Migalhas de Direito Médico e Bioética

Como consentir sem entender: o dilema do paciente leigo diante das fake news.

O consentimento é um desses parâmetros. O consentimento informado é um instituto jurídico que tomou força nos últimos anos do século XX.

8/8/2022

O Mundo da informação e as relações de saúde

O mundo da informação se consolida cada dia mais, no entanto, com esse avanço informativo, tem-se mais desafios éticos jurídicos a enfrentar, o que, por vezes, passam invisibilizados, ou mesmo, mitigados, mas que acarretam consequências sérias.

O consentimento é um desses parâmetros. O consentimento informado é um instituto jurídico que tomou força nos últimos anos do século XX.1 Isto ocorreu devido à mudança do paradigma na relação médico-paciente: do abandono da medicina paternalista para o exercício da medicina em favor da autonomia do paciente.2 O paciente passou a ser reconhecido pela prática médica como pessoa, dotada de valores inerentes a ela, a qual deve ser respeitada a vontade de autodeterminação. Esclarecido porque pressupõe, para sua validade, o entendimento pelo paciente das questões relativas à sua condição de saúde e do tratamento ao qual poderá se submeter. Livre porque, a partir da compreensão destes aspectos, o paciente irá decidir, de acordo com suas concepções, se aceita ou não se submeter à intervenção médica.

Em tempos em que as divulgações, principalmente por médicos, sobre temas relacionado à saúde têm amplo espectro nas redes sociais, como, por exemplo, Instagram e/ou WhatsApp, sob manto de informar e educar, distribuem-se informações sobre doenças e tratamentos com uma maior “liberdade”. Esse movimento impacta diretamente no exercício do consentimento livre e esclarecido, posto que, traduz para uma sociedade leiga uma série de condutas a serem adotadas no caso de prevenção e tratamento de doenças que estejam a ser discutidas, mas sem as devidas advertências que os temas impõem.

A força e rapidez com que essa informação chega à sociedade é descomunal, médicos, na medida em que passam a ter seguidores e suas intervenções, sejam elas em qualquer plataforma de mídia, podem virar rapidamente uma “consulta” virtual sem que os parâmetros legais dela sejam devidamente respeitados.

Nessa seara que a conduta adotada pelo profissional da saúde, especialmente o médico, impacta na tomada de decisão esclarecida, na busca de tratamento médico adequado ou na escolha consciente da aceitação ou recusa da conduta médica a ser adotada para real proteção do exercício direito à saúde.

A divulgação de fake News e os impactos no exercício das condutas na sociedade.

A voz humana, assim, tem um alcance maior que vai para além de consultório físico e palestras em congressos, chegando a qualquer um que tenha acesso a uma plataforma digital, tendo-se em mente que o acesso digital é um direito fundamental nos dias atuais.

Ocorre que esse alto poder de divulgar carrega consigo limites no que se refere ao conteúdo do que será divulgado, sendo vedado, no ordenamento jurídico, a propagação de notícias falsas, as chamadas Fake News, entendidas estas, para o presente artigo, como toda aquela que não é calcada em base científica comprovada (evidência) e/ou que seja construída sob a base metodológica inadequada para atestar da sua eficácia.

Qualquer forma de divulgação de tratamento, procedimento e/ou medicamento para tratar e/ou evitar sintomas de doenças deve ocorrer dentro do consultório médico, seja ele físico ou virtual, e, estar calcado na conduta médica adequada de individualização do caso (humanização do paciente), sendo feito os esclarecimento dos eventos adverso e a base científica da conduta adotada para que possa a pessoa exercer licitamente o seu direito ao consentimento livre e esclarecido, respeitando, assim, devidamente a natureza jurídica do instituto que é possibilitar o entendimento da conduta médica a ser adotada.

Com utilização dos meios de divulgação de conteúdo médico (doença, tratamento, medicamento, entre outros) de maneira mais fácil na sociedade, seja pelas redes sociais de médicos, entidades médicas, seja por aplicativos de conversas, onde é fomentado pelo produtor do conteúdo que aquela mensagem que contém conteúdo da prática médica seja divulgada para o maior número de pessoas possíveis, entramos em uma seara bastante arenosa da conduta médica e seus impacto jurídicos.

