Migalhas das Civilistas

Planejamento: a palavra da vez?

O texto trata sobre a importância do planejamento em duas áreas específicas: o planejamento do envelhecimento e o planejamento patrimonial e sucessório.

2/9/2024

A pandemia nos mostrou que alguns temas precisam ser enfrentados no presente, não obstante a delicadeza com que precisam ser tratados e as barreiras culturais cujo enfrentamento eles pressupõem.

Planejar é organizar um roteiro, programar, arquitetar formas de realizar um objetivo. Há inúmeros institutos jurídicos que traduzem esse ato de planejar. A abordagem contemporânea convida a organizá-los de forma coordenada para o alcance do objetivo do/a planejador/a.

Esse texto abordará dois tipos de planejamento: o planejamento do envelhecimento e o planejamento patrimonial e sucessório. Em ambos os casos, a questão central é a assunção do protagonismo na autonomia sobre a própria vida, além de zelar por aqueles que lhe são importantes.

A primeira modalidade de planejamento é o do envelhecimento. No Brasil, o número de idosos cresceu quase 60% nos últimos 12 anos. Em 2023, eles representavam 15,6% da população do país. O crescimento desse segmento vem ocorrendo de forma acelerada: enquanto a população do país aumentou em 6,43%, os idosos cresceram 57% em relação a 2010.1 A expectativa de vida em 2022, era de 75,5 anos,2 e em 2023, 76,4 anos.3

Esse aumento expressivo dos idosos implica uma série de fatores, inclusive a necessidade de uma programação da velhice, tanto em termos de saúde, quanto de finanças, da vida social, etc., enquanto se tem autonomia suficiente para traçar estratégias e manifestar livremente a vontade. É nesse sentido que o planejamento do envelhecimento também tem ganhado espaço nos escritórios de advocacia, na medida em que as pessoas querem ser independentes o quanto possível, além de desejar o respeito aos seus desejos, conforme prevê o Estatuto da Pessoa Idosa.4

Sabe-se que o envelhecer pode implicar o desenvolvimento de vulnerabilidades, e de vínculos de dependência de diversas ordens que podem influenciar no querer e no entender. Por essa razão, um olhar global sobre o futuro – além de um processo de autoconhecimento – pode ser interessante para se definir quais são as estratégias mais interessantes para uma velhice saudável e digna, de acordo com os parâmetros próprios de vida boa. A autonomia privada exerce papel de grande relevância para a construção da própria esfera pessoal, para que cada um possa estabelecer os parâmetros dentro dos quais pretende viver no presente e no futuro, dentro dos valores que elegeu como mais coerentes para a própria vida. Mesmo porque suas decisões devem espelhar as prioridades e as concepções do declarante.

A velhice pode e deve ser um tempo bom, com colheita de uma vida de experiências, novas possibilidades, convivência intergeracional, viagens e aprendizado. Mas também pode ser um tempo de perda de renda, dependências, fragilidades e solidão. Recente relatório da FAPESP informou que ao menos 1,76 milhão de brasileiros com mais de 60 anos vivem com alguma forma de demência que gera a perda progressiva das células cerebrais e, a partir daí, a incapacitação e a morte. A previsão é de que esse número cresça na medida em que a população envelhece.5 É claro que não é possível ter controle sobre tudo. Mas eleger instrumentos que facultam a melhor gestão possível da vida é uma busca que tem crescido cada vez mais, existindo algumas possibilidades interessantes para esse propósito.

Dispor sobre administração futura dos próprios bens para que esses tenham longevidade e possam para fazer frente aos custos do envelhecimento tem um grande valor. Se a pessoa continuar lúcida e com possibilidades de expressar sua vontade, ela poderá continuar fazendo escolhas cotidianas a respeito de seus bens e de sua saúde. Mas, e se for diferente? E se, por alguma razão, ela perder essa condição?

