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Pacto de coparentalidade: Uma análise sob a ótica das consequências de seu inadimplemento*

O pacto de coparentalidade atende aspectos participativos e autônomos das relações privadas no direito de família atual.

26/11/2024

Uma família coparental é aquela em que dois ou mais indivíduos, sem estarem em uma relação conjugal ou união estável, decidem ter filhos de forma voluntária, exercendo sua autodeterminação e sem que haja qualquer implicação jurídico-patrimonial entre os genitores. Para Conrado Paulino da Rosa, a coparentalidade ou as famílias coparentais são aquelas que "se constituem entre pessoas que não necessariamente estabeleceram uma conjugalidade, ou nem mesmo uma relação sexual. Apenas se encontram movidos pelo interesse e desejo em fazer uma parceria de paternidade/maternidade"1.

Essa relação entre os pais coparentais é regida pelo pacto de coparentalidade2, que pode ser compreendido como um negócio jurídico atípico celebrado entre duas pessoas capazes, com o propósito de estabelecer cláusulas tanto patrimoniais quanto existenciais para a geração, criação, manutenção e desenvolvimento de um filho, independentemente da presença de um vínculo afetivo entre os genitores.

Durante a IX Jornada de Direito Civil, realizada pelo Conselho da Justiça Federal (CJF), entre os dias 19 e 22 de maio de 2022, foi proposto o seguinte enunciado: “é admissível o acordo de coparentalidade, fundando no direito ao planejamento familiar, em consonância com o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente”, sendo rejeitado sob o argumento de que o mencionado pacto (i) seria eivado de nulidade, pois seria utilizado para tentar descaracterizar os efeitos tanto patrimoniais (sejam eles inter vivos ou sucessórios) quanto extrapatrimoniais (como o dever de alimento) da união estável; e (ii) não poderia dispor de elementos que são intrinsecamente indisponíveis, intangíveis e personalíssimos, quais sejam, os direitos e deverem inalienáveis da filiação e o direito de personalidade do filho3.

Ocorre que a subordinação imposta por previsões normativas impede que situações complexas como essas, não abarcadas diretamente pelo ordenamento jurídico, recebam a tutela adequada. Nesse contexto, surge a noção de situações jurídicas, a qual reformula o conceito tradicional de direitos subjetivos na medida em que reconhece a necessidade de uma estrutura conceitual mais ampla para lidar com as interações sociais contemporâneas.

De acordo com Perlingieri, a elaboração das situações jurídicas subjetivas está profundamente conectada com o propósito de conferir uma estrutura conceitual a comportamentos e interesses, ou seja, de inserir aspectos da realidade social no âmbito jurídico, razão pela qual assumem relevância para o direito, já que se originam da análise de fatos e da realidade concreta4.

Dentro do contexto familiar, diversas formas de expressão são reconhecidas, incorporando a autonomia privada nas decisões relacionadas à família. Assim, a intervenção do Estado se justificada apenas para garantir espaços e liberdades, permitindo que cada pessoa busque sua realização de acordo com suas necessidades e dignidade, dentro do contexto do seu projeto de vida5.

Maria Celina Bodin de Moraes e Ana Carolina Brochado Teixeira6 apontam que, no contexto do Estado Democrático de Direito, as decisões sobre as escolhas existenciais têm adquirido crescente importância, à medida que a pessoa humana assume um papel central no sistema jurídico. A constitucionalização e a individualização do direito civil destacaram a relevância das decisões judiciais, uma vez que todas as situações jurídicas devem ser orientadas para a funcionalização da realização plena da pessoa humana.

Dentro desse contexto se encaixa o pacto de coparentalidade, impregnado de interesses existenciais, podendo ser compreendido também como um negócio jurídico existencial, no qual a relação jurídica é primariamente composta por situações jurídicas existenciais carentes de proteção, e cujo foco de interesse requer resguardo.

Os pactos de coparentalidade podem e devem abranger cláusulas sobre uma variedade de questões importantes, desde o método de concepção dos filhos até a divisão dos custos com os procedimentos médicos relacionados à gravidez e eventual fertilização, os gastos relacionados ao parto e as despesas de saúde do bebê, como também assuntos como religião, puericultura, alimentação e nutrição da criança.

