As relações privadas muitas vezes materializam-se na forma de negócios jurídicos, que são confeccionados com base na autonomia privada dos indivíduos. Assim, um negócio jurídico é “um ato de autonomia privada” (MIRANDA, 2009, p. 34) que visa “criar, modificar ou extinguir direitos, pretensões, ações, ou exceções” (MIRANDA, 2012, p. 55).
Com os avanços das biotecnologias, têm surgido novos negócios que são denominados por Rose Melo Vencelau Meireles de negócios biojurídicos:
A biotecnologia está no cerne dessa questão, na medida em que possibilita a escolha sobre aspectos do próprio corpo que podem promover efeitos constitutivos, modificativos ou extintivos. Nesses casos, conforme antes mencionado, a autonomia ganha a forma de negócio jurídico. Como têm por referencial objetivo aspectos da saúde e do corpo do declarante, foram aqui chamados de biojurídicos (MEIRELES, 2016, p. 115)
Esses negócios têm como objeto o próprio ser humano e afetam diretamente a sua vida. Alguns exemplos são: disposição de material genético, diretiva antecipada de vontade e contrato de reprodução humana assistida. Ademais, deve-se destacar que uma terminologia específica para tais negócios se revela pertinente em razão da complexidade dos assuntos abrangidos por tais documentos, além de que se percebe que a Teoria Clássica do Negócio Jurídico nem sempre se enquadra na sua interpretação (PAVÃO; ESPOLADOR, 2018).
Entretanto, tais negócios sempre terão como pilar a autonomia privada, conduzindo, no campo da saúde, à busca da autodeterminação dos pacientes. Neste contexto, é oportuno citar as palavras de Juliano Ralo Monteiro sobre a diferença entre autonomia privada e autodeterminação:
Decompondo a palavra autodeterminação tem-se auto (próprio) + determinatio (limites, divisas), que significa “estabelecimento dos próprios limites”. Já a autonomia deriva autos (“próprio”) + nomos (“regra”, “governo”, “lei”), ou seja, “fixação das próprias regras”. Com efeito, aqui está a se falar de tema muito mais amplo que a autonomia. Não se trata apenas de uma liberdade jurídica, como quer a autonomia, mas sim, significa dizer que o indivíduo há de ser senhor de seu corpo, mente e espírito que além de direito natural, recebe a tutela máxima existencial do ordenamento jurídico, independentemente de qualquer fator externo de sujeição do indivíduo (MONTEIRO, 2021, s/p).
Assim, quando o paciente expressa a sua vontade sobre o seu corpo e como ele deve ser tratado, aquela vontade deve ser respeitada pelos profissionais de saúde e familiares, porquanto o paciente revela-se, em regra, dotado de discernimento. Tal previsão é reflexo do princípio bioético da autonomia, que defende que “respeitar um agente autônomo é, no mínimo, reconhecer o direito dessa pessoa de ter suas opiniões, fazer suas escolhas e agir com base em valores e crenças pessoais” (BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2013, p. 142).
Obviamente, faz-se necessário que o indivíduo apresente discernimento para que a sua vontade seja considerada válida; isso significa que ele deve estar em plenos poderes das suas capacidades mentais. Em caso de negativa, a decisão é transferida para um representante que deve atuar seguindo o melhor interesse do paciente ou na forma da recente “tomada de decisão substituta”.
No âmbito da saúde, para que o paciente possa exercer a sua autonomia, é fundamental que seja devidamente informado acerca dos riscos e benefícios do procedimento/tratamento pertinente à sua condição, assim como as consequências em caso de recusa. Tal exigência consubstancia-se tanto no referencial bioético da beneficência quanto nas previsões normativo-jurídicas constitucionais e civilistas, como sabido. Para formalizar tal decisão, o paciente deve subscrever o denominado “Termo de Consentimento Livre e Esclarecido” (TCLE), com o escopo de permitir que terceiro possa atuar sobre a sua esfera jurídica no tocante aos direitos inerentes de sua exclusiva titularidade (SOARES, 2021).
A Resolução CFM 1/2016 traz diversos requisitos a serem verificados quando da elaboração do TCLE, tais como: riscos, benefícios, imprescindibilidade de esclarecimento e de manifestação livre de vontade.
É extremamente importante que o termo seja formalizado de forma completa e adequada, uma vez que sua incompletude ou eventual omissão podem ensejar responsabilidade civil médica, como no caso do REsp nº 1.540.580 do Superior Tribunal de Justiça. Neste julgamento, a Corte condenou um hospital ao pagamento de indenização pela violação do dever de informar, tendo em vista que a informação prestada ao paciente, antes do procedimento, foi incompleta.
