O tema do presente artigo tem um substrato fático: recentemente, foi noticiado que o hospital Brigham and Women's Hospital, situado em Boston, nos Estados Unidos, retirou da lista de potenciais receptores de coração um paciente que não se vacinou contra a COVID-191. O que foi divulgado pela instituição de saúde é de que ele estaria seguindo sua política de transplantes de órgãos, a qual tem, como um dos critérios para selecionar o receptor do órgão, que haja sua maior sobrevida após o procedimento.
A prática do transplante de órgãos afeta o sistema imunológico2, representando um risco à vida do receptor; assim, a vacinação se torna uma variável com grande influência no momento de escolha do receptor, ou seja, ela ressoa na probabilidade de sobrevida. A notícia é de outro país, mas no Brasil pode ser abordado sob a mesma perspectiva.
Esclareça-se que no Brasil3 é escassa quantidade de órgãos, se comparada ao crescente número de pacientes que concorrem para o transplante. Agrava-se a situação à medida que a pandemia de COVID-19 interferiu de maneira a diminuir o número de transplantes realizados e também dos potenciais doadores. Acrescente-se, ainda, maior mortalidade nos pacientes já transplantados4.
Assim, a preocupação com aquele que está vacinado significa que possa desfrutar sua vida com mais qualidade após o transplante realizado, aliado ao tempo de vida que se estenderá.
Nesse contexto, é importante a adoção de critérios de seleção de potenciais receptores, sobretudo com vistas à distribuição equânime e justa, de modo a se buscar o equilíbrio entre interesses dos potenciais receptores e o baixo número de órgãos disponíveis para transplante.
De acordo com Valter Duro Garcia et. al.5, em regra, a decisão que nega a transplantação a um paciente que esteja na fila de espera para receber um órgão, deve ser fundamentada em critérios médicos, e não em argumentos alinhavados ao utilitarismo social, exceto se esses argumentos influírem diretamente no resultado do transplante, ocasião na qual poderão ser invocados6.
O utilitarismo, segundo Beauchamp e Childress, tem raiz no princípio da beneficência (pelo qual se busca a realização de condutas positivas que tenham por fito trazer benefício a outra pessoa), e se refere à ponderação entre os riscos, benefícios e custos resultantes das ações, permitindo-se, a partir dele, que interesses da sociedade prevaleçam sobre os individuais, embora sua utilização não deva ser irrestrita7.
Dessa forma, na prática dos transplantes de órgãos, tendo em vista que os órgãos são recursos escassos, mostra-se de grande importância a análise das variáveis risco-benefício-custo, especialmente, as condições do potencial receptor, dentre as quais emerge a questão de sua vacinação, sobretudo porque o foco é a melhora da qualidade de vida do transplantado.
Nessa rota, desponta o assunto acerca da vacinação em pacientes candidatos ao recebimento de órgãos. Ressalte-se que não é tema que se desponta apenas em virtude de exigibilidade de vacina da COVID-198-9.
Na verdade, a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO) possui manual nessa temática, o qual, em linhas gerais, orienta que o ciclo de vacinação do potencial receptor para diversas moléstias (como influenza, sarampo, rubéola, entre outras) seja iniciado, tão logo, de sua inclusão no cadastro de receptores e reiniciado após o transplante, quando o nível de imunossupressão tiver sido reduzido ao mínimo possível, o que, geralmente, ocorre em até seis meses da realização do procedimento10.
De acordo com referido manual, as vacinas contraindicadas nessa situação são aquelas cuja plataforma se embasa em microrganismos vivos, por representarem riscos às pessoas imunossuprimidas, devendo, assim, enquanto ser imunocompetente o potencial receptor11.
Igualmente, a Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), em seu Calendário de Vacinação de Pacientes Especiais, como àqueles submetidos ao transplante de órgãos ou aguardando, apresenta o tipo de vacina recomendada e o tempo ideal a ser administrada, contraindicando vacinas do tipo vivas atenuadas no pós-transplante, salvo se o paciente estiver imunocompetente, e contraindicando, sem exceções, a vacina pólio oral12.
Especificamente sobre a vacina contra a COVID-19, verifica-se que as atualmente disponíveis são seguras para receptores e potenciais receptores de órgãos, uma vez que seus mecanismos não são o de vírus atenuado, assim, não representam risco à essa população13.