Além disso, podem abranger aspectos como educação, atividades extracurriculares, uso de tecnologia (internet, tempo de tela), o estabelecimento do modelo de guarda compartilhada, diretrizes para a tomada de decisões tanto espontâneas quanto emergenciais, e estabelecimento de pensão alimentícia. Defende-se a desnecessidade de homologação pelo Poder Judiciário em todas as questões, acreditando-se na tendência da desjudicialização7.

Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda, ao estruturar os elementos essenciais, naturais e acidentais do negócio jurídico, teorizou a denominada "Escada Ponteana". A partir dela, o negócio jurídico pode ser compreendido em três planos: (i) plano da existência; (ii) plano da validade; e (iii) plano da eficácia. No plano da validade, os elementos essenciais ganham corpo, ou seja, deixam de ser meros substantivos e passam a receber adjetivações: partes capazes; vontade livre; objeto lícito, possível, determinado ou determinável e forma prescrita ou não defesa em lei.

No pacto de coparentalidade, o que se exige para que seja considerado válido é que os celebrantes sejam civilmente capazes, que o objeto seja a geração de filhos – objeto lícito, uma vez que se autoriza a reprodução assistida), destacando-se que não há forma especial a ser observada, tratando-se de um negócio atípico. No plano da eficácia, a coparentalidade fica amplamente condicionada à inexistência da união estável. Isso porque, caso haja relação de união estável, portanto, um ato-fato jurídico, a assinatura de pacto de coparentalidade com o propósito de fraudar a lei seria considerada inválida, resultando em nulidade (artigo 166, inciso VI do Código Civil).

Isso posto, indaga-se quais seriam as consequências jurídicas em caso de descumprimento da celebração do pacto de coparentalidade?

Para tanto, passe-se a analisar a relação jurídica obrigacional. A obrigação nasce para ser extinta, seja com o adimplemento, seja com o inadimplemento. Flávio Tartuce conceitua obrigação como: 

A relação jurídica transitória, existente entre um sujeito ativo, denominado credor, e outro sujeito passivo, o devedor; e cujo objetivo consiste em uma prestação situada no âmbito dos direitos pessoais, positiva ou negativa. Havendo o descumprimento ou inadimplemento obrigacional, poderá o credor satisfazer-se no patrimônio do devedor8. 

No pacto de coparentalidade, há uma relação jurídica obrigacional complexa, pois as partes são, ao mesmo tempo, credoras e devedoras entre si, ou seja, há um sinalagma. A quebra do sinalagma é tida como geradora da onerosidade excessiva, do desequilíbrio negocial, como um efeito gangorra.

A principal consequência do inadimplemento é consagrada pelo princípio da responsabilidade patrimonial do devedor, prevendo-se que todos9 os bens do devedor respondem em caso de descumprimento da obrigação, conforme o artigo 391 do Código Civil.

No entanto, nos casos que envolvem o pacto de coparentalidade, a desistência por parte de um dos celebrantes não poderá impactar no cumprimento forçado da obrigação, tendo em vista a sensibilidade do tema e o objeto pactuado. Por esse motivo, deverá ser aplicada a regra do inadimplemento absoluto, cuja principal consequência é o pagamento de perdas e danos, tratados entre os artigos 402 a 404 do Código Civil.

Conforme o artigo 402 do Código Civil, as perdas e danos devidos ao credor abrangem não apenas o que ele efetivamente perdeu, mas também o lucro razoavelmente deixado de auferir. No entanto, no contexto do pacto de coparentalidade, não se vislumbra a possibilidade de falar em lucros cessantes, tendo em vista a impossibilidade de se atribuir um valor monetário à prole.

A perfectibilização do pacto ocorre com a assinatura das partes, sendo que sua principal obrigação é a geração do filho, que se inicia com a fecundação; momento em que as demais cláusulas são então estabelecidas e confirmadas.

Caso uma das partes desista anteriormente à fecundação, deverá ser condenada a indenizar materialmente todas as despesas provenientes da celebração do pacto (exames, medicação, alimentação etc.), com atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, abrangendo juros, custas e honorários de advogado, sem prejuízo da pena convencional.

