Migalhas das Civilistas

Direito de escolha da gestante ao parto normal e atuação autônoma da enfermeira obstétrica: A permanente ameaça aos direitos das mulheres

A disputa judicial sobre a autonomia de enfermeiras obstétricas na realização de partos humanizados no Brasil, destacando as implicações legais e sociais sobre os direitos reprodutivos das mulheres.

14/10/2024

Os direitos das mulheres são fruto de lenta e gradual conquista ao longo dos últimos séculos, sobretudo por força do movimento feminista nas últimas décadas que tem descortinado as múltiplas formas de opressão do patriarcado1. Notadamente, o controle sobre os corpos femininos constitui traço marcante ainda presente no direito brasileiro2, em que pese os recentes avanços na matéria3.

Contudo, assinala-se que tais direitos são constantemente ameaçados em cenários de convulsão política e/ou econômica, além de discursos religiosos que ainda atravessam o tema. No entanto, não é apenas em tempos de tensão social que a conquista de tais direitos é posta em xeque, o que descortina a permanência da vulnerabilidade da mulher diante da desigualdade de gênero.

Desse modo, vale frisar que discursos científicos e práticas médicas igualmente podem desconsiderar o protagonismo da mulher sobre seus corpos e tolher a liberdade de escolha no governo de suas vidas. A gravidez e o parto são exemplos de fases fortemente medicalizadas e que a discussão sobre a autonomia da mulher ainda permanece em pauta.

Em março de 2018, o CREMERJ - Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro propôs ação civil pública em face do Coren/RJ - Conselho Regional de Enfermagem do Rio de Janeiro, do Cofen - Conselho Federal de Enfermagem e de duas enfermeiras obstétricas. O CREMERJ objetivava com a referida demanda que: (a) o COREN e ao COFEN fossem compelidos a coibir através de medidas restritivas a prática do denominado Parto Humanizado; e (b) confirmando a tutela antecipada requerida exclusivamente em relação às duas enfermeiras obstétricas, fosse coibida a essas enfermeiras a execução do procedimento denominado parto humanizado, domiciliar ou qualquer outra prática obstétrica, sem que façam parte de equipe médica.

O cerne da questão controvertida consistia em ser possível ou não a realização por enfermeiras obstétricas do procedimento denominado parto humanizado, inclusive em domicílio, desde que seja um parto sem distocia, isto é, um parto sem perturbações, ou qualquer outra prática obstétrica sem que faça parte de equipe médica. Afirmava o CREMERJ que a execução de partos humanizados extrapola a competência das enfermeiras obstétricas e seria “totalmente irregular e declaradamente imbuída de riscos à Saúde da parturiente e seu feto, adentrando a um risco em demasia a população, ao consumidor e a saúde como um todo”.

O pedido do CREMERJ foi rejeitado em primeira instância, tendo sido reconhecida a legitimidade da atuação autônoma das enfermeiras obstétricas para realizar partos normais. A decisão apresentou sólidos fundamentos, dentre os quais merecem ser citados: (a) a realização de parto por enfermeira obstétrica, sem integrar equipe de saúde, é prevista na lei 7.498/86, art. 11, inciso II; (b) o parto sem distocia, como um evento normal e sem risco, não é atividade privativa do profissional médico; os enfermeiros obstétricos são qualificados e não há usurpação de competência ou desrespeito ao exercício indispensável, digno e ético da medicina, tendo em vista que o parto não é atividade privativa do profissional médico.

Com precisão se identificou que a celeuma consistia precisamente na interpretação do disposto na lei 7.498/86, em relação ao que seria atividade privativa de enfermeiro (inciso I do art. 11) e o que seria atividade do enfermeiro como integrante de equipe de saúde (inciso II do art. 11). Atividade privativa é aquela que somente o enfermeiro pode fazer, à exclusão de todos os outros profissionais; e atividade de participação é aquela em que o enfermeiro pode fazer, concorrendo com outros profissionais, na modalidade em que determina o verbo. No caso do parto, o enfermeiro pode “executar”, o médico e até a parteira, desde que sem distocia, como bem se infere da mens legis.

Como consignado na referida decisão, a lei é bem nítida. Caso a execução do parto normal por enfermeira obstétrica exigisse a presença de um médico, nenhum sentido teria a previsão legal para que a enfermeira, ao identificar distocias obstétricas, tome providências até a chegada do médico. Torna-se evidente que ela pode executar partos sem distocia sozinha e que apenas se houver distocia é que se faz necessária a presença de um médico.

