O planejamento patrimonial sucessório vem ganhando destaque nos últimos anos entre as famílias brasileiras. A ideia de facilitar e, muitas vezes, antecipar a transferência do patrimônio entre os sucessores de uma mesma família, aumentou a procura de consultoria jurídica especializada. Somada a essa procura pelo tema, temos também no país um contexto social econômico de relevância e destaque das sociedades familiares, uma vez que estas representam 90% das empresas do território nacional1.
A relação entre essas duas realidades faz com que grande parte dos planejamentos sucessórios tenham em seu objeto ao menos uma sociedade de caráter familiar, em geral sociedades limitadas, que também passam por esse procedimento de análise e organização, sendo muito comum a utilização da ferramenta do usufruto das quotas sociais para facilitar a transferência do patrimônio no momento da morte.
O usufruto, direito real sobre coisa alheia previsto pelo art. 1.225, inciso IV, do Código Civil, pode ser definido, segundo Maria Helena Diniz, como o direito “conferido a alguém de retirar, temporariamente, da coisa alheia os frutos e utilidades que ela produz, sem alterar-lhe a substância”2.
Mas qual a vantagem de gravar quotas sociais com o direito real de usufruto?
Em uma análise voltada para o âmbito do planejamento sucessório, a vantagem da instituição é exatamente a transferência automática da integralidade do direito de propriedade sobre o bem gravado na eventualidade da morte.
Como exemplo, na hipótese de o ascendente doar ao descendente seus bens, com reserva de usufruto, há apenas a transferência, em um primeiro momento, da nua-propriedade de determinado patrimônio que, no futuro, a rigor, seria objeto de inventário. Entretanto, com a realização da doação gravada de usufruto, e o doador reserva para si o direito de usar e perceber os frutos do bem (podemos falar de aluguéis, dividendos, entre tantos outros) e, na ocasião da sua morte, o usufruto é automaticamente extinto, por força do art. 1.410, I, do CC, consolidando a propriedade na sua integralidade nas mãos do donatário. Temos, assim, uma transferência da propriedade pautada pela morte, mas sem necessidade de inventário.3
E é justamente esse o incentivo no uso desta importante ferramenta de planejamento sucessório, para nas empresas familiares utilizando-se do usufruto em quotas sociais.
Tendo em vista que, como já mencionado anteriormente, as sociedades familiares estão presentes de forma significativa na sociedade econômica brasileira, não é raro sua presença entre os bens das famílias que procuram o planejamento sucessório. Considerando que as quotas dessas sociedades também devem passar por inventário em eventual abertura de sucessão, a instituição do usufruto se torna uma opção amplamente utilizada.
Essa utilização, entretanto, deve se atentar a algumas especificidades do bem gravado - a quota social -, como é o caso do direito de retirada unilateral imotivada, tratado neste artigo. Referido direito é constitucionalmente tutelado pelo princípio da livre associação (e, consequentemente, livre desassociação), além de ser previsto, também, pelo art. 1.029, do CC, que determina que “qualquer sócio pode retirar-se da sociedade”.
Em linhas gerais, o direito de retirada unilateral imotivada garante a possibilidade de que, a qualquer momento, aquele que não tenha mais vontade de se manter sócio dos demais peça sua retirada, com o pagamento dos haveres referentes a suas quotas titularizadas. O STJ, inclusive, já se posicionou na esteira de que referido direito é potestativo, podendo, portanto, ser exercido, independentemente, da vontade dos demais sócios4.
Essa possibilidade é de muita relevância, principalmente tendo em vista que a cessão de quotas sociais, em especial em sociedades limitadas, muitas vezes é restrita à concordância dos demais sócios, como forma de se preservar a affectio societatis. Assim, a possibilidade de retirada com o pagamento dos haveres é a forma mais rápida de garantir a efetividade do direito.
Não obstante, a garantia deste direito potestativo pode encontrar alguns obstáculos nos casos em que as quotas sociais são gravadas com o direito real de usufruto.