Na ocasião em que um dos pactuantes quebre o pacto durante a gestação, ficará inadimplente e sujeito às consequências desse descumprimento, incluindo a obrigação de indenizar por todas as despesas relacionadas à gestação, tanto antes, durante quanto depois do parto.

É importante ressaltar que o reconhecimento da paternidade e/ou maternidade é um ato jurídico stricto sensu e não está sujeito aos efeitos do negócio jurídico celebrado entre as partes. Portanto, após a fecundação, o reconhecimento da filiação está devidamente resguardado em razão da sua natureza jurídica.

Além disso, sugere-se a pactuação de cláusula penal, que é a penalidade civil imposta pela falta de cumprimento total ou parcial de um dever patrimonial assumido (artigos 408 a 416 do Código Civil). Pactuada entre as partes para casos de violação da obrigação, a cláusula penal reflete o princípio da autonomia privada, sendo também chamada de multa contratual ou pena convencional. É uma obrigação acessória que visa assegurar o cumprimento da obrigação principal e estabelecer antecipadamente o valor das perdas e danos em caso de descumprimento.

Por fim, independentemente do reconhecimento legal, as pessoas têm realizado os pactos de coparentalidade e, em breve, o Poder Judiciário poderá ser chamado a intervir para a resolução de disputas eventualmente surgidas. O que se sugere é a aplicação da teoria do inadimplemento das obrigações, aplicando a indenização por perdas e danos, com eventual execução da cláusula penal em relação à parte que descumpriu o negócio pactuado. 

Referências 

BORGES, Yago. Sobre este grupo: coparetanlidade, barriga solidária, casais LGBTQIA+. Facebook. Disponível aqui. Acesso em 21 abr. 2023, n.p. 

BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível aqui. Acesso em 15 mar. 2023. 

BRASIL. Senado Federal. Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil. Relatório final dos trabalhos da Comissão. Brasília, DF: 11 abr. 2024. Disponível aqui. Acesso em: 16 abr. 2024. 

MATOS, Ana Carla Harmatiuk; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Pacto antenupcial na hermenêutica civil-constitucional. In: MENEZES, Joyceana Bezerra de; CICCO, Maria Cristina de; RODRIGUES, Francisco Luciano Lima (Orgs.). Direito civil na legalidade constitucional: algumas implicações. Indaiatuba: Foco, 2021, p. 19. 

MORAES, Maria Celina Bodin de; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Contratos no ambiente familiar. In: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RODRIGUES, Renata de Lima. Contratos, família e sucessões: diálogos interdisciplinares. 2. ed. Indaiatuba: Foco, 2021, p. 1-2. 

PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional. Tradução de Maria Cristina de Cicco. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. 

PROJETO COPARENTS WORLD. 10 mar. 2024. Instagram: @coparents.world. Disponível aqui. Acesso em: 10 mar. 2024, n.p. 

ROSA, Conrado Paulino da. Direito de Família Contemporâneo. 10 ed. São Paulo. JusPodivm, 2023, p. 253. 

STROZZI, Arthur Lustosa et al. Análise jurídica do pacto de coparentalidade à luz da teoria do negócio jurídico e das consequências de seu inadimplemento. In: ROSA, Conrado Paulino da; IBIAS, Delma Silveira (coord.). IBDFAM/RS, Instituto Brasileiro de Direito de Família (org.). Diálogos contemporâneos sobre família e sucessões: perspectivas e desafios. Porto Alegre: Gráfica RJR, 2024. 

TARTUCE, Flávio. Direito civil: direito das obrigações e responsabilidade civil. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023, p. 3. 

VIEIRA, Danilo Porfírio de Castro. O contrato de coparetanlidade e a finalidade (ir)resistível: a (des)caracterização da união estável. Associação de Direito de Família e das Sucessões, São Paulo, 23 mai. 2022. Disponível aqui. Acesso em: 07 mai. 2023, n.p.