A importância da situação não escapou ao julgador, que esclareceu ter o Ministério da Saúde criado, no âmbito do SUS, centros de parto normal (Casas de Parto), com o objetivo de resgatar a humanização do parto como evento natural, fisiológico, garantindo às gestantes menores intervenções e com a necessária atenção à mulher num contexto gravídico-puerperal, através de um atendimento ao pré-natal e ao parto normal de baixo risco, sem distocias.4

Na verdade, a criação das casas de parto decorreu da constatação de que o modelo de atenção ao parto em nosso país contraria as recomendações mundiais acerca dos critérios na utilização das práticas obstétricas, diante dos altos índices de intervenção médica5. O resgate do parto normal como um evento natural, com assistência pré-natal e cuidado humanizado assistencial à parturiente e ao seu bebê, revela a retomada da concepção de que o parto e o nascimento não significam eventos de risco certo e implícito.

Efetivamente dúvidas não podem restar quanto à legitimidade de atuação autônoma das enfermeiras obstétricas, quando se verifica que as diretrizes nacionais de assistência ao parto normal no Brasil, aprovadas pelo Ministério da Saúde nos termos da portaria 353, de 14 de fevereiro de 2017, estabelecem expressamente que “[A]a assistência ao parto de risco habitual, que se mantenha dentro dos limites da normalidade, pode ser realizada tanto por médico obstetra quanto por enfermeira obstétrica ou obstetriz” (6, 10).

Não obstante as consistentes razões de direito apresentadas, a decisão de primeiro grau foi reformada pela 8ª turma Especializada do TRF da 2ª região, que, por unanimidade, deu provimento parcial à apelação do CREMERJ, para reformar a sentença proferida pelo Juízo da 6ª Vara Federal da seção Judiciária do Rio de Janeiro, para: (a) julgar procedente em parte o pedido formulado na ação civil pública a fim de determinar que o COREN-RJ e o COFEN realizassem medidas aptas a coibir a execução de partos domiciliares por enfermeiros e enfermeiras obstétricas sem que faça parte de equipe médica; e (b) condenar as duas enfermeiras obstétricas na obrigação de não fazer, consistente em se absterem de executar partos domiciliares, sem que façam parte de equipe médica.

A 8ª turma Especializado do TRF da 2ª região igualmente entendeu que o mérito da questão consistia na possibilidade ou não de realização por enfermeiras obstétricas do parto sem distocia ou qualquer outra prática obstétrica sem que faça parte de equipe médica, bem como inexistir nos autos controvérsia quanto à qualificação das enfermeiras então recorrentes. Contudo, concluiu a referida turma que a atuação dessas profissionais não deve ocorrer isoladamente, sem uma equipe médica, sobretudo porque, em caso de intercorrências capazes de complicar o quadro, afastando a possibilidade de parto normal ou qualquer outro evento mais grave, haverá necessidade da intervenção médica.

A questão foi levada ao STJ, tendo a 1ª turma, por unanimidade, dado provimento ao RE 2.099.736/RJ, de relatoria do ministro Gurgel de Faria. Em síntese, entendeu a 1ª turma que: (a) o art. 11, inciso II, da lei 7.498/86 autoriza aos enfermeiros a execução direta do parto sem distocia (sem perturbação), não condicionando a realização do ato à assistência direta de um médico; (b) a norma interpretada não traz, em nenhum momento, a necessidade da presença de um médico em si, nem mesmo da equipe de saúde; (c) a lei  do ato médico (lei 12.842/13) também não contém a previsão de que a identificação da distocia é exclusiva do médico; percebendo a perturbação para o bom andamento do parto (com distocia), compete à enfermeira obstétrica encaminhar o paciente ao médico (art. 11, parágrafo único, alínea b, da lei 7.498/86), e só então o médico terá a competência exclusiva para, se for o caso, determinar a doença que acomete a paciente; d) se a enfermeira obstétrica necessitasse da presença de um médico para fazer o parto normal sem distocia, não faria sentido a disposição legal que determina à enfermeira tomar providências até a chegada do médico; e) a portaria 353/17, do Ministério da Saúde, que aprovou as diretrizes nacionais de assistência ao parto normal no Brasil, expressamente previu que “a assistência ao parto e nascimento de baixo risco que se mantenha dentro dos limites da normalidade pode ser realizada tanto por médico obstetra quanto por enfermeira obstétrica e obstetriz”.6

Não parece razoável, como observado na decisão de primeira instância, que o CREMERJ monopolize a realização do parto sem distocia em favor apenas dos profissionais médicos. De igual modo, não se mostra legítimo o pleito da autarquia de se condicionar a atividade da(o) enfermeira(o) obstétrica(o) à presença do médico, quando a lei assim não o faz, ainda que busque fazê-lo através da mão do Judiciário, especialmente quando atingidos seriam os direitos de terceiras, gestantes e parturientes.