Embora, até o momento, tenha-se verificado que a vacinação tenha refletido em menor resposta imune às pessoas transplantadas do que na população em geral14, fazendo-se necessários mais estudos15, a aplicação de dose de reforço contribuiu para a melhora da resposta imunológica16. Ademais, a aplicação da vacina antes da realização do transplante também evidenciou que há melhor resposta imune nesse momento de imunização, quando comparada à aplicação pós-transplante17.
Tanto é que a ABTO, por meio de sua Comissão de Infecção em Transplantes (COINT), posicionou-se no sentido de assegurar que as vacinas atualmente disponíveis são indicadas para receptores de órgãos e tecidos, devendo-se completar o esquema vacinal, preferencialmente, antes da realização do transplante18-19. Essa posição também foi adotada pelo Ministério da Saúde, no plano atual de vacinação contra a COVID-19, haja vista que é improvável que as vacinas, atualmente disponíveis, aumentem as chances de algum evento adverso pós-vacinação (EAPV), ante o atual estágio do conhecimento científico20.
Dessa forma, a possibilidade de se exigir a vacinação para o potencial receptor de órgãos mostra-se viável à luz da interpretação teleológica do procedimento de transplante de órgãos, afinal, procura assegurar maior possibilidade de sobrevida à pessoa, além da vacina não lhe oferece riscos do ponto de vista médico como regra geral.
No Brasil, a Portaria nº 2.600 do Ministério da Saúde, de 21 de outubro de 2009, posteriormente consolidada pela Portaria de Consolidação nº 4 do Ministério da Saúde, de 28 de setembro de 2017, trazem em seu bojo os requisitos para que uma pessoa seja eleita à condição de receptora de órgãos.
Os requisitos para escolha do receptor do órgão são disciplinados pela Portaria do Ministério da Saúde nº 2.600, posteriormente consolidada pela Portaria de Consolidação nº 4 do Ministério da Saúde, e ditos requisitos não são os mesmos para todos os tipos de transplantes. Há pressupostos comuns a todas as modalidades, como a necessidade de compatibilidade entre doador e receptor quanto aos sistemas ABO (tipagem sanguínea) e HLA (pelo qual se verifica a existência de anticorpos anti-doador), em vistas de se diminuir as chances de rejeição do órgão transplantado21, mas, há, também, requisitos específicos a cada tipo de procedimento.
Em continuidade, dentre os pressupostos exigidos para se manter na lista de espera por um órgão, há exames comuns para qualquer tipo de transplante, como alguns destinados à verificação de infecção por vírus, exemplificativamente, o de sorologia para HIV e imunofluorescência para citomegalovírus IgG e IgM (cf. art. 42, §10, Portaria de Consolidação do Ministério da Saúde nº4), haja vista diretamente influírem nas chances de sucesso do procedimento.
Além disso, o §6º do artigo 39 da supramencionada norma infralegal também permite aos Estados exigirem critérios adicionais aos potenciais receptores, desde que não contrariem os princípios norteadores da distribuição dos órgãos.
Isso significa que o rol de critérios para ser elegível à condição de receptor de órgãos não é taxativo e, como a questão da vacinação da COVID-19 está diretamente relacionada à garantia de maiores chances de sobrevida do receptor, não contraria os princípios básicos da matéria, permitindo-se, então, que seja adotado.
Por fim, há de se rememorar o viés de saúde pública da vacinação, classificada até mesmo como um dos melhores investimentos na área da saúde, em razão de seu custo-benefício22-23, e ainda, como estratégia preventiva para redução de morbimortalidade de doenças imunopreveníveis, tanto daquela pessoa que recebeu o imunizante, quanto das pessoas não vacinadas, ao reduzir a taxa de transmissão de doenças24-25.
Soma-se a isso o fato de que os órgãos retirados dos doadores para fins de transplante têm natureza coletiva, isso porque são fornecidos pela sociedade, assim, os órgãos de doadores falecidos a ela pertencem26. É também interesse da coletividade que aquele órgão doado seja transplantado com sucesso, o que é potencializado por um receptor que foi vacinado. Logo, a possibilidade de se exigir vacinação nesse aspecto é o elemento que traz também harmonia sob aspecto de saúde coletiva, dado o interesse da sociedade.
Portanto, o melhor cenário é o critério de exigência de vacinação, correspondendo com o teor da previsão da Portaria de Consolidação nº 4 do Ministério da Saúde; além de estar em sintonia com o interesse da sociedade que é justamente o sucesso na transplantação do órgão; afinal, a finalidade última dos transplantes visa salvar vidas e/ou melhoria de qualidade de vida.
