Migalhas das Civilistas

A sanção de nulidade da cláusula violadora da função social do contrato no projeto de Código Civil: Uma redação a ser revista

As leis não são atos de poder, sim de sabedoria, de justiça e de razão.

10/6/2024

Segundo o disposto no § 2º do art. 421 do projeto de Código Civil, a cláusula contratual que violar a função social do contrato é nula de pleno direito.

Temos aqui dois temas de grande relevância, talvez passados desapercebidos pela douta Comissão de Reforma do Código Civil de 2002, demandando, por isso, uma crítica construtiva por parte da doutrina, sob pena de ser aprovado um parágrafo, cujo teor pode conduzir, de um lado, a um impasse e, de outro, à referência a um termo de significado todavia incerto entre nós, qual seja, o sentido da locução função social do contrato.

Vamos iniciar nossas ponderações pela sanção de nulidade da cláusula violadora da função social do contrato. Sendo o contrato uma espécie de negócio jurídico, faremos, inicialmente, algumas breves digressões em torno dessa peculiar figura.1

A noção de negócio jurídico está intimamente relacionada a um exaustivo controle, exercido pela Ordem Jurídica, no referente à capacidade dos agentes, à licitude de seu objeto e à observância da forma, quando ela for da substância do ato.

Desta sorte, o negócio jurídico, diversamente de qualquer outro tipo de fato jurídico, deve passar, obrigatoriamente, por três planos, o da existência, o da validade e o da eficácia. Pertencem ao plano da existência (ou dos pressupostos) do negócio, o agente, uma declaração de vontade e as circunstâncias negociais. A doutrina refere-se aos elementos de existência do negócio jurídico, utilizando o vocábulo elemento em sua acepção aristotélica, ou seja, “aquilo com que se faz alguma coisa”. De acordo com essa perspectiva, o negócio jurídico é, pois, constituído, feito, por esses elementos.

O segundo plano a ser ultrapassado pelo negócio jurídico é o da validade, isto é, o plano das adjetivações, dos requisitos, aquilo que a ordem jurídica requer, nos elementos da existência, para que o negócio jurídico seja válido. Em relação ao agente, requer-se seja capaz e legitimado para o negócio, que sua declaração seja livre, sem vícios; em relação ao objeto, que seja lícito e possível, física e juridicamente, em relação à forma, que seja observada quando prescrita em lei. Já o tempo e o lugar, que integram o plano da existência, não estão sujeitos a requisitos.

A terceira e última etapa a ser ultrapassada é aquela referente aos fatores de eficácia, assim denominados por serem externos ao negócio, não constituírem uma de suas partes integrantes, não obstante, relevantes para obtenção do resultado visado. É evidente que a eficácia a que se alude é a eficácia jurídica, ou seja, aquela própria ou típica, relativa aos efeitos manifestados como queridos, e não outra qualquer.

Assim, os negócios jurídicos subordinados a uma condição suspensiva não serão eficazes enquanto não houver o implemento da condição. De acordo com a lição de Antônio Junqueira de Azevedo,2 é possível fazer-se uma classificação dos fatores de eficácia: Em primeiro lugar, os fatores de atribuição de eficácia em geral, sem os quais o negócio não produz efeito algum; em seguida, os fatores de eficácia diretamente visada, ou seja, aqueles indispensáveis para que um negócio, eficaz entre as partes, produza determinados efeitos, visados pelos contratantes. Por último, os fatores de atribuição de eficácia mais extensa, consistentes em certas medidas, por exemplo, as de publicidade, em que o negócio que já é eficaz entre as partes, tenha sua eficácia ainda mais ampliada, atingindo a terceiros ou a comunidade, tornando-se eficaz erga omnes. É o que ocorre, quando as partes recorrem às medidas de publicidade em geral. Assim sendo, seriam nulos os negócios jurídicos celebrados com inobservância dos requisitos de validade: Agente incapaz, objeto ilícito ou impossível e inobservância da forma, quando exigida em lei. Seriam ineficazes os negócios cujos efeitos, pretendidos pelas partes, não pudessem ser obtidos devido a determinados obstáculos: Aqueles postos pela Ordem Jurídica, os dependentes do acaso (como o implemento de uma condição) ou ainda aqueles obstáculos decorrentes da inobservância de certas medidas publicitárias.

