALTO, Luciana. Responsabilidade Civil e Medicina. 2 ed. Indaiatuba: Editora Foco, 2021, p.50.
13 Em consonância com o argumento de que a sucumbência está adstrita ao pedido e não ao valor pretendido, vide FREDIANI, Yone. Honorários advocatícios e periciais – sucumbência, custas e justiça gratuita e a lei 13.467/17. Revista de Direito do Trabalho, São Paulo, v. 209, p.21-28, jul/2019.
14 GOMES, Alexandre G. Pedido genérico e sucumbência recíproca nas ações indenizatórias por danos morais. Revista de Processo, São Paulo, v. 317, p. 17-31, jul/2021.
15 Nesse sentido: CAMARGO, Daniel Marques de; BAGGIO, Hiago da Silva. As repercussões da imperativa indicação do valor da causa em ações indenizatórias fundadas em dano moral no CPC/2015 à luz dos postulados teóricos do Law & Economics. Revista do Processo, São Paulo, v. 328, p. 35-53, jun/2022;
16 VASCONCELLOS, Fernando Andreoni. A Súmula 326 do STJ e os seus necessários temperamentos à luz do CPC/15. Revista Judiciária do Paraná, Curitiba, v. 20, p. 217-234, nov/2020.
17 CAMARGO, Daniel Marques de; BAGGIO, Hiago da Silva. As repercussões da imperativa indicação do valor da causa em ações indenizatórias fundadas em dano moral no CPC/2015 à luz dos postulados teóricos do Law & Economics. Revista do Processo, São Paulo, v. 328, p. 35-53, jun/2022.
18 TIMM, Luciano Benetti. Parecer. Disponível aqui. Acesso em 10 de out. 2019.