Tendo em vista a norma constitucional brasileira, sabe-se que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”1. Ou seja, preenchidos os requisitos processuais, ainda que apenas se trate de circunstância posteriormente verificada como não apta a comprovar descumprimento de obrigação profissional médica, é dever do órgão judicial a apreciação da questão, de maneira a elucidar os fatos e analisar fundamentos jurídicos postulados. Conforme este raciocínio, o autor de uma demanda judicial, no presente caso, o paciente, ampara-se no Poder Judiciário, em busca da restauração de direitos considerados maculados, e suscita acusações tendo por base certezas ou dúvidas que poderiam compor um processo de esclarecimento e provável consensualidade por via diversa aos caminhos da judicialização.
Atualmente, neste sentido, observa-se um contexto de judicialização excessiva na relação médico-paciente, em que se dá um persistente aumento de demandas judiciais propostas por pacientes contra médicos, evitáveis por meio distinto ao processo judicializador. Este contexto excessivo, contudo, é capaz de implicar no esgotamento da proposta constitucional de apreciação de lesão ou ameaça de direito, tendo em vista a consequente incapacidade do judiciário de absorver, com a devida celeridade, o crescente volume de pleitos2. A morosidade percebida, assim, passou a contrariar fundamentos também consagrados no processo civil brasileiro, como os princípios da “brevidade” e da “utilidade”, que traziam a perspectiva de desenvolvimento do processo em menor tempo possível, com o cumprimento dos prazos, adequadamente, tanto pelas partes quanto pelos julgadores3.
Em contrapartida, as atuais normativas processuais civis4 pretenderam reforçar a possibilidade de modificação deste perfil e buscar enaltecer a capacidade dos sujeitos em resolver conflitos por suas próprias razões e decisões. Este perfil normativo coaduna com a perspectiva da Bioética de Intervenção, que trabalha com o conceito de empoderamento dos sujeitos em prol de suas participações nos processos de tomadas de decisão a respeito de suas questões individuais e coletivas5.
O CNJ já vem traçando esforços neste sentido, concernentes aos processos já apresentados à esfera judicial. Trata-se de uma proposta de modificação de perfil de enfrentamento dos litígios no Brasil, tanto extrajudicial quanto judicial, que se aproxima, ainda, ao movimento ADR - Alternative Dispute Resolution, iniciado nos EUA na década de 1970, surgido tendo em vista os custos crescentes e os atrasos cada vez mais inerentes aos processos judiciais6. Segundo o CNJ, esta proposta brasileira tem buscado refletir “um movimento de consensualização do Poder Judiciário uma vez que passa a estabelecer a autocomposição como solução prioritária para os conflitos de interesse”7. E ainda constata: “Isso significa que o legislador crê que a maior parte dos conflitos pode ser resolvida por meios consensuais”8.
Assim, é possível pensar-se na resolutividade de conflitos entre médicos e pacientes tanto no início de processos judiciais já instaurados, quanto em momentos imediatamente anteriores, tal como se dão as propostas extrajudiciais de consenso, em que eventual decisão ainda é efetivamente regida pela vontade e discurso dos sujeitos. É importante notar que, mesmo com os esforços institucionais e normativos, incitar a possibilidade de composição de conflitos por meio da própria autonomia das partes apresenta-se como um desafio, tendo em vista a presença das estruturas de poder havidas das relações e vulnerabilidades, conforme ressaltado por estudos da bioética de intervenção. É o que Warat9 traz em sua explanação sobre as diferenças nas relações sociais, que devem ser compreendidas, embora, sem resignação:
Claro que, para existir autonomia e um recíproco reconhecimento das diferenças, é imprescindível renunciar ao mito de uma sociedade perfeita, na qual as relações sociais são pacíficas e transparentes, os conflitos e desigualdades sociais totalmente eliminados e os homens todos bons, fraternos e solidários. Para que existam autonomia e reconhecimento das diferenças, teremos que aceitar o caráter inacabado e indeterminável das relações sociais, dado que elas, em cada instante, se refazem de um modo imprevisível. Temos que nos aceitar como integrantes de uma sociedade produtora de discursos ambíguos, indeterminados, de uma sociedade que precisa assumir sua radical criatividade e o caráter indeterminado de sua história. Temos que nos aceitar formando parte de uma sociedade que deve deixar de lado seus medos frente às suas divisões e seus conflitos constituintes10.