Tendo em vista a cominação, pelo legislador do futuro Código Civil, de sanção de  nulidade da cláusula violadora da função social do contrato, logo vem à mente do  leitor uma primeira pergunta: A nulidade de pleno direito da cláusula em questão anularia todo o contrato ou apenas aquela cláusula, restando as demais íntegras? Conforme o teor do art. 184 do Código Civil, a invalidade parcial de um negócio jurídico não o prejudicará na parte válida, se esta for separável; mas, segue o legislador: A invalidade da obrigação principal implica a das obrigações acessórias, mas a destas não induz a da obrigação principal.

Como antes referido, o festejado professor Marcos Bernardes de Mello trata das espécies de invalidade, acentuando um aspecto que aqui nos interessa mencionar: O problema da possibilidade de poder ser a invalidade total ou parcial, constituindo assunto relacionado à questão da separabilidade de suas partes, a qual se condiciona à preservação da integridade do ato jurídico. O ilustrado professor chama a atenção para o fato de se poder falar objetivamente em invalidade parcial, se a exclusão da parte inválida não atinge o negócio jurídico como um todo. No caso do §2º do art. 421 do anteprojeto de Código Civil haveria a possibilidade de, eventualmente, permanecer o contrato válido, uma vez extirpada a cláusula violadora da função social. Contudo, parece-nos que seria mais coerente fosse essa cláusula qualificada como ineficaz, ou seja, não produziria os efeitos jurídicos pretendidos pelas partes, preservando o negócio, na hipótese de que esse fosse daqueles insuscetíveis de serem separados.

A partir deste momento, passaremos a comentar a referência à persistência da exigência de exercer o contrato uma função social, de acordo com o aludido § 2º, exigência agravada com a sanção de nulidade da cláusula contratual que a violar.

Utilizando a sabedoria popular, entendemos ser apropriado evocar aqui o dito conhecido por todos, mais católicos que o Papa!

Com efeito, embora transcorridos 22 anos de vigência do Código Reale, a nossa doutrina e tampouco os tribunais todavia não chegaram a um consenso sobre qual seria o sentido dessa expressão, interpretada das mais diversas formas, segundo a ideologia do intérprete, sua filiação a uma ou a outra corrente da economia, da política, da filosofia, etc.

A dificuldade em precisar seu exato sentido sempre foi reconhecida, tanto é que o Código italiano de 1942, modelo de inspiração maior do legislador Reale, não adotou a exigência de o contrato, ou a empresa, exercerem uma função social.

Não há aqui, evidentemente, espaço bastante para debater esse assunto de forma aprofundada, contudo, desde que nos propusemos a comentar o §  2º do art. 421, acrescido ao texto do Código de 2002 pelo legislador da sua reforma, entendemos ser relevante expor essa dificuldade e sugerir que, em já havendo um certo consenso, seja retirada, no anteprojeto, a menção à função social do contrato e da empresa, sobretudo em razão da sugestão, partida do atual legislador, de ser anulada a cláusula que ferisse a função social do contrato. Novamente, dadas todas as vênias, essa exigência não se coaduna com a redação do texto do art. 421 e seu § único, após a vigência da lei 13.874/19, pois, o legislador dessa lei criou  uma verdadeira antinomia, de um lado, a exigência de cumprimento da função social (leia-se a extinção do princípio cardeal dos contratos, a sua relatividade); de outro, no seu § único, uma posição liberalista, afirmando a prevalência do principio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual. Podemos afirmar, sem receio, tratar-se de uma reforma um tanto desastrosa, porquanto  defeituosa desde o ponto de vista da lógica. Ademais, se examinarmos o estágio atual do direito contratual e empresarial brasileiro, veremos que, em razão da globalização, do incremento dos negócios no plano internacional, ocorre uma internacionalização do nosso direito civil, do nosso conceito de contrato, mediante o influxo dos princípios UNIDROIT, do Code Européen des Contrats, da UNCITRAL, da CISG e da Doutrina, nacional e internacional, onde a noção de função social não tem lugar, por variados motivos, merecendo destaque tanto o fato de ela eliminar a mais importante e mais clássica das qualidades do contrato, ou seja, a sua relatividade (le contrat est la chose des parties) além do fato de incumbir ao juiz verificar o seu cumprimento (da função social) gerando insegurança aos jurisdicionados, pois trata-se de conceito indeterminado.