5. Haverá efetivo cumprimento do dever de informação quando os esclarecimentos se relacionarem especificamente ao caso do paciente, não se mostrando suficiente a informação genérica. Da mesma forma, para validar a informação prestada, não pode o consentimento do paciente ser genérico (blanket consent), necessitando ser claramente individualizado. 6. O dever de informar é dever de conduta decorrente da boa-fé objetiva e sua simples inobservância caracteriza inadimplemento contratual, fonte de responsabilidade civil per se. A indenização, nesses casos, é devida pela privação sofrida pelo paciente em sua autodeterminação, por lhe ter sido retirada a oportunidade de ponderar os riscos e vantagens de determinado tratamento, que, ao final, lhe causou danos, que poderiam não ter sido causados, caso não fosse realizado o procedimento, por opção do paciente1 (BRASIL, 2018).
Além do termo, outro documento importante para apresentar a vontade do indivíduo é a Diretiva Antecipada (DA). A DA é um documento no qual a pessoa expressa sua vontade sobre seu corpo e sobre tratamentos que aceita ou não se submeter, devendo ter efeitos quando o indivíduo estiver incapacitado de manifestar a sua vontade (ESPOLADOR; PAVÃO, 2021).
Um dos principais objetivos da declaração prévia de vontade é garantir ao paciente que seus desejos serão atendidos no momento de terminalidade da vida e proporcionar ao médico um respaldo legal para a tomada de decisões em situações conflitivas (DADALTO, 2013).
Apesar das normas deontológicas e jurídicas que direcionam a perfectibilização de tais instrumentos de manifestação de vontade, alguns classificados como ato jurídico “sui generis”, outros como efetivos negócios jurídicos existenciais, podem surgir conflitos sobre os limites e possibilidade de atendimento e respeito à vontade da pessoa. Neste âmbito, surgem algumas demandas judiciais, principalmente no tocante as diretivas antecipadas, tendo como escopo o respeito aos desejos do indivíduo, em suma.
Um dos possíveis conflitos traduz-se na forma como a manifestação de vontade está sendo apresentada; se é válida ou não. Nesse sentido, houve um caso no ano de 2021 que chegou ao STJ, o REsp 1.918.421-SP. Um casal havia criopreservado embriões, com material genético de ambos, em um hospital. O homem já tinha dois filhos de um relacionamento anterior, que apenas foram informados da existência dos embriões com material genético do pai após o falecimento deste. Quando souberam que a madrasta desejava implantar dois embriões, os filhos do falecido ingressaram com uma ação judicial para impedir o procedimento (MEIRELES, 2021).
O caso envolve a discussão sobre a reprodução humana assistida post mortem, enfrentando mais profundamente a questão se havia ou não autorização do falecido para realizar esse procedimento. O falecido havia assinado os seguintes documentos “Orientação e Esclarecimentos sobre o Procedimento de Reprodução Humana” e “Declaração de Opção de encaminhamento de material criopreservado em caso de doença incapacitante, morte, separação ou não utilização no prazo de 3 anos ou 5 anos”. Conforme os documentos assinados, em caso de falecimento do marido, a mulher ficaria com a custódia dos embriões criopreservados (MEIRELES, 2021).
Um ponto interessante do caso é que o falecido havia deixado testamento contemplando a viúva e os dois filhos, sem tratar especificamente dos embriões e nem de futuro filho que pudesse ser gerado. Frente a esse testamento, resultou a dúvida se ele havia consentido ou não a implantação post mortem dos embriões.
O voto vencido, do ministro Marco Buzzi, foi favorável a decisão da instância inferior, que permitia a implantação, uma vez que o consentimento do falecido estava previsto na transferência de custódia dos embriões para sua esposa, em caso de falecimento; assim, deduziu-se que ela poderia utilizá-los.
Contudo, o voto vencedor, do ministro Luis Felipe Salomão, foi contrário a decisão da instância inferior, afirmando que não havia consentimento expresso, específico e formal para o ato. Os dispositivos que fundamentaram o voto foram: resolução do CFM 2.294/21 (prevê a necessidade de o indivíduo manifestar a sua vontade, de forma escrita, quanto ao destino dos embriões criopreservados, no momento da criopreservação) e o provimento 63/17 do CNJ (determina que para o registro civil de criança gerada por meio de reprodução assistida póstuma, além dos documentos da RHA, deve também apresentar o “termo de autorização prévia específica do falecido ou falecida para uso do material biológico preservado, lavrado por instrumento público ou particular com firma reconhecida”).