Efetivamente não se mostra legítimo condicionar a atividade da(o) enfermeira(o) obstétrica(o) à presença do médico, quando a lei assim não o faz, nem poderia o Judiciário, por vias obliquas, legislar em contrário. Estabelecer tal condicionamento, além de restringir a atividade da(o) enfermeira(o), violaria de sobremaneira o exercício do direito de escolha da gestante e parturiente.

Cabe sublinhar que as investidas do CREMERJ em face da atuação da enfermagem obstétrica e, por conseguinte, do direito de escolha da gestante pela via do parto são anteriores à aludida ação civil pública. Em 2012, a resolução 265 proibiu a participação de médicos em partos domiciliares. Igualmente nesse sentido, foi editada a resolução 266/12, que vedava a participação de pessoas não habilitadas e/ou profissionais não reconhecidas na área da saúde durante e após a realização do parto, em ambiente hospitalar, tais como doulas, obstetrizes e parteiras.

As citadas resoluções foram consideradas ilegais em decisão irrecorrível do TRF da 2ª região. Em sede de julgamento de embargos infringentes, registrou o desembargador Guilherme Calmon Nogueira da Gama em seu voto: “Não se afigura razoável admitir que o CREMERJ inove e limite direito e garantias fundamentais, criando, por meio de resoluções, vedações e restrições não contempladas pelas normas constitucionais e infraconstitucionais vigentes”.7

Posteriormente, o CREMERJ editou a resolução 348/23, que igualmente dispõe sobre a proibição da participação do médico em partos domiciliares planejados. O ato normativo está suspenso por decisão judicial por força de ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal8. Como se vê, o panorama de reiteradas tentativas paternalistas e interventivas apenas descortina a violação à autonomia das gestantes e vilipendia o direito ao próprio corpo de mulheres grávidas sob o argumento da autonomia dos médicos9.

Além disso, a edição da Resolução após a decisão imutável em relação às anteriores ofende a coisa julgada material e apenas reforça a cruzada da autarquia contra a liberdade de escolha e dignidade das mulheres grávidas e parturientes.

A mencionada decisão do STJ, portanto, tem grande alcance social, na medida em que resgata e assegura o direito das mulheres gestantes e parturientes à escolha do parto normal e das enfermeiras obstétricas ao exercício autônomo da profissão que escolheram, para qual se credenciaram e à qual se dedicam com reconhecido desvelo.

________

1 V., em especial, HOOKS, Bell. Teoria feminista: da margem ao centro. Trad. de Rainer Patriota. São Paulo: Perspectiva, 2019.

2 Seja permitido remeter a BARBOZA, Heloisa Helena; ALMEIDA JUNIOR, Vitor de Azevedo. (Des)Igualdade de gênero: restrições à autonomia da mulher. Pensar - Revista de Ciências Jurídicas, v. 22, p. 240-271, 2017.

3 Vide, por exemplo, a lei 14.443, de 2 de setembro de 2022, que alterou a lei 9.263, de 12 de janeiro de 1996, para determinar prazo para oferecimento de métodos e técnicas contraceptivas e disciplinar condições para esterilização no âmbito do planejamento familiar.

4 A Portaria 11, de 7 de janeiro de 2015, redefiniu as diretrizes para implantação e habilitação de Centro de Parto Normal (CPN), no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), para o atendimento à mulher e ao recém-nascido no momento do parto e do nascimento, em conformidade com o Componente PARTO E NASCIMENTO da Rede Cegonha, e dispõe sobre os respectivos incentivos financeiros de investimento, custeio e custeio mensal. De acordo com o Ministério da Saúde: “Os Centros de Parto Normal - CPN são unidades de saúde destinadas à assistência ao parto de risco habitual, fora de estabelecimento hospitalar, que prestam assistência ao trabalho de parto, parto, puerpério e cuidados com o recém-nascido. São projetados para oferecer um ambiente acolhedor e assistência humanizada às gestantes que desejam o parto normal”. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/novo-pac-saude/centros-de-parto-normal. Acesso em 22 ago. 2024.