Por outro lado, percebe-se um movimento, nacional e internacional, segundo o qual a doutrina surge como uma fonte de unificação internacional do Direito, porquanto ela comanda todos os esforços em direção à formação de uma concepção meta-nacional do direito, sobretudo na área do contrato, ou, como afirma C. Mouly, "à l’état d’esprit qui préside au dépassement et à l’abstraction des cadres nationaux".3 Importante destacar o fato de, inversamente do ocorrido em relação ao  CC/16, o atual diploma civil  apresenta-se  como um modelo aberto, ou seja, ele não exclui o jogo de outras fontes, como o costume, as convenções internacionais e até mesmo as normas internacionais. É relevante referir  essa abertura  à influência estrangeira naquilo concernente ao Direito privado em geral, e, mais particularmente, no plano do Direito dos contratos e da empresa. Ademais, menção há de ser feita à  circulação de modelos jurídicos provindos da common law, inglesa ou americana, fato incontestável, sobretudo a  partir da segunda metade do século XX, na área dos contratos empresariais. Evocamos ainda o caso da ratificação, pelo nosso governo, da Convenção de Viena de 1980 sobre venda internacional de mercadorias, mediante o decreto 832/14, já com repercussão em nosso direito contratual, v.g., recepcionando o dever de o credor mitigar o próprio prejuízo, o recurso às práticas das partes na interpretação do contrato, etc., soluções fundadas em princípios igualmente adotados por nossa legislação (a BFO, a Confiança), integrantes dessas convenções internacionais, refletindo o pensar jurídico de muitos países, relativamente ao conceito de contrato.

Por fim, evocamos um derradeiro argumento em favor da eliminação da exigência de função social do contrato e da empresa: O da contratualização do direito, definida como sendo o deslocamento do centro da organização da sociedade, tradicionalmente tendo como mais relevante instrumento a lei, para o contrato. Segundo afirmado por Camille Jaufret-Spinosi, nos dias atuais a parte dos vínculos prescritos diminui em proveito dos vínculos consentidos. Passamos do direito imposto ao direito negociado.4

Em sendo essa a atual compreensão do contrato, fica evidente que a exigência de exercerem, o contrato e a empresa uma função social, deve ser dispensada no novo diploma regulador das relações contratuais, contribuindo para atualização de nosso direito contratual.

________

1 Recorremos, neste ponto aos ensinamentos do professor Marcos Bernardes de MELLO, Teoria  do fato jurídico, Plano da Validade, 7a edição,  revista e atualizada , Saraiva, S.P., 2006, pp. 69 a 87.

2 Negócio jurídico, existência, validade e eficácia, Saraiva, São Paulo, 3a edição revista, 2000, pp.

3 No original: ...ao estado de espírito que preside a ultrapassagem  e  a abstração dos quadros nacionais,  Revue internationale de droit comparé, vol. 38, n°2, pp 351-368.

4 V. Rapport de Synthèse, in Journées  Brésiliennes de l’Association Henri Capitant, Le Contrat, Tome LV, éditeur  SLC, Paris, 2008, p. 02-22, esp. p. 03.

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Flávia Alessandra Naves Silva Mestre em Direito Civil pela PUC/SP. Diretora de Diversidade de As Civilistas. Vice-coordenadora da Comissão Nacional de Pesquisas do IBDFAM - Núcleo Sul/Sudeste. Advogada. Professora em cursos de graduação e pós-graduação.

Joyceane Bezerra de Menezes Doutora em Direito pela UFPE. Professora Titular da Unifor e da UFC. Presidente da Associação As Civilistas.

Maria Celina Bodin de Moraes Professora Titular (aposentada) de Direito Civil da PUC-Rio e da UERJ. Editora da Revista eletrônica civilistica.com. Civilista emérita na Associação As Civilistas.

Maria Cristina De Cicco Professora da Università degli Studi di Camerino (Itália). Doutora em Direito pela Università di Camerino. 2ª Vice-presidente e Civilista emérita da Associação As Civilistas.

Silvia Felipe Marzagão Mestre em Direito pela PUC/SP. Presidente da Comissão Especial da Advocacia de Família e Sucessões e Ouvidora da Mulher Advogada da OAB/SP. 1ª Vice-Presidente da Associação As Civilistas.

Thaís Sêco Professora Adjunta do Departamento de Direito da Universidade Federal de Lavras (UFLA). Doutora em Direito pela UFMG. Mestre em Direito Civil pela UERJ. Conselheira Executiva da Associação As Civilistas.