Por oportuno, deve ser observado o seguinte trecho da ementa da decisão do STJ:
12. A decisão de autorizar a utilização de embriões consiste em disposição post mortem, que, para além dos efeitos patrimoniais, sucessórios, relaciona-se intrinsecamente à personalidade e dignidade dos seres humanos envolvidos, genitor e os que seriam concebidos, atraindo, portanto, a imperativa obediência à forma expressa e incontestável, alcançada por meio do testamento ou instrumento que o valha em formalidade e garantia (BRASIL, 2021).
A respeito desse caso, Rose Melo Vencelau Meireles comenta:
Nesse sentido, a exigência de forma atende à função do negócio jurídico celebrado. O vínculo paterno-filial, ainda que post mortem, implica em um conjunto de situações patrimoniais e existenciais dele decorrentes. A forma assegura o efetivo consentimento do declarante. Nos negócios existenciais (ou dúplices, por envolverem situações dupla natureza, patrimoniais e existenciais), o princípio do consentimento qualificado reforça a necessidade de se obter a vontade expressa, espontânea, pessoal, atual e esclarecida do declarante, exatamente pelos efeitos pessoais e, na maioria das vezes, irreversíveis que promovem. O engano ou presunção quanto à autorização da reprodução humana post mortem, por exemplo, não poderia desfazer a gestação se comprovado posteriormente inexistir o consentimento. Dessa feita, o cuidado preventivo a partir da interpretação criteriosa da vontade mostra-se o caminho mais acertado. (MEIRELES, 2021, p. 14)
As ponderações da professora supracitada são extremamente válidas, deve-se ter muito cautela quando se trata da reprodução humana assistida, uma vez que não é possível desfazer o ato sem configurar ilícito penal.
Entretanto, devem-se considerar alguns pontos do caso narrado. 1. As normas aplicadas não são dispositivos propriamente jurídicos, mas sim regulamentações de natureza diversa. 2. O CC/02 não apresenta previsão de forma específica de manifestação de vontade na reprodução póstuma a ser exigida pela Corte, podendo-se, salvo melhor juízo, aduzir que qualquer manifestação livre e inequívoca de vontade deve ser aceita. 3. A Corte fixou que a manifestação de vontade deve ser expressa por meio de testamento ou instrumento que valha em formalidades e garantias. Diante disso, percebe-se que a Corte criou uma exigência de formalidade negocial que não está prevista em lei.
Ademais, outros pontos importantes que devem ser considerados: 4. A existência dos documentos assinados pelos falecidos pode indicar a sua manifestação de vontade; 5. O falecido poderia ter revogado os documentos assinados a qualquer momento; 6. A criopreservação dos embriões indica o planejamento familiar do casal; 7. A custódia dos embriões à esposa parece indicar a vontade do falecido sobre o direito de sua esposa em relação ao manejo dos embriões.
Frise- se que todos estes são indícios que podem ser analisados a partir das informações extraídas do caso concreto. A instrumentalização de uma manifestação expressa do falecido sanaria qualquer dúvida, mas deve-se entender que não há uma formalidade específica em lei.
Nesse caso, o mais adequado é analisar as circunstâncias que envolvem os fatos, com o intuito de provar se o homem desejava ou não ter filhos com a esposa, mesmo se este estivesse falecido. Tal análise já foi realizada no Tribunal de Justiça do Paraná, em um caso de 2011, no qual o tribunal concedeu à viúva autorização para utilizar o sêmem do marido falecido que estava criopreservado (SÁ; NAVES, 2021). Nesse caso, o marido criopreservou o seu material genético quando foi diagnosticado com câncer, porque desejava ter filhos com a esposa. Entretanto, ele faleceu sem manifestar a sua vontade sobre a destinação dos embriões nessa situação. Como não tinha manifestação expressa, houve a reconstrução da vontade por meio do Poder Judiciário, que considerou que mesmo não havendo manifestação de vontade escrita, era possível compreender que a vontade do falecido era a implantação (SÁ; NAVES, 2021).