O impacto no consentimento do paciente está entre tais consequências. Primeiro ponto de impacto, é que muitas vezes, o paciente já chega ao consultório munido de “esclarecimento” sobre a temática da sua doença e/ou tratamento, o que foi introduzido pela rede social que acompanhava e com a chancela do médico que a propagou. O segundo impacto está que, nesses casos, o médico quando da leitura do termo ou do prognóstico já conduz a conversa no sentido que o esclarecimento foi feito nos mesmos termos da referida postagem, chegando ao ponto de, em alguns casos, ser fomentado que em caso de dúvida posterior envie um direct ou uma mensagem, ou mesmo que seja desnecessário o consentimento, visto que o paciente já chegou até o profissional por causa da postagem.

Mas, o ponto mais relevante, é a consequência que essa propagação de informação, que, aparentemente, foi construída e divulgada sob manto de educar a sociedade, é consolidada com base nas chamadas Fake News. A construção do consentimento livre esclarecido diante da relação de hipossuficiência que há entre o conhecimento do médico que divulga  e do “público” que absorve tais informações gera ruídos, na medida em que irão calcar seu processo de decisão baseados em informações genéricas, muitas vezes não adequadas ao seu caso individual, mas que o profissional/influencer médico, nem sequer faz distinção quando propala o prognóstico, podendo acarretar em uma mácula no consentimento que poderá esvaziá-lo no sentido jurídico.

Outro ponto relevante nessa discussão é o fato de nesses ambiente virtuais haja uma maior facilidade de propagação de fakenews com a consequente distribuição de informações que conflitam com o que lecionado pela ciência a qual está submetida, utilizando, por vezes, o embasamento em estudos que nem sequer existem, ou mesmo, que não tem o reconhecimento metodológico científico de sua eficácia para o fim que está sendo exposto.

Nesse ambiente virtual é mais fácil fazer a citação de estudos que não existem ou mesmo que, se existirem, a sua metodologia não é adequada para comprovação da eficácia para que se propõe a intervenção médica propalada, visto a dificuldade que a população tem de buscar e entender os estudos que tem cunho científico, sem falar do suposto argumento de “autoridade” que o médico  impõe em sua fala, deixando ainda mais vulnerável o paciente na tomada de decisão esclarecida, já que está sendo informado de forma equivocada sobre a conduta.

Os impacto da divulgação de Fake News e o consentimento esclarecido.

O código de ética médica- CEM em seu artigo 112, veda ao médico divulgar informação sobre assunto médico de forma sensacionalista, promocional ou de conteúdo inverídico, no entanto, nos últimos dois anos não nos faltaram exemplos de lives e entrevistas que tinham o propósito de divulgar informações inverídicas indo de encontro direto com as bases científicas amplamente existente, bem como, propalando procedimentos médico sem base cientifica comprovada.

Tal prática acarretou um impacto enorme a tomada de decisão livre e esclarecida da população em geral. Como fazer a melhor tomada de decisão se havia, principalmente dentro do ambiente virtual, um médico, dizendo que tal conduta deveria ou não ser adotada, ou mesmo, propagando a utilização de certo medicamento sem que houve consulta prévia desse paciente, com a devida anamnese? No entanto muitos se sentiram examinados e adotaram as condutas propaladas, muitas vezes de forma sensacionalista, o que é vedado.

A utilização desse mecanismo de divulgação gera impacto gigantesco no exercício das liberdades individuas, nomeadamente, no consentimento, seja porque, em muitos casos, deixou-se de buscar o tratamento adequado, seja porque, foi introduzido uma prática médica, que aparentemente é consentida, mas era marcada por uma ausência de discussão com o paciente da ausência real de base científica para o caso, eventos adversos entre outras consequências.

A relação de consentimento já não consegue atingir o fim jurídico pretendido, posto que, não é repassado ao paciente todas as nuances que a conduta médica acarreta. O paciente vê, principalmente nas redes socias, a divulgação de medicamentos e tratamentos sem o menor controle sob como isso pode impactar na construção da tomada de decisão que o mesmo terá sobre a prática que irá se submeter.

Considerações finais

A atuação médica de propalar tratamento, medicamentos, procedimentos sem o cuidado ético necessários, bem como, aqueles que são alicerceados em  Fake News tem um repercussão direta na matriz do instituto do consentimento, macula a dimensão do conhecimento individual de cada pessoa na consequência da sua tomada de decisão da utilização ou autorização no tratamento que se propõe.

É vedado ao médico divulgar, fora do meio científico, processo de tratamento ou descoberta cujo valor ainda não esteja expressamente reconhecido cientificamente por órgão competente, consoante o art. 113, CEM.