Daí a importância da autocuratela.6 Trata-se de um instrumento por meio do qual a pessoa pode fazer escolhas para expressar validamente a sua autonomia para momento futuro, se for necessário submetê-la ao procedimento de curatela. Conquanto se trate de negócio jurídico atípico, recomenda-se que seja feita por escritura pública para maior segurança da produção de efeitos da expressão de sua vontade. É um documento que só tem eficácia a partir da decisão judicial que determina a curatela de seu autor, ainda que de forma provisória – razão pela qual ele, necessariamente, deve ser parte integrante do referido processo.

Seu conteúdo pode ter enorme gama de possibilidades: a) escolher o curador e indicar expressamente quem não deve exercer o munus, b) dar diretrizes para administração do patrimônio, que vão desde a forma de gestão, estilo de administração, consultores específicos cujas sugestões deverão ser respeitadas, c) recusar a nomeação de pro-curador, d) determinar a remuneração do curador, e) em relação à prestação de contas, entende-se possível dispensar apresentação anual de balanço (a despeito do art. 1.756 do Código Civil), dispensar a comprovação de despesas rotineiras da prestação de contas, podendo prever uma margem de valor mensal destinado a tais despesas (como a previsão do caput do art. 1.753 do CC), exigir a prestação de contas mesmo quando o curador indicado seja o cônjuge casado sob o regime da comunhão universal, dentre outras possibilidades.7

Outra ferramenta é o testamento vital, documento por meio do qual a pessoa decide os tratamentos e não tratamentos aos quais deseja se submeter se não mais tiver condições de expressar seu consentimento.8 Trata-se de importante manifestação de vontade que direciona o médico e a família em relação aos desejos do paciente incapacitado de se manifestar, a partir dos seus valores e da sua história biográfica, a fim de que tenha um fim de vida e uma morte com dignidade. A determinação do como morrer é algo da maior intimidade e, por isso, estando a pessoa devidamente informada, é algo que deve estar no seu espectro de decisão.

Luciana Dadalto propõe que todos os que têm discernimento possam fazer seu testamento vital (inclusive menores de idade com autorização judicial), o qual deve poder assumir a forma pública ou privada – e ser sempre anexado ao prontuário médico do paciente. Por ser revogável por natureza, não deve ter prazo de validade. É um documento que só passa a produzir efeitos quando o paciente não tiver mais condições de se manifestar.9-10

A segunda modalidade de planejamento é o patrimonial e sucessório. Quando o planejamento se volta à sucessão, tem como propósito pensar sobre a transmissão dos bens por direito hereditário – tradicionalmente, portanto, após a morte do titular - embora, em alguns casos, possa ser antecipada em vida ou ao menos com a tomada de providências preparatórias para a sucessão.

Vencer o obstáculo de se deparar com a realidade de que todos são finitos requer coragem. Por outro lado, as mudanças nas estruturas familiares, as preocupações com os vulneráveis, as transformações nos bens e na riqueza, as mudanças legislativas, as questões tributárias tornam o debate a pauta do dia.

Têm crescido os anseios da população por maior liberdade no âmbito sucessório. O status atual em que o cônjuge casado pelo regime da separação total de bens concorre à herança com os descendentes (art. 1.829, I, CC) é causa de incômodo em quem busca um planejamento que envolva a escolha do regime de bens. Contraditoriamente, no entanto, os brasileiros não são acostumados a fazer testamentos. Os números do Colégio Notarial do Brasil apontam um crescimento dos testamentos na pandemia (2021) com uma redução posterior: em 2020 foram 31.977 testamentos públicos; em 2021, 38.264; em 2022, 26.259 e até novembro de 2023, 32.835.11 Ainda assim, a quantidade de pessoas que faz testamento público é muito pequena.

Percebe-se, todavia, que a sucessão sem planejamento satisfaz cada vez menos, na medida em que o ordenamento jurídico sucessório foi talhado para uma realidade bem diferente da atual. E, por esse motivo, a aplicação da lei nem sempre atenderá às necessidades de quem planeja.