Referências
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1 UNVACCINATED man denied heart transplant by Boston hospital. BBC News, 2022. Disponível em: https://www.bbc.com/news/world-us-canada-60132765. Acesso em 28 jan. 2022.
2 Isso porque a técnica de imunossupressão empregada tem por fito a redução da probabilidade de rejeição do órgão transplantado, maximizando-se as chances de sobrevida do paciente, além de buscar igualmente mitigar o risco de infecções, eventos adversos e neoplasias. Cf. GARCIA, C.D. et. al. Transplante de órgãos e tecidos. In: ______(org.). Manual de doação e transplantes: informações práticas sobre todas as etapas do processo de doação de órgãos e transplante. Porto Alegre: Libretos, 2017. p. 139. BALLALAI, I.; MICHELIN, L.; LEVI, M.; STUCCHI, R. S. B (orgs.). Guia de imunização SBIm/ABTO: transplante de órgãos 2019-2020. Disponível em: https://sbim.org.br/images/guias/guia-transplante-orgaos-sbim-abto-2019-2020.pdf. Acesso em: 22 fev. 2022. p. 5.
3 FREGONESI, A.F. et. al. O processo doação-transplante. In: PEREIRA, W.A. (coordenação geral); FERNANDES, R.C.; SOLER, W.V. (coordenação executiva). Diretrizes básicas para captação e retirada de múltiplos órgãos e tecidos da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos. São Paulo: ABTO – Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos, 2009. p. 17.
4 GARCIA, V.D.; PÊGO- FERNANDES, P.M. O transplante de órgãos e a COVID-19. Revista Diagnóstico e Tratamento, v. 26, n. 3, 2021. passim 93-96. Disponível em: https://docs.bvsalud.org/biblioref/2021/09/1291192/rdt_v26n3_93-96.pdf. Acesso em: 28 jan. 2022.
5 GARCIA, V.D. et. al. Critérios de distribuição de órgãos. In: GARCIA, C.D. (org.). Manual de doação e transplantes: informações práticas sobre todas as etapas do processo de doação de órgãos e transplante. Porto Alegre: Libretos, 2017. p. 107.
6 Acerca da utilização desse tipo de argumentação de viés utilitarista-social, os autores apresentam o exemplo da recusa à transplantação a potencial receptor alcoólatra em se tratando do transplante hepático. Cf. GARCIA et. al., op. cit., p. 107.
7 BEAUCHAMP, Tom L.; CHILDRESS, James F. Princípios de ética biomédica. Trad. por Luciana Pudenzi. São Paulo: Edições Loyola, 2013, p. 281-283.
8 A Organização Mundial da Saúde (OMS) reconheceu em 11 de março de 2020 que a contaminação causada pelo Sars-CoV-2 atingiu o nível de pandemia. Cf. ORGANIZAÇÃO Mundial da Saúde declara pandemia do novo Coronavírus: mudança de classificação obriga países a tomarem atitudes preventivas. UNA-SUS, 11 de março de 2020. Geral. Disponível em: https://www.unasus.gov.br/noticia/organizacao-mundial-de-saude-declara-pandemia-de-coronavirus. Acesso em: 28 jan. 2022.
9 Ainda no período pré-pandêmico, especificamente ao biênio 2019-2020, a Sociedade Brasileira de Imunizações e a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos, em conjunto, elaboraram manual contendo o esquema vacinal ideal aos candidatos a transplante ou transplantados de órgãos sólidos. Cf. BALLALAI, I.; MICHELIN, L.; LEVI, M.; STUCCHI, R. S. B (orgs.), op. cit, p. 26.
10 COMISSÃO DE INFECÇÃO EM TRANSPLANTES. Vacinação pré e pós-transplantes de órgãos adulto. 2018. Disponível em: http://www.abto.org.br/abtov03/Upload/file/Populacao/ABTO2018_recomendacoes-vacinacao.pdf. Acesso em: 28 jan. 2022.
11 COMISSÃO DE INFECÇÃO EM TRANSPLANTES, 2018, op. cit., p. 1.
12 SOCIEDADE BRASILEIRA DE IMUNIZAÇÕES. Calendário de vacinação: pacientes especiais. 2021-2022, p. 28-29. Disponível em: https://sbim.org.br/publicacoes/guias. Acesso em: 22 fev. 2022.
13 GIANELLA, M. et al. SARS-CoV-2 vaccination in solid-organ transplant recipientes: what the clinician needs to know. Transplant International, 2021, 34: 1776-1788. DOI: https://doi.org/10.1111/tri.14029. Disponível em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/tri.14029. Acesso em: 25 fev. 2022. p. 1777.
