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Juros de mora e desproteção de pessoas em vulnerabilidade: Análise inicial da lei 14.905/24

A lei 14.905 de 1/7/24 modifica o cálculo dos juros de mora, agora vinculados à taxa Selic, exceto em casos específicos ou por convenção das partes.

15/7/2024

A publicação da lei 14.905 no Diário Oficial de 1/7/24 traz um novo capítulo aos debates sobre juros de mora no inadimplemento de obrigações. Cuida-se de tema em aberto desde a revogação do Código Civil de 1916 – que fixava a taxa de juros em 6% ao ano – pelo Código Civil de 2002 cuja redação originária previa que na falta de convenção ou lei, a taxa de juros seria aquela aplicada a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional.

Juros são “o preço pelo uso do capital, isto é, a expressão econômica da utilização do dinheiro e, por isso mesmo, são considerados frutos civis” e por essa razão possuem dupla finalidade: Remunerar o credor pela privação do capital próprio e pagar o risco do inadimplemento.

Essas duas funções dão origem a duas espécies de juros: Juros compensatórios, que se destinam a remunerar o capital disponibilizado pelo credor2; e juros moratórios (ou de mora), esses destinados a reduzir os riscos da mora e indenizar o credor caso sobrevenha inadimplemento.

Além dessa classificação, podemos também distinguir os juros em convencionais, quando arbitrados pelas partes da relação obrigacional ou legal, se fixados em lei.

Durante a vigência do Código Civil de 1916 a taxa de juros de mora, ou seja, os juros decorrentes do inadimplemento, estavam fixadas em 6% ao ano, calculados de forma simples. Com a vigência do Código Civil de 2022, passou-se a adotar a taxa de juros pagas à Fazenda Pública, o que levou a controvérsias doutrinárias e jurisprudenciais sobre qual seria exatamente essa taxa.

Inicialmente, o STJ oscilou entre a determinação de uso da SELIC3 e da aplicação do art. 161, § 1º, do CTN que fixava a taxa de juros em 1% ao mês.4 Diante das dificuldades de apuração da taxa de juros na SELIC, a qual é composta de juros e correção monetária, somada a aprovação do enunciado 205 na I Jornada de Direito Civil do CNJ, o STJ acabou adotando a tese da aplicação do art. 161, § 1º, do CTN, fixando os juros de mora em 1% ao mês ou 12% ao ano, no que foi seguido pelos demais órgãos do Poder Judiciário.

Não estão muito claros os motivos pelos quais a taxa de juros de mora retornou ao debate, mas em 1/7 foi publicada a lei 14.905 que altera o art. 406 do Código Civil de 2002 para determinar que “a taxa legal corresponderá à taxa referencial do Selic - Sistema Especial de Liquidação e de Custódia, deduzido o índice de atualização monetária de que trata o parágrafo único do art. 389 deste Código”, salvo se houver convenção entre as partes ou previsão legal diferente.

Existem consequências bastante importantes na alteração legislativa, especialmente algumas que irão prejudicar grupos específicos de pessoas, como, por exemplo, mulheres, crianças e trabalhadores em geral.

Para compreender o parágrafo anterior, algumas informações são importantes: De acordo com o relatório Justiça em Números produzido pelo CNJ6, em 30/4/24 estavam pendentes um total de 84.448.482 para julgamento. Desse total, a grande maioria são processos que têm o INSS como réu e ficam de fora da análise desse texto porque benefícios previdenciários e ações remuneratórias de servidores públicos têm regras próprias de cálculo de juros e atualização monetária, conforme a lei 9.494/97. Há também regras específicas de inadimplemento para processos tributários, que seguem o CTN7, contratos bancários, que se submetem às normas do BACEN, e para desapropriação.8 Ou seja, a taxa de juros do Código Civil é essencialmente utilizada em processos trabalhistas e processos entre litigantes privados, incluindo ações em face de instituições financeiras (mas o oposto não é verdadeiro, pois contratos bancários têm regras próprias, permitindo inclusive capitalização de juros, por exemplo).

Novamente recorrendo as estatísticas do CNJ, essa alteração tem potencial de atingir os 1.124.970 processos trabalhistas, 406.933 processos por dano material, 405.626 processos por negativação indevida, 369.771 processos por dano moral e 186.198 processos de alimentos pendentes de julgamento até 30/4/24, que são os principais assuntos processuais esperando julgamento em 2024.

Tendo esses números em atenção, reafirmamos: A alteração legislativa prejudica pessoas em situação de maior vulnerabilidade porque acarreta uma redução na taxa de juros. Isso acontece porque a SELIC é composta de juros mais correção monetária, de modo que só é possível conhecer a taxa de juros real depois de se efetuar o desconto da inflação, tanto que o novo § 1º do art. 406 do Código Civil exige esse abatimento a fim de evitar a dupla incidência de atualização monetária.

Em momentos de alta inflacionária sem aumento da taxa de juros, ocorre uma diminuição dos juros, na medida em que a parcela de atualização consome uma parcela maior da SELIC. Em baixa inflação e baixos juros, o mesmo fenômeno acontece. Só há benefício em relação ao modelo anterior consolidado nos Tribunais se a despeito da inflação, a taxa de juros se mantiver acima de 12%, o que não tem sido a regra desde 2004, quando havia juros altos e baixa inflação.9 Ou seja, a alteração legislativa diminuiu a taxa de juros aplicável aos processos privados sem mencionar que estava reduzindo; é efeito indireto.