Pensemos, então, em um exemplo prático (e hipotético): o ascendente é quotista em uma sociedade limitada familiar, na qualidade de sócio ao lado de seus irmãos. Com intuito de planejar sua sucessão, resolve doar suas quotas à sua filha, reservando para si o usufruto político e econômico, de modo a manter para si os dividendos e o poder de voto. Após certo tempo, a filha (então nua-proprietária das quotas) não deseja mais ser quotista desta sociedade. Nesse contexto, poderia ela reclamar seu direito de retirada unilateral e imotivada?
Apesar da falta de previsão a esse respeito, um caminho possível para resolver está dúvida é perquirir a respeito dos limites desse direito real, bem como as obrigações impostas tanto ao nu-proprietário quanto ao usufrutuário.
Para compreender melhor o fenômeno do usufruto, é comum desdobrarmos o direito de propriedade em três vertentes: o direito de usar, fruir e dispor. Como bem apontado pela doutrina, entretanto, não se trata de equação simples, na qual se subtrai do proprietário o usar e o fruir, restando apenas o direito de dispor.5
Tais direitos (propriedade e usufruto), em verdade, devem coexistir e dialogar entre si, mantendo equilíbrio de tal forma que um não inviabilize o outro: daí porque não se pode reduzir o tema em uma operação matemática de soma e subtração. O nu-proprietário, além do direito de dispor e de manter sua titularidade, deve também ter garantida a conservação da substância da coisa. Em outras palavras, não se pode deteriorar ou alterar a substância do bem de tal forma que, ao cessar o usufruto, receba-o em condição diversa do momento inicial da instituição do direito real6.
No mesmo sentido, ao usufrutuário deve ser garantido seu direito pleno de uso e percepção de frutos, sem outros obstáculos, eventualmente, a eles atribuídos.
Temos, assim, a ideia de coexistência e equilíbrio entre propriedade e usufruto, cujos exercícios harmônicos e simultâneos garantem a subsistência de ambos os titulares de direitos, sem que um impeça ou crie obstáculos ao outro7.
Nesse sentido, tendo em vista que o direito de retirada previsto pelo art. 1.029 do CC ocasiona a liquidação das quotas sociais, pode-se concluir que permitir o exercício do referido direito pelo nu-proprietário significa permitir também sua extinção, entenda-se, a extinção do usufruto, fazendo com que, na prática, tenhamos um usufruto por tempo indeterminado, passível de resolução de acordo com a vontade exclusiva do nu-proprietário. Nas palavras da doutrina, tratar-se-ia de hipótese de subversão do usufruto em favor do nu-proprietário “e, especialmente no caso de usufruto por retenção, a ficar com o bônus, mas não com o ônus da doação, tudo isso sem a anuência do usufrutuário”8
No mais, em relação a eventual argumento de desrespeito e limitação ao direito potestativo e constitucionalmente previsto do proprietário, os estudos de Marcelo Cezar Teixeira e Vinicius Jose Marques Gontijo são precisos ao estabelecer que, nestes casos, o nu-proprietário não está sendo obrigado a se manter associado, tampouco tem seu direito de retirada negado ou extinto. O que há, em verdade, é um impedimento temporário no exercício de referido direito, advindo de ônus por ele mesmo instituído9.
Dessa forma, em que pese não se tenha um grande volume de estudos e julgados a respeito do usufruto de quotas sociais (pois, historicamente, a atenção se voltou para os direitos reais de bens imóveis), uma potencial solução para conflitos envolvendo o exercício do direito de retirada imotivada nesses casos seria justamente a análise dos limites do usufruto, de modo que estes, somados aos direitos garantidos aos usufrutuários, principalmente nos casos de usufruto por retenção, apontam para o entendimento de impossibilidade do exercício de direito de retirada pelo nu-proprietário, solução que mais se adequa ao sistema legal e aos institutos jurídicos aqui estudados, sem que tal alternativa implique, por sua vez, ofensa ao direito constitucional de não associação, mas tão somente a uma restrição temporária de exercício de direito.