Neste sentido, uma noção do real contexto social torna-se fundamental à conseguinte proposta de tentativa de sua modificação. Esta perspectiva real, se acredita, é enfrentada pelos estudos da mencionada teoria bioética, que examina as relações intersubjetivas de poder sob o ponto de vista da opressão social, acredita que a ausência de concretização de direitos promove um distanciamento do que vem a ser a liberdade e o empoderamento do cidadão, e nota o quão ainda é uma pretensão futura o encontro do estágio de um sujeito emancipado socialmente11.
O que se pretende, neste contexto, é pensar em uma possível contribuição das perspectivas trabalhadas pela bioética de Intervenção em um significativo esforço a ser aplicado na atual conjuntura normativa judicial, propensa a possibilitar o abandono da ideia de substituição do poder popular pelo poder decisório dos juízes, a partir do enaltecimento da capacidade das partes de solucionarem, entre si, os seus próprios conflitos, em autocomposição.
Segundo depreende-se da apresentação desta teoria por seus autores Volnei Garrafa e Dora Porto, é que analisa problemas morais concretos em uma perspectiva contra hegemônica, em especial diante da realidade latino-americana, de insuficiente estruturação de direitos individuais e coletivos, contexto que se pode observar no âmbito da saúde e, inclusive, no decurso da relação médico-paciente. Assim, ao trazer as noções de libertação, empoderamento e emancipação moral como potencialmente modificadores de contextos, têm-se a teoria como capazes de auxiliar na modificação do cenário judicializador na relação médico-paciente. Correlato ao tema, sob o ponto de vista da autocomposição e a perspectiva social democrática, Didier afirma:
Compreende-se que a solução negocial não é apenas um meio eficaz e econômico de resolução de litígios: trata-se de importante instrumento de desenvolvimento da cidadania, em que os interessados passam a ser protagonistas da construção da decisão jurídica que regula as suas relações. Neste sentido, o estímulo à autocomposição pode ser entendido como um reforço da participação popular no exercício do poder – no caso, o poder de solução dos litígios. Tem, também por isso, forte caráter democrático12.
Em contrariedade, mantendo-se a substituição deste poder pelo judiciário, a percepção é oposta e, portanto, tem-se a heterocomposição13, que é o modelo tradicional de composição dos conflitos até então instalado no Brasil, e que se caracteriza pela prática de solução determinada pelo juiz14. Sobre estes modelos da autocomposição e heterocomposição, importante destacar uma distinção abordada pelo CNJ15 a respeito dessas duas formas de resolução de litígio, que observa uma perspectiva de humanização na autocomposição:
Na autocomposição, parte-se da premissa de que o centro do processo são as pessoas que o compõem. Desta forma se faz necessário atentar às necessidades materiais e processuais que os interessados têm ao se conduzir uma mediação ou uma conciliação. Na heterocomposição, por sua vez, há preocupação com a transparência do processo de forma que deve prevalecer a regra procedimental que tiver sido normatizada16.
Observe-se que, ao abordar as necessidades materiais ou processuais das partes, a proposta aproxima-se da valorização da atenção às vulnerabilidades dos sujeitos, em quaisquer dos sentidos anteriormente estudados. Em especial, pode-se destacar uma aproximação à vulnerabilidade social, bastante valorizada pelos estudos da bioética de intervenção, sobretudo quando dificuldades relativas à instrução educacional ou socioeconômicas fazem parte da realidade de um dos sujeitos participantes da relação.