A título exemplificativo, a taxa SELIC em junho de 2024 estava em 10,5% ao ano e o IPCA acumulado entre maio/2023 e maio/2024 estava em 4,16%, o que significa taxa anual de juros de 6,34%, quase a metade dos juros atuais.

A única possibilidade de escapar a redução dos juros é interpretar o art. 406 do Código Civil é entender que a SELIC deverá ser reduzida do valor mensal da taxa de juros. Nesse caso, estaríamos diante de possibilidade de aumento dos juros, uma vez que a taxa mensal de inflação costuma oscilar entre 1% e 2%. Essa interpretação é, contudo, complexa porque a SELIC é calculada de forma anualizada, o que exigiria que o IPCA seja abatido de forma igualmente anualizada.

Para além da redução indireta dos juros de mora, gostaríamos de chamar a atenção que a SELIC não é índice que se amolda à finalidade de indenização pelo capital ou pela mora, uma vez que o Banco Central define o índice como “taxa básica de juros da economia, que influencia outras taxas de juros do país, como taxas de empréstimos, financiamentos e aplicações financeiras. A definição da taxa Selic é o principal instrumento de política monetária utilizado pelo Banco Central (BC) para controlar a inflação”.

A SELIC tem funções de política monetária e de contenção da inflação, função essa que não está presente nos juros de mora decorrente do inadimplemento. Temos aqui uma incompatibilidade ontológica entre o índice e a razão de existência dos juros de mora, que deveriam ter feito o legislador se afastar da sua utilização.

Particularmente nos preocupa com mais intensidade a mudança em relação a processos de alimentos, cujos credores são, em regra, crianças e adolescentes, e ocasionalmente mulheres que não possuem renda própria ou foram vítimas de violência doméstica. Nesses casos, a taxa de juros como instrumento de coerção de cumprimento regular da obrigação e a redução dos juros implica na redução das garantias de sobrevivência dessas pessoas, valendo lembrar que crianças e adolescentes têm proteção especial por força da doutrina de proteção integral incorporada no art. 226 da Constituição da República.

Para além da desproteção de pessoas em situação de vulnerabilidade, essa alteração legislativa traz outros questionamentos sobre a sua efetividade, pois a taxa SELIC é divulgada em oito reuniões da diretoria do Banco Central ao longo de um ano, enquanto o IPCA é índice mensal. A lei não explicita se o cálculo da dívida terá que ser periodicamente adaptado a cada divulgação de um dos dois índices, pois pode haver mudanças, tampouco qual o período do IPCA que deverá ser considerado para fins do abatimento do § 1º do art. 406 do Código Civil.

Em síntese, é uma lei que tem potencial de prejudicar pessoas em vulnerabilidade e cria mais dificuldades em cálculos judiciais do que facilidades.

____________

1 TEPEDINO, Gustavo et alii. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 741, v. I.

2 Juros compensatórios não serão objeto de análise desse artigo inicial.

3 STJ, REsp n. 666.676/PR, relatora Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, julgado em 3/5/2005, DJ de 6/6/2005, p. 281.

4 STJ, REsp n. 464.605/SP, relatora Ministra Laurita Vaz, relator para acórdão Ministro Franciulli Netto, Segunda Turma, julgado em 25/11/2003, DJ de 25/2/2004, p. 145.

5 “A taxa de juros moratórios a que se refere o art. 406 é a do art. 161, § 1º, do Código Tributário Nacional, ou seja, um por cento ao mês.”

6 Disponível aqui. Acesso em 03.07.2024.

7 Art. 161 do Código Tributário Nacional

8 STJ, Tema 1004.

9 O histórico da SELIC, disponível aqui. Para o IPCA deve-se consultar o IBGE. Disponível aqui.

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Colunistas

Flávia Alessandra Naves Silva Mestre em Direito Civil pela PUC/SP. Diretora de Diversidade de As Civilistas. Vice-coordenadora da Comissão Nacional de Pesquisas do IBDFAM - Núcleo Sul/Sudeste. Advogada. Professora em cursos de graduação e pós-graduação.

Joyceane Bezerra de Menezes Doutora em Direito pela UFPE. Professora Titular da Unifor e da UFC. Presidente da Associação As Civilistas.

Maria Celina Bodin de Moraes Professora Titular (aposentada) de Direito Civil da PUC-Rio e da UERJ. Editora da Revista eletrônica civilistica.com. Civilista emérita na Associação As Civilistas.

Maria Cristina De Cicco Professora da Università degli Studi di Camerino (Itália). Doutora em Direito pela Università di Camerino. 2ª Vice-presidente e Civilista emérita da Associação As Civilistas.

Silvia Felipe Marzagão Mestre em Direito pela PUC/SP. Presidente da Comissão Especial da Advocacia de Família e Sucessões e Ouvidora da Mulher Advogada da OAB/SP. 1ª Vice-Presidente da Associação As Civilistas.

Thaís Sêco Professora Adjunta do Departamento de Direito da Universidade Federal de Lavras (UFLA). Doutora em Direito pela UFMG. Mestre em Direito Civil pela UERJ. Conselheira Executiva da Associação As Civilistas.