50 mil dólares por ano de vida salvo (AVS), ou então três vezes o PIB - Produto Interno Bruto per capita por anos de vida ajustados para qualidade (QALY, do inglês quality-adjusted life years) ou anos de vida ajustados para incapacidade (DALY, do inglês disability-adjusted life years). Esse é o montante internacionalmente aceito para fins de incorporação de uma determinada tecnologia (medicamentos, próteses, órteses e outros insumos) junto à um sistema público de saúde, conforme consta na justificativa no PL do Senado 415/15, do então senador Cássio Cunha Lima, que torna obrigatória a definição em regulamento e a divulgação do parâmetro de custo-efetividade utilizado na análise das solicitações de incorporação de tecnologias no âmbito do SUS1.
O projeto de lei do Senado 415/15, foi convertido recentemente na lei 14.313/222. Inseriu-se o seguinte dispositivo no art. 19-Q, § 3º, da lei 8.080/90 (lei orgânica da Saúde): “As metodologias empregadas na avaliação econômica a que se refere o inciso II do § 2º deste artigo serão dispostas em regulamento e amplamente divulgadas, inclusive em relação aos indicadores e parâmetros de custo-efetividade utilizados em combinação com outros critérios”.
Publicação recente da Conitec - Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologia, órgão federal vinculado ao Ministério da Saúde, aponta que a avaliação econômica e os parâmetros de custo-efetividade deverão ser pautados preferencialmente no desfecho de anos de vida ajustados pela qualidade (QALY)3. Doutrina especializada aponta que apesar dos méritos de tal indicador, ele não é capaz de atender toda a sociedade, como por exemplo no caso da população idosa e das pessoas com deficiência (14).
Recursos de saúde, como tratamentos ou intervenções, medicamentos, equipamentos médicos e outros serviços, são finitos e naturalmente escassos. Isso ocorre como consequência da macro alocação de recursos nos governos - consequência das decisões políticas sobre o quanto gastar em saúde ao invés de educação, segurança e infraestrutura, por exemplo.
A partir da falha do Estado em assegurar o atendimento às necessidades de saúde da população, influenciado, sobretudo pelo subfinanciamento do SUS,4 em conjunto a má gestão dos recursos públicos5, tem-se um movimento junto ao Poder Judiciário para aquisição de medicamentos, tratamentos e insumos, para fins de concretização de direitos constitucionais no tocante a saúde.
No caso do Brasil, que é um dos cerca de cem países que reconhecem o direito constitucional à saúde6, incluindo a assistência farmacêutica integral, diversos desafios se apresentam no propósito de melhorar a qualidade dos medicamentos oferecidos no SUS, e torná-los acessíveis para toda a população. O aumento da expectativa de vida, a demanda de pacientes pela incorporação de tratamentos, a oferta de so?sticadas intervenções sanitárias e o envelhecimento da população contribuem para um processo de “medicamentação” ou “medicalização”7, ou ainda, de “farmaceuticalização”6, ou seja, utilizam-se medicamentos em situações que não podem ser consideradas como doenças, ou superestima os poderes dos medicamentos – tanto para a saúde quanto para a doença. Claramente vinculado ao modelo econômico-social vigente, o uso de medicamentos na sociedade está, portanto, distanciado dos critérios médico-sanitários científicos, ou do uso “racional”8.
Em parte, por isso, tem crescido o recurso ao Poder Judiciário para a obtenção desses medicamentos. Dados disponibilizados pelo CNJ desvelam que o fornecimento de medicamentos é a principal causa de litígios em face do SUS, indicando que o tema exige a atuação coordenada de todos os atores do sistema de saúde e do sistema de Justiça9. Esse fenômeno, conhecido como “judicialização da saúde”, já se institucionalizou no país, fazendo parte do SUS como mais uma porta de acesso. É inegável, no entanto, que esse ingresso muitas vezes viola o direito à igualdade de uma coletividade, que adentra o SUS pela porta da frente10.