Fazer um bom planejamento sucessório não é tarefa simples, pois não há um modelo pronto. É preciso personalizar o procedimento, a partir dos anseios do(a) titular do patrimônio: quais as razões para se buscar o planejamento? Quais as preocupações? Evitar litígios futuros, proteger algum herdeiro vulnerável, economia tributária, evitar condomínios são alguns exemplos de razões que levam as pessoas a planejar. Ter clareza na motivação é essencial, pois ela será o fio condutor de todas as etapas do procedimento e orientará as decisões quando não for possível atender a todas as expectativas.

Além disso, o planejamento pode potencializar a utilidade do patrimônio pelos futuros herdeiros, promovendo uma distribuição mais coerente com as necessidades de cada um, em observância de sua eventual vulnerabilidade, a fim de que a atribuição dos bens possa auxiliar no suprimento dessas fragilidades e que atue de modo a proteger o herdeiro e a promover sua dignidade, no âmbito material, quando aquele responsável por suprir seu sustento tiver falecido. Também é relevante atentar em a eventuais vínculos existentes entre potenciais herdeiros com algum bem do acervo patrimonial do titular do patrimônio e que, sob o viés quantitativo, caberia no quinhão de um dos herdeiros – é a filha, por exemplo, que trabalha na empresa do pai, sendo interessante para a continuidade do negócio e para a preservação do trabalho da filha que ela fique com as quotas da empresa, ou o filho que reside em um dos imóveis do planejador, proporcionando-lhe segurança a continuidade da moradia. Outro pilar a ser considerado são os custos com manutenção dos bens, liquidez, potencial de exploração econômica e as condições financeiras dos herdeiros, que podem demandar necessidades específicas.12

Os instrumentos de planejamento são inúmeros e não se restringem ao direito sucessório, que tem ferramentas clássicas, como testamento e codicilo. Há também aqueles de natureza contratual (doação, compra e venda, pacto antenupcial e de união estável etc.), real (usufruto e direito real de habitação), societária (holding, pactos parassociais etc.), financeira (previdência privada, seguro de vida), por exemplo.

A escolha da(s) melhor(es) ferramenta(s) será definida a partir da combinação motivação do planejador e escolha do(s) instrumento(s) adequado(s), que atenda(m) às prioridades possíveis dentro dos limites legais. É importante observar que ele não se presta a blindar o patrimônio e provocar fraudes, mas é meio de realização da vontade sucessória daquele que construiu seus bens em sua vida, administrou-os e pretende que eles sirvam à sua família ou àqueles que lhe são caros, nos espaços de autonomia permitidos pela lei, também cuidando da longevidade e crescimento dos bens.

Diante dessas breves reflexões, pergunta-se: planejamento é a palavra da vez? Infelizmente, não, pois parece que as barreiras culturais e os tabus morais acabam dificultando “conversas difíceis”. Mas, sem dúvida, planejamento deve se tornar cada vez mais presente no dia a dia, pois é só lançando mão desses instrumentos que será possível a assunção do verdadeiro protagonismo da própria vida e dar segurança no sentido de que os bens tenham o melhor aproveitamento possível na transmissão sucessória, independentemente do momento em que ela aconteça.

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4 Destaca-se: Art. 10. É obrigação do Estado e da sociedade assegurar à pessoa idosa a liberdade, o respeito e a dignidade, como pessoa humana e sujeito de direitos civis, políticos, individuais e sociais, garantidos na Constituição e nas leis”. § 1o O direito à liberdade compreende, entre outros, os seguintes aspectos: (...) II – opinião e expressão; III – crença e culto religioso; (...)

§ 2o O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, de valores, idéias e crenças, dos espaços e dos objetos pessoais.” 