Necessário observar que é direito do médico indicar o procedimento adequado ao paciente, observadas as práticas cientificamente reconhecidas e respeitada a legislação vigente (CEM), desde que ocorra em consulta médica. Ainda, tal prerrogativa é acompanhada da necessidade de que seja dirigida apenas ao seu paciente respeitando o binômio, cientificamente comprovado, com os parâmetros devidamente explicado ao paciente e, que tal pratica tenha o reconhecimento legal. Na ausência de qualquer um deles, deve o médico, no âmbito da sua conduta, quer nas falas sociais direcionadas ao público para, supostamente, educar, quer em  consulta esclarecer e alertar da inexistência de comprovação cientifica baseada nos parâmetros a legais existentes, sob pena de poder responder pela conduta para além do procedimento ético, mas também na seara cível.

A divulgação das chamadas Fake News no âmbito da saúde coloca a população geral em risco, que já são munidas de uma hipossuficiência prévia para questões cientificas médica, deixando-a mais vulneráveis ainda a tratamentos e utilização de medicações desnecessários, visto que, a propulsão se alicerça ao argumento de autoridade do profissional médico colocando em xeque a possibilidade da verdadeira natureza jurídica do esclarecimentos, bem como, da decisão livre calcada no poder de autodeterminação consciente da população.

Os prejuízos nas condutas de saúde, principalmente, as preventivas ficam abaladas como a divulgação de Fake News por parte do corpo médico, a informação chega distorcida à população que tem, como dito antes, mitigado seu poder de esclarecimento, aumentado o abismo da hipossuficiência do paciente, retirando do mesmo o discernimento necessário para a tomada de decisão consciente, livre e realmente esclarecida.

Diante de um bombardeio de informações, principalmente quando estamos a falar de Fake News, o esclarecimento ou é comprometido ou passa a ser inexistente, pois, sob a falsa promessa de resultados médicos inatingíveis, aumenta-se o risco para a população em geral nas suas escolhas no diárias individuais no que tange a sua saúde, bem como, impacta no exercício do direito coletivo à saúde.

A pratica abusiva dessa conduta da propagação de Fake News deve ser coibida em todos os segmentos da sociedade, mais ainda, pelo conselho Federal de medicina, para que haja a proteção do direito à saúde. Essa fiscalização deve ser cada dia  mais premente, visto que, a utilização desse mecanismo, sob o manto do livre exercício da escolha da conduta médica a ser adotada, esta não pode ser balizada por ignorar os parâmetros científicos metodológicos adequados, bem como, em burlar a realização eficaz do esclarecimento adequado e livre à população, sob pena de responsabilização ética, civil e penal.

__________

1 PEREIRA, André Gonçalo Dias. O Consentimento Informado na Relação Médico-Paciente, Estudo em Direito Civil, Coimbra Editora: 2004. p. 57.

2 PEREIRA, André Gonçalo Dias. O Consentimento... op. cit. p. 349.

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Colunistas

Fernanda Schaefer tem pós-Doutorado no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC/PR, bolsista CAPES. Doutorado em Direito das Relações Sociais na UFPR, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha) como bolsista CAPES. Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC/PR. Assessora Jurídica CAOP Saúde MP/PR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Miguel Kfouri Neto é desembargador do TJ/PR. Pós-doutor em Ciências Jurídico-Civis junto à Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Doutor em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP. Mestre em Direito das Relações Sociais pela UEL. Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Maringá. Licenciado em Letras-Português pela PUC/PR. Professor-Doutor integrante do Corpo Docente Permanente do Programa de Doutorado e Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA). Coordenador do grupo de pesquisas "Direito da Saúde e Empresas Médicas" (UNICURITIBA). Membro da Comissão de Direito Médico do Conselho Federal de Medicina.

Rafaella Nogaroli é assessora de desembargador no TJ/PR. Mestre em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Especialista em Direito Aplicado, Direito Processual Civil e Direito Médico. Supervisora acadêmica do curso de especialização em direito médico e bioética da EBRADI. Coordenadora do grupo de pesquisas "Direito da Saúde e Empresas Médicas" (UNICURITIBA), ao lado do prof. Miguel Kfouri Neto. Diretora adjunta e membro do IBERC.

Wendell Lopes Barbosa de Souza é juiz de Direito do TJ/SP desde 2003 e Membro Titular da COMESP (Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do TJ/SP). Pós-doutor e professor da temática "Feminicídio" na pós em "Direitos Humanos, Saúde e Justiça" pelo POSCOHR, sediado na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. Especialista em Direito Penal pela Escola Paulista da Magistratura. Mestre e doutor em Direito Civil Comparado pela PUC/SP. Pesquisa e Curso de Introdução ao Direito Americano na Fordham University – NY/EUA. Professor em diversas instituições. Autor de livro e publicações. MBA Executivo em Gestão da Saúde pela FGV.