O estudo de conflitos intersubjetivos entre médicos e pacientes na assistência em saúde e a possibilidade de enaltecimento da capacidade decisional de sujeitos no âmbito do judiciário remetem o pesquisador, por condução lógico-dedutiva, ao estudo dos fundamentos da própria perspectiva legislativa de estímulo à autocomposição. Esses fundamentos, considerados pelos textos das normas enquanto princípios, são a base sobre a qual serão construídas, no âmbito prático, as regras de atuação conseguintes a serem exercidas pelos atores judiciais. Para esta análise, é possível eleger-se alguns deles por aproximação temática com a Bioética de Intervenção, em consonância com as apreciações sobre relação de poder, simetralização, autonomia e vulnerabilidade. São eles, os princípios da “autonomia da vontade”, da “oralidade”, da “informalidade” e da “decisão informada”17.
Inobstante já ser conhecida a definição de autonomia, importante salientar a sua motivação enquanto fundamento da proposta mediadora. É que, pressupondo um exercício de liberdade, compreende-se tanto a possibilidade de ingerência das partes, paciente e médico, em definir suas próprias soluções para o conflito, quanto a proibição de exercício de qualquer constrangimento à autocomposição pelo sujeito mediador18, que deve funcionar apenas como orientador, conforme definido pelas normas a seguir dispostas.
Ao abordar a oralidade e a informalidade, a legislação propõe a realização dos atos sem cerimônia, em uma tentativa de propiciar leveza, fluidez e familiaridade. Oportuniza, de tal modo, a manutenção dos comportamentos comuns aos sujeitos, o que conforma uma estrutura diversa dos rituais e simbologias estigmatizados nas atuações jurisdicionais19, capazes de produzir o que Foucault denominou de “ritual da circunstância”, como uma limitação ou interdição imposta socialmente, a alguns sujeitos, em determinados ambientes de discursos20.
Necessária, logo, a utilização de linguagem simples, com vocabulário próprio aos sujeitos, o que coaduna com a ideia desenvolvida na reflexão sobre o consentimento informado e esclarecido na assistência à saúde, e redução dos impactos das relações de poder pelo saber, trabalhadas na perspectiva da Bioética de Intervenção. Esta noção é trazida pelo princípio da decisão informada, que torna imprescindível a ocorrência de consenso apenas após a compreensão da questão, dos termos do acordo e de suas consequências, por médicos e pacientes durante a autocomposição. Segundo Didier, a “informação garante uma participação dos interessados substancialmente qualificada. A qualificação da informação qualifica, obviamente, o diálogo”21.
A respeito da percepção de isonomia entre os sujeitos participantes do processo de tentativa de mediação, no caso da relação entre médicos e pacientes este princípio pode ser compreendido como busca pelo estabelecimento de “simetria”. Trata-se de uma simetria almejada, tendo em vista as relações de poder que se fazem presentes, em especial diante de vulnerabilidades como a social, que se soma aos contextos específicos de cada âmbito que se está a discutir. Na relação assistencial estão presentes peculiaridades, dentre elas as questões de saúde/doença – que, por si só, já são capazes de vulnerabilizar o indivíduo –, e a pouca efetivação de políticas públicas favoráveis à concretização dos direitos humanos, o que já enseja a dificuldade no diálogo simétrico entre os sujeitos.
Por mais que as normas processuais civis brasileiras tenham atentado para a perspectiva de empoderar os sujeitos no decurso da pretensão mediatória, o descortinamento das relações de poder-saber presentes originalmente carece de apresentação, visto que se mantém. No presente caso estudado, trata-se de uma relação entre médicos e pacientes originalmente assimétrica que, ao ser mediada, trará consigo o histórico vivenciado entre estes, além do histórico concernente à medicina em suas relações intersubjetivas.
Conforme visto, as estruturas que permeiam o diálogo entre médicos e pacientes vão além das normas jurídicas, sendo enriquecidas por expectativas sociais de êxito, incompreensão sobre fenômenos iatrogênicos, dificuldades no estabelecimento de comunicações simétricas, dentre outras questões que, caso sejam negligenciadas, podem ser capazes de promover, de início, uma continuidade da mesma estrutura hegemônica previamente vivenciada.