É fato que esse cenário fica ainda mais complexo com advento de novas tecnologias. A medicina regenerativa já permite a introdução de células modificadas para resgatar a função de órgãos afetados. Imunomoduladores e imunossupressores, de última geração, atuam no sistema imunológico conferindo aumento da resposta orgânica contra determinados microrganismos, promovem a divisão celular e têm propriedades anti-inflamatórias. As ferramentas de edição gênica, cada vez mais aprimoradas, podem modificar o DNA de células retiradas do próprio paciente, promovendo melhor resposta imunológica11.
Tais tecnologias, em regra, estão em regime de monopólio patentário, e têm seus preços definidos pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED). No entanto, a despeito da regulação, o fato é que tais tratamentos muitas vezes não são acessíveis justamente por não serem custo-efetivos. Vide o exemplo do medicamento Zolgensma – usado para o tratamento da atrofia muscular espinhal (AME), e conhecido como sendo o medicamento mais caro do mundo. Após chegar a custar cerca de 14 milhões de reais, com as variações do dólar, estabeleceu-se a quantia de R$ 6,5 milhões como parâmetro de venda do referido fármaco12.
E a justificativa dos altos preços, segundo argumentação geralmente alinhavada pela indústria farmacêutica, por conta dos custos de pesquisa e desenvolvimento (P&D), não merece prosperar. Estudos apontam que os medicamentos contra o câncer, por meio de seus preços elevados, geraram retornos financeiros substanciais para as empresas que os originaram. Retornos excessivos sobre o investimento podem distorcer o papel central da P&D. Os preços altos restringem o acesso dos pacientes e comprometeram a sustentabilidade financeira dos sistemas de saúde. Para se ter uma ideia, dados apontam que para cada $1,00 (um dólar americano) investido em P&D para desenvolvimento do trastuzumabe, gerou um retorno financeiro para o laboratório detentor da patente de $31,20 (trinta e um dólares americanos e vinte centavos)13.
O fato é que a CMED precisa ser fortalecida e ter à disposição ferramentas regulatórias que permitam aferir de maneira mais justa e precisa o valor dos novos produtos que chegam ao mercado brasileiro. Destaca-se, nesse sentido, o PL 5.591/20, de autoria do senador Fabiano Contarato (PT-ES), que busca estabelecer critérios mais precisos para a definição de preços de entrada dos medicamentos.
A adoção de uma fórmula matemática, através de um determinado limiar de custo-efetividade, encontra seus limites como equação de justiça, considerando até mesmo os princípios de uma ética utilitarista. Ou seja, ainda que a previsibilidade e a transparência sejam necessárias para fins de incorporação de uma determinada tecnologia junto ao SUS, não pode ser considerada de forma isolada ou taxativa, sob pena de incorrer em implicações ilegítimas e espúrias. Como explicar para uma mãe, cujo filho foi diagnosticado com atrofia muscular espinhal, que o medicamento prescrito pelo médico assistente não poderá ser fornecido pelo estado, pois não é “custo-efetivo”?
Verifica-se, porquanto, que apesar da importância estratégica para fins de transparência e alocação de recursos disponíveis para a saúde, um limiar de custo-efetividade e o QALY não podem se constituir em barreiras a outros critérios relevantes para a tomada de decisão sobre a incorporação de tecnologias no SUS. Há que se ter cuidado com a adoção explícita de limiares de custo-efetividade, especialmente pelos países em desenvolvimento. Tais índices não conseguem capturar todos os valores importantes para a sociedade, em particular implicações éticas, justiça distributiva e outras preferências sociais. Não se pode simplesmente transpor experiências internacionais. A definição desse valor é contexto-específica, depende da riqueza local, das características do sistema de saúde, da disponibilidade e capacidade de pagar, bem como das preferências sociais. Tais questões devem ser observadas quando da edição dos regulamentos previstos no art. 19-Q, § 3º, da lei 8.080/90.
A efetiva proteção dos direitos sociais é tema suscetível de interpretações variadas, conforme convicções ideológicas e o savoir-faire do intérprete. A judicialização da saúde, nesse contexto, deve ser analisada como consequência de um fenômeno hermético, que envolve a necessidade do diálogo interinstitucional e a ação integrada, seja no enfrentamento ao atual sistema internacional de propriedade intelectual, seja na discussão de políticas de pesquisa, desenvolvimento e inovação, seja na regulação dos preços e do mercado farmacêutico ou da própria avaliação de tecnologias em saúde para fins de incorporação nas listagens oficiais.