14 GIANELLA et al, op. cit., p. 1778-
15 DULY, K et al. COVID-19 vaccine use in immunocompromised patients: a commentary on evidence and recommendations. American journal of health-system pharmacy, vol. 79, n. 2 15 de janeiro de 2022: 63-71. doi:10.1093/ajhp/zxab344. Acesso em 25 fev. 2022, p. 69.
16 GIANELLA et al, op. cit., p. 1778, 1781. HALL, V.G. et al. Randomized trial of a third dose of mRNA-1273 Vaccine in transplant recipientes. The New England Journal of Medicine, 23 de setembro de 2021. DOI: 10.1056/NEJMc2111462. Acesso em 25 fev. 2022.
17 GIANELLA et al, op cit, p. 1781; GRUPPER, A. et al. Kidney transplant recipients vaccinated before transplantation maintain superior humoral response to SARS-CoV-2 vaccine. Clinical Transplantation, v. 35, n. 12. DOI: https://doi.org/10.1111/ctr.14478. Acesso em 25 fev. 2022, p. 5-7.
18 COMISSÃO DE INFECÇÃO EM TRANSPLANTES. Vacinas contra a COVID-19 e transplante de órgãos sólidos. Recomendação COINT-ABTO de 22 de fevereiro de 2021. Disponível em: https://site.abto.org.br/blog/noticias/transplante-para-orgaos-solidos-e-vacina-para-covid-19/. Acesso em: 28 jan. 2022. p. 1.
19 COMISSÃO DE INFECÇÃO EM TRANSPLANTES. Vacinação contra COVID-19. Recomendação COINT-ABTO de 10 de maio de 2021. Disponível em: https://site.abto.org.br/blog/noticias/transplante-de-orgaos-solidos-e-vacinas-para-o-covid/. Acesso em: 22 jan. 2022. p.1.
20 MINISTÉRIO DA SAÚDE. Pacientes oncológicos, transplantados e demais pacientes imunossuprimidos. In: _____. Plano Nacional de Operacionalização da vacinação contra a COVID-19. 12 ed. Brasília. p. 57-58. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/coronavirus/publicacoes-tecnicas/guias-e-planos/plano-nacional-de-operacionalizacao-da-vacinacao-contra-covid-19.pdf/. Acesso em: 22 fev. 2022.
21 NEUMANN, J. et. al. Avaliação imunológica pré-transplante. In: GARCIA, C.D. (org.). Manual de doação e transplantes: informações práticas sobre todas as etapas do processo de doação de órgãos e transplante. Porto Alegre: Libretos, 2017, p. 116-117.
22 A Organização Mundial da Saúde (OMS), fazendo um balanço dos resultados do Plano de Ação Global de Vacinas do período de 2011 a 2020, concluiu que a vacinação no período de 2000 a 2018 no mundo foi responsável por reduzir à metade o número de mortes causadas por doenças imunopreveníveis, mostrando-se as vacinas alternativas seguras, eficazes e economicamente acessíveis. Cf. WORLD HEALTH ORGANIZATION. The global vaccine action plan 2011-2020: review and lessons learned: strategic advisory group of experts on immunization. World Health Organization, 2019. Disponível em: https://apps.who.int/iris/handle/10665/329097. Acesso em: 22 fev. 2022, p. 35.
23 PROGRAMA Nacional de Imunizações – Vacinação. Ministério da Saúde, 28 de janeiro de 2022. Disponível em:https://www.gov.br/saude/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/programa-nacional-de-imunizacoes-vacinacao. Acesso em: 28 jan. 2022.
24 IRIART; J.A.B. Autonomia individual vs. proteção coletiva: a não-vacinação infantil entre camadas de maior renda/escolaridade como desafio para a saúde pública. Cadernos de Saúde Pública, v. 33, n. 2, Rio de Janeiro, fevereiro de 2017. Disponível em: http://cadernos.ensp.fiocruz.br/csp/artigo/40/autonomia-individual-vs-protecao-coletiva-a-nao-vacinacao-infantil-entre-camadas-de-maior-rendaescolaridade-como-desafio-para-a-saude-publica. Acesso em: 28 jan. 2022.
25 BALLALAI, I; BRAVO, F (orgs.). Imunização: tudo o que você sempre quis saber. 4 ed. Rio de Janeiro: RMCOM, 2016, p. 7.
26 GARCIA, op. cit., p. 107.