Portanto, para que se esteja efetivamente discutindo conflitos advindos de uma relação assistencial, é necessário, aos atores, iniciando-se pelo mediador, que irá conduzir a proposta autocompositiva, compreender o contexto em que se insere esta relação e o âmago do problema.
Importante ressaltar, a partir dos estudos anteriores da bioética de intervenção a respeito do empoderamento, que os processos de conquistas de direitos, sobretudo quando conformados em normas que as consignam22, favorecem os exercícios de liberdade nas tomadas de decisões e estabelecimentos de ações. Entretanto, é necessária a garantia do exercício destes direitos, o que se deve pretender em um processo dialógico que busca pelo exercício livre de tomada de decisões, inclusive no judiciário.
Por meio do diálogo, é necessário o estímulo à autonomia do paciente e do médico, agora atores processuais, para que, exercendo as suas capacidades concretas de conhecer e decidir, possam tanto consensuar, compreendendo que participam de uma conjuntura de judicialização excessiva, quanto, também por suas próprias decisões, manterem a demanda processual.
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1 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 [Internet]. Brasília, DF, 1988. Disponível aqui.
2 MALDONADO DE CARVALHO, José Carlos. Mediação: aplicação no Brasil. Revista Centro de Estudos Judiciários, Brasília, n. 17, p. 58-59, abr./jun. 2002.
3 SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. São Paulo: Saraiva, 1999.
4 BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Publicada em D.O.U. de 17 de março de 2015 [Internet]. Brasília, 16 de março de 2015; 194º da Independência e 127º da República. Disponível aqui.
5 PORTO, Dora. Bioética de intervenção: retrospectiva de uma utopia. In: PORTO, Dora et al. Bioéticas, poderes e injustiças: 10 anos depois. Brasília: Conselho Federal de Medicina/Cátedra Unesco de Bioética/SBB; 2012.
6 FREY, Martin A. Alternative Methods of Dispute Resolution. New York: Delmar Learning, 2003.
7 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça [Internet]. Manual de Mediação Judicial. Brasília-DF, 2016. Disponível aqui.
8 Ibidem.
9 WARAT, Luis Alberto. A fantasia jurídica da igualdade: democracia e direitos humanos numa pragmática da singularidade. Revista Sequência, Florianópolis, n. 24 set., p. 36-54, 1992.
10 Idem, p. 36-54.
11 GARRAFA, Volnei; PORTO, Dora. Bioética, poder e injustiça: por uma ética de intervenção. In: GARRAFA, Volnei; PESSINI, Leo (Orgs.). Bioética: Poder e Injustiça. Sociedade Brasileira de Bioética-Centro Universitário São Camilo, São Paulo: Edições Loyola, 2003.
12 DIDIER JÚNIOR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil: introdução ao Direito Processual Civil, parte geral e processo de conhecimento, 18a ed. Salvador:Jus PODIVM, 2016, p. 271.
13 Heterocomposição. In: Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [Internet], 2008-2013. Disponível aqui.
14 Ainda que se possa recorrer da sentença exarada pelo juiz, o âmbito decisional permanecerá sob a posse do poder judiciário, passando às figuras dos desembargadores dos Tribunais de Justiça ou dos ministros dos Tribunais Superiores – STJ ou STF.
15 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. [Internet]. Manual de Mediação Judicial. p. 32. Disponível aqui.
16 Ibidem.
17 Ibidem.
18 DIDIER JÚNIOR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. 18a ed. Salvador:Jus PODIVM, 2016, p. 276.
19 Ibidem.
20 FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2009. p. 10.
21 DIDIER JÚNIOR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. 18a ed. Salvador:Jus PODIVM, 2016, p. 277.
22 Tal como os direitos humanos estão consignados na Constituição Federal brasileira.