Migalhas das Civilistas

A inserção da socioafetividade na proposta de alteração do Código Civil

O Código Civil define parentesco como natural (biológico) ou civil (socioafetivo, como adoção). A socioafetividade, embora não explicitada na lei, é reconhecida em decisões judiciais, influenciando relações familiares e casos de filiação no Brasil.

22/7/2024

O Código Civil vigente, no art. 1.593, estabelece que o parentesco pode ser natural ou civil, conforme decorra da consanguinidade ou de outra origem. Assim, natural é o parentesco biológico, e o de outra origem o parentesco civil, qual seja qualquer forma de desdobramento da socioafetividade, tal como a adoção.

Analisando tal dispositivo, percebe-se que os laços de parentesco são, pela lei, excludentes – ou são calcados em vínculos biológicos ou decorrem de vínculos socioafetivos – embora a expressão socioafetividade não esteja presente na codificação atual.

Todavia, as relações familiares tiveram mudanças significativas e profundas, de tal modo que hoje, em decorrência de uma busca pela realização plena das pessoas e suas recomposições familiares, a socioafetividade faz-se presente de forma marcante nos grupos familiares.

Embora a codificação atual não traga de forma expressa a socioafetividade, ela permeia as relações familiares e, como consequência, aparece como fator, por vezes determinante, nas relações de parentesco.

Em uma busca livre no site do STJ, foram encontrados 23 julgados com o termo ‘socioafetividade’. O mais antigo (REsp 709.608) foi julgado no ano de 2004 e mantém a paternidade socioafetiva de pai registral (já falecido) que reconheceu uma filha como sua – mesmo não sendo o pai biológico –, de modo espontâneo. Nos demais casos, todos versam sobre a questão de filiação, reconhecimento de paternidade, anulação de registro, adoção, multiparentalidade, reconhecimento de maternidade e fraternidade socioafetiva. Com o termo ‘afetividade’ são 85 julgados, sendo que o primeiro deles foi julgado em 1999.

Já no STF, a busca livre do termo ‘socioafetividade’ traz apenas um julgado que impede a expulsão de estrangeiro em decorrência deste ter adotado um filho, visando a proteção integral da criança e do adolescente (RHC 123.891). Com a busca pelo termo ‘afetividade’, outros três casos foram encontrados.

O que se percebe é que, embora não prevista de forma expressa no Código Civil atual, a socioafetividade é reconhecida na via jurisprudencial e, portanto, traz consequências jurídicas.

Uma vez inserida a filiação socioafetiva no registro, teremos consequências extrapatrimoniais, como nome, filiação, parentesco, impedimento para casamento, guarda e convivência familiar; e patrimoniais, como alimentos e herança.

Em decorrência do art. 1.593, o parentesco que constava no registro do filho poderia ser ou o biológico ou o socioafetivo. Quando o exame de DNA surgiu, as ações de investigação de paternidade mantinham o genitor biológico e retiravam o pai socioafetivo registral. Com o passar do tempo, em muitos dos casos, não se fazia tal substituição e mantinha-se o pai socioafetivo (registral). Até que, por meio do RE 898.060, permitiu-se o reconhecimento jurídico da multiparentalidade.

O que se tinha até então era a monoparentalidade (apenas um genitor no registro) ou a biparentalidade (dois genitores). Com o reconhecimento da multiparentalidade, o STF entendeu que “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem genética, com todas as suas consequências patrimoniais e extrapatrimonias.

Permitiu-se, com isso, a convivência registral de genitores biológicos e socioafetivos concomitantemente, viabilizando uma releitura do art. 1.593, no sentido de que o parentesco possa ser natural ou civil quando resultar da multiparentalidade, prestigiando, assim, o princípio do melhor interesse do filho (em detrimento da hierarquia entre as formas de filiação), bem como o princípio da paternidade responsável.

A ideia do reconhecimento da filiação socioafetiva levou alguns Estados a editarem provimentos permitindo o reconhecimento espontâneo de filiação socioafetiva em cartório – como Pernambuco, Santa Catarina, Mato Grosso e outros. Tempos depois, o CNJ editou um provimento com validade para todo território nacional, permitindo o reconhecimento espontâneo de paternidade ou maternidade socioafetiva de forma extrajudicial.

Hoje, o que disciplina a temática do reconhecimento extrajudicial de filiação socioafetiva é o provimento 83/19 do CNJ. Tal reconhecimento é permitido desde que o filho tenha mais de 12 anos (caso contrário, deve-se seguir a via judicial) e deve o registrador apurar a existência da afetividade e a inclusão de mais um genitor (que acarretará a multiparentalidade. Além disso, ela só pode ser reconhecida ou do lado paterno ou do materno (denominada multiparentalidade unilateral), proibindo-se, deste modo, a inclusão, por exemplo, de um pai e de uma mãe na via extrajudicial (multiparentalidade bilateral).

A proposta de alteração do Código Civil traz de modo expresso as consequências da socioafetividade, seja em um capítulo em específico, seja de modo esparso, o que se revela extremamente interessante e se coaduna com as tendências que já vinham sendo observadas à luz das supracitadas decisões.

O art. 9º da proposta, ao tratar dos atos que serão registrados ou averbados no cartório de registro civil das pessoas naturais, disciplina em seu inciso VIII sobre a sentença que reconhecer a filiação socioafetiva ou a adoção de crianças e de adolescentes e a escritura pública ou a declaração direta em cartório que reconhecer a filiação socioafetiva ou a adoção. Ou seja, aqui fala-se tanto do reconhecimento judicial quanto extrajudicial da socioafetividade. A extrajudicialidade aparece novamente no inciso subsequente.