Apesar das ressalvas apresentadas acima, tendo em vista as regulamentações do CNJ e do CFM e a atual decisão do STJ, é extremamente importante que as clínicas e hospitais que realizam técnicas de criopreservação de embriões adequem suas documentações. Por ser o posicionamento mais atual sobre o tema, é importante reforçar que quem deseja ter sua vontade respeitada deve seguir a formalidade exigida pelo STJ, logo, apresentar um dos documentos especificados na decisão, caso opte por autorizar a reprodução humana assistida post mortem.
Esta breve análise ressalta que há uma carência de regulamentação jurídica sobre reprodução humana assistida no Brasil, o que gera insegurança. Nas questões que envolvem o Biodireito e as novas tecnologias, sabe-se que as diretrizes interpretativas provêm de fontes normativas diversas e todas elas devem ser consideradas, sejam os referenciais bioéticos presentes em diversas resoluções na seara da saúde e salvaguarda dos direitos do paciente, seja nas demais fontes jurídicas que se amoldam a situações existenciais que demandam um olhar diferenciado e peculiar. Assim, o tema deve ser cada vez mais debatido e necessita de uma regulamentação pelo Poder Legislativo. Trata-se de reivindicação que tem sido há anos sustentada pela doutrina nacional. Casos como o narrado nesta coluna sinalizam a importância do Direito em questões biojurídicas, que demandam soluções determinantes em prol do atendimento dos interesses da pessoa humana em sua integralidade, seja prevendo documentos e formalidades jurídicas adequadas ou permitindo a forma livre, para que os indivíduos tenham segurança no que se refere a validade de seus atos e negócios.
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1 Para mais informações, acesse aqui.
2 BEAUCHAMP, Tom L.; CHILDRESS, James F. Princípio de ética biomédica. Tradução: Luciana Pudenzi. 3ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2013.
3 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.918.421-SP. Recorrentes: LZN, FZ, SBDES-HSL. Recorrido: TDACRZ. Relato: Ministro Marco Buzzi. Julgamento: 08 jun 2021. Publicado em 26/08/2021.
4 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1540580/DF. Recorrentes: Dimas Pereira e Abrahao e outros. Recorridos: Sociedade Beneficente de Senhoras Hospital Sírio Libanês. Relator: ministro Lázaro Guimarães. Julgamento 2 ago 2018. Publicação 04/09/2018.
5 DADALTO, Luciana. Distorções acerca do testamento vital no Brasil (ou o porquê é necessário falar sobre uma declaração prévia de vontade do paciente terminal). Revista de bioética y derecho, n. 28, p. 61-71, 2013.
6 ESPOLADOR, Rita de Cássia Resquetti Tarifa; PAVÃO, Juliana Carvalho. O Biodireito na atualidade: diretiva antecipada de vontade e bebê-medicamento. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia. Uberlândia, MG, v. 49, n. 1, pp.233-247, jan/jul 2021.
6 MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Comentários ao Recurso Especial nº 1.918.421-SP: desafios da reprodução humana assistida post mortem. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 10, n. 3, 2021. Disponível aqui.
7 MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Negócios Biojurídicos. PONA, Éverton Willian (coord.); AMARAL, Ana Cláudia Corrêa Zuin Mattos do (coord.); MARTINS, Priscila Machado (coord.). Negócio jurídico e liberdades individuais - autonomia privada e situações jurídicas existenciais. Curitiba: Juruá, 2016.
8 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de Direito Privado. Tomo III. Bookseller: Campinas, 2012.
9 MONTEIRO, Juliano Ralo. A autodeterminação nos cuidados da saúde. Contraditor. Publicado em: 03/09/2021. Disponível aqui.
10 PAVÃO, Juliana Carvalho; ESPOLADOR, Rita de Cássia Resquetti Tarifa. Paradigma Contemporâneo e os negócios biojurídicos: seleção embrionária. Scientia Iuris. Londrina, v. 22, n. 2, p. 244-271, jul.2018.
11 SÁ, Maria de Fátima Freire de; SOUZA, Iara Antunes de. Reprodução Humana Assistida Post Mortem: Planejamento Familiar, Reconstrução da Vontade e Responsabilidade Civil à Luz do Caso da Escocesa Ellie. In: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; ROSENVALD, Nelson; MULLEDO, Renata Vilela (Coords). Responsabilidade Civil e Direito de Família: O Direito de Danos na Parentalidade e Conjugalidade. Indaiatuba: Editora Foco, 2021. E-pub.
12 SOARES, Flaviana Rampazzo. Consentimento do paciente no direito médico: validade, interpretação e responsabilidade. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2021.