Um dos postulados de ética kantiana preconiza o seguinte: “No reino dos fins, tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem preço, pode ser substituída por algo equivalente; por outro lado, a coisa que se acha acima de todo preço, e por isso não admite qualquer equivalência, compreende uma dignidade”.
Sabemos que a medicina tem um custo. Mas a saúde não tem preço, ela compreende uma dignidade. Que esse seja o norte dos operadores do direito e dos gestores públicos na consecução do direito social, fundamental e humano à saúde.
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1 BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei nº 415/ 2015. Disponível aqui.
2 BRASIL. Lei nº 14.313, de 21 março de 2022. Altera a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990 (Lei Orgânica da Saúde), para dispor sobre os processos de incorporação de tecnologias ao Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre a utilização, pelo SUS, de medicamentos cuja indicação de uso seja distinta daquela aprovada no registro da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Disponível aqui.
3 BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde. Departamento de Gestão e Incorporação de Tecnologias e Inovação em Saúde. O uso de limiares de custo-efetividade nas decisões em saúde: proposta para as incorporações de tecnologias no Sistema Único de Saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2021.
4 Santos AO, Delduque MC, Alves SMC. Os três poderes do Estado e o financiamento do SUS: o ano de 2015. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro. 2016; 32(1):e00194815.
5 Amaral TC. Direito à saúde: Dilemas do fenômeno da judicialização da saúde. Cad. Ibero-amer. Dir. Sanit. Brasília. 2019; 8(2):123-32.
6 BIEHL, João; PETRYNA, Adriana. Tratamentos jurídicos: os mercados terapêuticos e a judicialização do direito à saúde. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.23, n.1, jan.-mar. 2016, p.173-192.
7 BONFIM, J.R.A. Doenças crônicas, "medicalização" e iatrogenia. In: Nogueira R.P. et al (Org.) Observatório Internacional de Capacidades Humanas, Desenvolvimento e Políticas Públicas: estudos e análises 2. – Brasília, DF: UnB/ObservaRH/Nesp - Fiocruz/Nethis. 2015.
8 LEITE, S.N; VASCONCELLOS, M. da P.. Os diversos sentidos presentes no medicamento: elementos para uma reflexão em torno de sua utilização. Arquivos Catarinenses de Medicina, vol. 39, n. 3, p. 18-23, 2010.
9 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Judicialização e saúde: ações para acesso à saúde pública de qualidade. Brasília: CNJ, 2021.
10 TANAKA, O. A Judicialização da Prescrição Medicamentosa no SUS ou o Desafio de Garantir o Direito Constitucional de Acesso à Assistência Farmacêutica. Revista de Direito Sanitário, São Paulo v. 9, n. 1 p. 137-143 Mar./Jun. 2008. Disponível aqui.
11 UZIEL, Daniela. A avaliação de tecnologias em saúde e sua incorporação ao sistema único. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), em 23/07/2020. Disponível aqui.
12 VARGAS, Mateus; TOMAZALLI, Idiana. Governo Bolsonaro autoriza compra de remédio mais caro do mundo por até R$ 6,5 mi. Folha de São Paulo. Disponível aqui.
13 TAY-TEO, Kiu; ILBAWI, Andre; HILL, Suzanne R.. Comparison of Sales Income and Research and Development Costs for FDA-Approved Cancer Drugs Sold by Originator Drug Companies. JAMA Network Open. 2019;2(1):e186875. Disponível aqui.
14 Minayo, Maria Cecília de Souza, Hartz, Zulmira Maria de Araújo e Buss, Paulo MarchioriQualidade de vida e saúde: um debate necessário. Ciência & Saúde Coletiva [online]. 2000, v. 5, n. 1 [Acessado 23 Maio 2022] , pp. 7-18. Disponível aqui. Epub 19 Jul 2007. ISSN 1678-4561. Disponível aqui.
15 KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes e Outros Escritos. Trad. Leopoldo Holzbach. São Paulo: Martin Claret, 2004.