5 Cf. WHO recommendations: intrapartum care for a positive childbirth experience. Geneva: World Health Organization, 2018.

6 Em relação à discussão a partir do veto do art. 10 da lei 7.498/86, concluiu a c. Corte: “Em outras palavras, se, à época do veto do art. 10 da lei 7.498/1986, era ‘discutível’ a autonomia dos serviços e da assistência de enfermagem sem supervisão médica, essa discussão parece ter evoluído para o sentido contrário, ao menos no que concerne à atividade da enfermeira obstétrica em sua atuação no parto normal de baixo risco”. STJ, REsp. 2.099.736/RJ, 1ª turma, Rel. Min. Gurgel de Faria, julg. 20 ago. 2024, publ. 26 ago. 2024.

7 TRF 2ª região, Embargos Infringentes 0041307-42.2012.4.02.5101, Rel. Des. Sergio Schwaitzer, julg. 04 nov. 2020, publ. 09 nov. 2020.

8 A decisão que deferiu a liminar para suspender os efeitos da citada Resolução destacou os seguintes pontos: “Sob uma ótica constitucional, na qual se valoriza o livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer, não pode o CREMERJ impedir que os médicos exerçam seu ofício, com base no art. 5º, XIII, da CF. Além disso, a proibição de médicos em partos domiciliares poderá afetar negativamente o direito fundamental à saúde, uma vez que, diante da carência de hospitais, os procedimentos domiciliares são frequentemente preenchidos, nos quais é imprescindível que o profissional de medicina esteja presente”. Justiça Federal, Seção Judiciária do Rio de Janeiro, 7ª Vara Federal do Rio de Janeiro, Ação Civil Pública 5106390-31.2023.4.02.5101/RJ, Juiz Luiz Norton Baptista de Mattos, julg. 08 nov. 2023.

9 Tal argumento é encontrado no Processo Parecer Consulta CREMERJ 06/2021 e Parecer CREMERJ 11/2021, que tratam do Direito da gestante à escolha da via de parto, e restou ementado da seguinte forma: “Não há lei específica sobre o direito da gestante à escolha da via do parto. Observância conjunta da indicação médica e da preferência da gestante, após informada. Respeito à escolha da gestante, desde que não ofereça risco ao binômio materno-fetal. Elaboração de termo de consentimento livre e esclarecido, salvo em caso de risco iminente de morte. Garantia da autonomia do médico, ressalvado o dever de referenciar a outro profissional em caso de discordância e de agir nos casos de urgência, emergência ou risco de morte”. Disponível aqui. Acesso em 28 ago. 2024. Sobre o tema, cf. ALBUQUERQUE, Andressa Souza de. Autonomia existencial e escolha da via de nascimento: direitos, limites e parâmetros para uma decisão informada. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2023.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Colunistas

Flávia Alessandra Naves Silva Mestre em Direito Civil pela PUC/SP. Diretora de Diversidade de As Civilistas. Vice-coordenadora da Comissão Nacional de Pesquisas do IBDFAM - Núcleo Sul/Sudeste. Advogada. Professora em cursos de graduação e pós-graduação.

Joyceane Bezerra de Menezes Doutora em Direito pela UFPE. Professora Titular da Unifor e da UFC. Presidente da Associação As Civilistas.

Maria Celina Bodin de Moraes Professora Titular (aposentada) de Direito Civil da PUC-Rio e da UERJ. Editora da Revista eletrônica civilistica.com. Civilista emérita na Associação As Civilistas.

Maria Cristina De Cicco Professora da Università degli Studi di Camerino (Itália). Doutora em Direito pela Università di Camerino. 2ª Vice-presidente e Civilista emérita da Associação As Civilistas.

Silvia Felipe Marzagão Mestre em Direito pela PUC/SP. Presidente da Comissão Especial da Advocacia de Família e Sucessões e Ouvidora da Mulher Advogada da OAB/SP. 1ª Vice-Presidente da Associação As Civilistas.

Thaís Sêco Professora Adjunta do Departamento de Direito da Universidade Federal de Lavras (UFLA). Doutora em Direito pela UFMG. Mestre em Direito Civil pela UERJ. Conselheira Executiva da Associação As Civilistas.