5 “Os dados brasileiros indicam que 3% dos indivíduos com idade entre 65 e 69 anos desenvolvem demência. Essa frequência sobe para 9% na faixa dos 75 aos 79, 21% na dos 85 aos 89 e chega a 43% depois dos 90 anos.” Disponível em Ao menos 1,76 milhão de pessoas têm alguma forma de demência no Brasil : Revista Pesquisa Fapesp . Acesso em 28/8/2024.

6 O termo autocuratela é da autoria da Profa. Thais Câmara Maia Fernandes Coelho, que em seu mestrado desenvolveu dissertação a respeito do tema “Autocuratela patrimonial”. (In COELHO, Thais Câmara Maia Fernandes. Autocuratela patrimonial: Mandato permanente para o caso de incapacidade superveniente. Dissertação de mestrado. PUC Minas. 2012).

7 O conteúdo da autocuratela já foi objeto de reflexão mais profunda em outra oportunidade: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RETTORE, Anna Cristina de Carvalho; ALMEIDA, Beatriz. Reflexões sobre a autocuratela na perspectiva dos planos do negócio jurídico. In: MENEZES, Joyceane Bezerra de (org.). Direito das pessoas com deficiência psíquica e intelectual nas relações privadas: Convenção sobre os direitos da pessoa com deficiência e Lei Brasileira de Inclusão. Rio de Janeiro: Processo, 2016, pp. 319-361.

8 Ver, por todos, DADALTO, Luciana. Testamento vital. 6ª ed. Indaiatuba: Foco, 2022.

9 DADALTO, Luciana. Testamento vital. 6ª ed. Indaiatuba: Foco, 2022, p. 93-98.

10 Há outras modalidades de planejamento do envelhecimento, tal como a Tomada de Decisão Apoiada, inaugurada pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência que, em suma, significa que a pessoa com deficiência, com fragilidade reduzida, propõe um plano de apoio juntamente com 2 pessoas, para fins específicos, mediante controle judicial (art. 1.783-A do Código Civil).

11 Trata-se de dados da 5ª edição do Relatório Cartório em Números. Disponível em Cartorios-em-Numeros-5a-Edicao-2023-Especial-Desjudicializacao.pdf (anoreg.org.br) . Acesso em 11.08.2024.

12 MIRANDA, Alexandre; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Qualificação e quantificação da legítima: critérios para partilha de bens. In: TEIXEIRA, Daniele Chaves. Arquitetura do planejamento sucessório. Tomo II. Belo Horizonte: Fórum, 2021, p. 27-39.

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Colunistas

Flávia Alessandra Naves Silva Mestre em Direito Civil pela PUC/SP. Diretora de Diversidade de As Civilistas. Vice-coordenadora da Comissão Nacional de Pesquisas do IBDFAM - Núcleo Sul/Sudeste. Advogada. Professora em cursos de graduação e pós-graduação.

Joyceane Bezerra de Menezes Doutora em Direito pela UFPE. Professora Titular da Unifor e da UFC. Presidente da Associação As Civilistas.

Maria Celina Bodin de Moraes Professora Titular (aposentada) de Direito Civil da PUC-Rio e da UERJ. Editora da Revista eletrônica civilistica.com. Civilista emérita na Associação As Civilistas.

Maria Cristina De Cicco Professora da Università degli Studi di Camerino (Itália). Doutora em Direito pela Università di Camerino. 2ª Vice-presidente e Civilista emérita da Associação As Civilistas.

Silvia Felipe Marzagão Mestre em Direito pela PUC/SP. Presidente da Comissão Especial da Advocacia de Família e Sucessões e Ouvidora da Mulher Advogada da OAB/SP. 1ª Vice-Presidente da Associação As Civilistas.

Thaís Sêco Professora Adjunta do Departamento de Direito da Universidade Federal de Lavras (UFLA). Doutora em Direito pela UFMG. Mestre em Direito Civil pela UERJ. Conselheira Executiva da Associação As Civilistas.