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*Aprofunde-se no tema: STROZZI, Arthur Lustosa et al. Análise jurídica do pacto de coparentalidade à luz da teoria do negócio jurídico e das consequências de seu inadimplemento. In: ROSA, Conrado Paulino da; IBIAS, Delma Silveira (coord.). IBDFAM/RS, Instituto Brasileiro de Direito de Família (org.). Diálogos contemporâneos sobre família e sucessões: perspectivas e desafios. Porto Alegre: Gráfica RJR, 2024.

1 ROSA, Conrado Paulino da. Direito de Família Contemporâneo. 10. ed. São Paulo. JusPodivm, 2023, p. 253.

2 Adotamos a expressão pacto de coparentalidade por entendê-lo enquanto negócio jurídico complexo, que envolve elementos existenciais e patrimoniais patrimoniais e, exatamente por essa razão, utiliza a expressão “pacto” em vez de “contrato”.

3 VIEIRA, Danilo Porfírio de Castro. O contrato de coparetanlidade e a finalidade (ir)resistível: a (des)caracterização da união estável. Associação de Direito de Família e das Sucessões, São Paulo, 23 mai. 2022. Disponível aqui. Acesso em: 07 mai. 2023, n.p.

4 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional. Tradução de Maria Cristina de Cicco. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007.

5 MATOS, Ana Carla Harmatiuk; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Pacto antenupcial na hermenêutica civil-constitucional. In: MENEZES, Joyceana Bezerra de; CICCO, Maria Cristina de; RODRIGUES, Francisco Luciano Lima (Orgs.). Direito civil na legalidade constitucional: algumas implicações. Indaiatuba: Foco, 2021, p. 19.

6 MORAES, Maria Celina Bodin de; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Contratos no ambiente familiar. In: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RODRIGUES, Renata de Lima. Contratos, família e sucessões: diálogos interdisciplinares. 2. ed. Indaiatuba: Foco, 2021, p. 1-2.

7 A redação proposta pela relatoria-geral da comissão de juristas responsável pela reforma do anteprojeto do Código Civil contempla a possibilidade de adicionar um novo artigo, o 1.655-A, ao Código Civil. Esse artigo estabelece que os pactos conjugais e convivenciais podem incluir cláusulas para resolver questões relacionadas à guarda e sustento dos filhos em caso de término da convivência conjugal. O tabelião deve informar a cada uma das partes envolvidas, separadamente, sobre o alcance potencial das limitações ou renúncias de direitos. Contudo, sabe-se que há corrente que defende a necessidade de judicialização e homologação de determinadas cláusulas, em especial, nos casos de inseminação caseira ou autoinseminação.

8 TARTUCE, Flávio. Direito civil: direito das obrigações e responsabilidade civil. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023, p. 3.

9 Destacam-se as exceções, entre outras existentes, os artigos 1.711 a 1.722 do Código Civil (bem de família) e 833 do Código de Processo Civil.

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Colunistas

Flávia Alessandra Naves Silva Mestre em Direito Civil pela PUC/SP. Diretora de Diversidade de As Civilistas. Vice-coordenadora da Comissão Nacional de Pesquisas do IBDFAM - Núcleo Sul/Sudeste. Advogada. Professora em cursos de graduação e pós-graduação.

Joyceane Bezerra de Menezes Doutora em Direito pela UFPE. Professora Titular da Unifor e da UFC. Presidente da Associação As Civilistas.

Maria Celina Bodin de Moraes Professora Titular (aposentada) de Direito Civil da PUC-Rio e da UERJ. Editora da Revista eletrônica civilistica.com. Civilista emérita na Associação As Civilistas.

Maria Cristina De Cicco Professora da Università degli Studi di Camerino (Itália). Doutora em Direito pela Università di Camerino. 2ª Vice-presidente e Civilista emérita da Associação As Civilistas.

Silvia Felipe Marzagão Mestre em Direito pela PUC/SP. Presidente da Comissão Especial da Advocacia de Família e Sucessões e Ouvidora da Mulher Advogada da OAB/SP. 1ª Vice-Presidente da Associação As Civilistas.

Thaís Sêco Professora Adjunta do Departamento de Direito da Universidade Federal de Lavras (UFLA). Doutora em Direito pela UFMG. Mestre em Direito Civil pela UERJ. Conselheira Executiva da Associação As Civilistas.