Contudo, no parágrafo 2º daquele dispositivo, afirma-se que o reconhecimento de filiação socioafetiva de pessoa com menos de 18 anos será por sentença judicial. Enquanto o provimento do CNJ permite o reconhecimento socioafetivo em cartório a partir dos 12 anos de idade, o Código – caso seja efetivamente alterado – aumentará o limite para 18 anos de idade. Tal mudança pode, salvo melhor juízo, aumentar o número de demandas e eventualmente desestimular o reconhecimento espontâneo. Tal fato é reiterado no art. 1.617 – C, ao tratar da multiparentalidade, mencionando a necessidade de utilização da via judicial para crianças, adolescentes e incapazes. O reconhecimento extrajudicial só poderá ser feito quando houver consenso entre as partes e a pessoa a ser reconhecida for maior de 18 anos. Revela-se importante perquirir a intenção da respeitável Comissão, que talvez possa ter se pautado em evitar um eventual reconhecimento "imaturo/não suficientemente ponderado e livremente decidido", que pode ser derivado de uma relação temporária/instável.

Outro ponto referente à socioafetividade diz respeito à alteração do nome civil, que não induz, por si só, a socioafetividade (art. 10, p. 2º). De fato, a alteração de seu nome civil não implica a presunção da socioafetividade.

A afirmação constante do início deste texto, no sentido de que o parentesco civil é uma forma de socioafetividade, adoção ou reprodução assistida homóloga, agora virá regulamentada no art. 1.512 – A, caso a mudança seja aprovada.

A socioafetividade, felizmente, ganha um capítulo específico, reconhecendo-se expressamente a multiparentalidade no art. 1617-A, com seus desdobramentos.

O art. 1629-U, quando dispõe sobre a possibilidade de ação negatória de parentalidade em situações de reprodução assistida, esclarece que a relação parental subsistirá se ficar comprovada a socioafetividade.

No que se refere aos efeitos patrimoniais, a socioafetividade faz-se presente nos alimentos (art. 1694 e seguintes) – a obrigação alimentar é devida independente da natureza do parentesco – ressaltando-se a não hierarquização das formas de parentesco. E, por fim, o art. 1.799, em seu parágrafo 3º., menciona a possibilidade de recebimento de herança se o herdeiro nascer com vida, não importando a natureza do parentesco.

A inclusão expressa da socioafetividade na proposta de alteração do Código Civil corrobora o que já está consolidado na jurisprudência nacional. Vê-se, portanto, de forma positiva, a inserção na parte dos alimentos, da herança e da multiparentalidade. A especificidade do marco temporal e da exigência de capacidade integral para o reconhecimento extrajudicial da socioafetividade merece um olhar mais atento. Atualmente, o provimento 83/19 permite que se possa reconhecer a socioafetividade em cartório se o filho tiver 12 anos ou mais, o que será significativamente modificado com a aprovação da proposta em comento.

______________

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível aqui.

BRASIL. Lei n. 8069 de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente). Disponível aqui.

BRASIL. Lei n. 10.406 de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). Disponível aqui.

PAIANO, Daniela Braga. A família atual e as espécies de filiação: da possibilidade jurídica a multiparentalidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017.

PAIANO, Daniela Braga. DA MULTIPARENTALIDADE JUDICIAL: ANÁLISE DOS VOTOS E DOS EFEITOS DO JULGAMENTO DO RE 898060. REVISTA DO DIREITO PÚBLICO (LONDRINA), v. 18, p. 10-29, 2023.

PAIANO, Daniela Braga. Aspectos controvertidos da multiparentalidade e espaços em construção. Civilistica.com - Revista Eletrônica de Direito Civil, v. 12, p. 1-14, 2023.

PAIANO, Daniela Braga; NABAS SCHIAVON, ISABELA. O princípio da afetividade como instrumento de reconhecimento da multiparentalidade. Revista da Faculdade de Direito da FMP, v. 18, p. 102-116, 2023.

STF. RHC 123891 AgR, Relator(a): ROSA WEBER, Primeira Turma, julgado em 23-02-2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-085 DIVULG 04-05-2021 PUBLIC 05-05-2021.

STJ. REsp n. 709.608/MS, relator Ministro João Otávio de Noronha, Quarta Turma, julgado em 5/11/2009, DJe de 23/11/2009.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Colunistas

Flávia Alessandra Naves Silva Mestre em Direito Civil pela PUC/SP. Diretora de Diversidade de As Civilistas. Vice-coordenadora da Comissão Nacional de Pesquisas do IBDFAM - Núcleo Sul/Sudeste. Advogada. Professora em cursos de graduação e pós-graduação.

Joyceane Bezerra de Menezes Doutora em Direito pela UFPE. Professora Titular da Unifor e da UFC. Presidente da Associação As Civilistas.

Maria Celina Bodin de Moraes Professora Titular (aposentada) de Direito Civil da PUC-Rio e da UERJ. Editora da Revista eletrônica civilistica.com. Civilista emérita na Associação As Civilistas.

Maria Cristina De Cicco Professora da Università degli Studi di Camerino (Itália). Doutora em Direito pela Università di Camerino. 2ª Vice-presidente e Civilista emérita da Associação As Civilistas.

Silvia Felipe Marzagão Mestre em Direito pela PUC/SP. Presidente da Comissão Especial da Advocacia de Família e Sucessões e Ouvidora da Mulher Advogada da OAB/SP. 1ª Vice-Presidente da Associação As Civilistas.

Thaís Sêco Professora Adjunta do Departamento de Direito da Universidade Federal de Lavras (UFLA). Doutora em Direito pela UFMG. Mestre em Direito Civil pela UERJ. Conselheira Executiva da Associação As Civilistas.