Não obstante, necessário pontuar que o tema da retirada unilateral pode também ser prevista no instrumento de cessão das quotas sociais ao herdeiro, quando for este o mecanismo utilizado pelo profissional na organização do planejamento sucessório. Dessa forma, estabelecido de antemão os limites do exercício de referido direito, as chances de conflito são minimizadas.
1 PEREIRA, Carlos Martins. Qual é o grande desafio à longevidade das empresas familiares brasileiras, segundo a Dom Cabral. EXAME, 25 set. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 27 set. 2024.
2 DINIZ, Maria H. Curso de direito civil brasileiro: direito das coisas. v. 4. Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2024. E-book. ISBN 9788553622429. Disponível aqui. Acesso em: 17 set. 2024, p. 475.
3 MAIA, Roberta Mauro Medina Maia. Usufruto de quotas: desafios e peculiaridades. In: TEIXEIRA, Daniela Chaves (coord). Arquitetura do planejamento sucessório. Tomo III. Belo Horizonte: Fórum, 2022, p. 613-628.
PEREIRA, Caio Mário da S. Instituições de Direito Civil: Direitos Reais. v. IV. Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2022. E-book. ISBN 9788530990862. Disponível aqui. Acesso em: 16 set. 2024, p. 618 e 619.
4 BRASIL. STJ (Terceira turma). Recurso especial 1403947/MG. Recurso especial. Direito Empresarial. Societário. Dissolução parcial. Sociedade limitada. Tempo indeterminado. Retirada do sócio. Direito Potestativo. Autonomia da vontade. Apuração de haveres. Data-base. Art. 1.029 do CC/02. Notificação extrajudicial prévia. Postergação. 60 dias. Enunciado 13 - I jornada de Direito Comercial - CNF. Art. 605, II, do CPC/15. Relator: ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, 24/4/18. Disponível aqui. Acesso em 27 de set. de 2024.
BRASIL. STJ (Terceira turma). Recurso Especial 1839078/SP. Recurso especial. Direito Empresarial. Direito Societário. Sociedade limitada. Aplicação supletiva das normas relativas a sociedades anônimas. Art. 1.053 do CC. Possibilidade de retirada voluntária imotivada. Aplicação do art. 1.029 do CC. Liberdade de não permanecer associado garantida constitucionalmente. Art. 5º, XX, da CF. Omissão relativa à retirada imotivada na lei 6.404/76. Omissão incompatível com a natureza das sociedades limitadas. Aplicação do art. 1.089 do CC. Relator: ministro Paulo de Tarso Sanseverino, 9/3/21. Disponível aqui. Acesso em 27 de set. de 2024.
5 PEREIRA, Caio Mário da S. Instituições de Direito Civil: Direitos Reais. V. IV. Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2022. E-book. ISBN 9788530990862. Disponível aqui. Acesso em: 16 set. 2024, p. 267.
6 PEREIRA, Caio Mário da S. Instituições de Direito Civil: Direitos Reais. V. IV. Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2022. E-book. ISBN 9788530990862. Disponível aqui. Acesso em: 16 set. 2024, p. 271.
7 PEREIRA, Caio Mário da S. Instituições de Direito Civil: Direitos Reais. V. IV. Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2022. E-book. ISBN 9788530990862. Disponível aqui. Acesso em: 16 set. 2024, p. 267 e 271.
8 TEIXEIRA, Marcelo Cezar; GONTIJO, Vinicius Jose Marques. Direito de retirada no regime de usufruto de cotas ou ações sociais. Revista Brasileira de Direito Empresarial, [S. l.], v. 10, 1, 2024. DOI: 10.26668/IndexLawJournals/2526-0235/2024.v10i1.10489. Disponível aqui. Acesso em: 27 set. 2024, p. 79.
9 TEIXEIRA, Marcelo Cezar; GONTIJO, Vinicius Jose Marques. Direito de retirada no regime de usufruto de cotas ou ações sociais. Revista Brasileira de Direito Empresarial, [S. l.], v. 10, 1, 2024. DOI: 10.26668/IndexLawJournals/2526-0235/2024.v10i1.10489. Disponível aqui. Acesso em: 27 set. 2024, p. 79.