1. Introdução
Em meados de abril de 2024, foi apresentado ao Senado Federal o anteprojeto de revisão e atualização do CC de 2002. A Comissão responsável pela sua elaboração foi formada por 38 juristas, mulheres e homens provenientes de várias regiões do Brasil e representando diferentes profissões jurídicas1.
Coerente com a época atual, em que se percebe a polarização inflamada de diversos assuntos cotidianos, o anteprojeto de reforma do CC não passou incólume pelas dicotomizações que empobrecem os debates e pelas fake news. Para alguns imperioso, para outros indesejado, é papel da doutrina se debruçar sobre o novo texto legal enunciado, a fim de apontar suas virtudes e insuficiências, apresentando, quando possível, sugestões de aprimoramento.
Eis que, dentre as propostas de alteração do código, há uma instigante reconfiguração do instituto do fideicomisso, figura hodiernamente em desuso, mas que poderá reemergir oferecendo inúmeras possibilidades de utilizações práticas, como, por exemplo, em planejamentos patrimoniais e sucessórios.
O presente artigo visa tecer primeiras considerações sobre as propostas de alteração do regime legal do fideicomisso. Inicialmente, é abordado sinteticamente o regramento atual do instituto no CC de 2002 e as descontinuidades com o CC de 1916, que lhe conferia um campo de aplicação mais amplo. Em prosseguimento, são examinadas as principais mudanças propostas no anteprojeto sobre o fideicomisso. Por fim, são apresentadas sugestões e ponderações no ensejo de contribuir, ainda que singelamente e no limite deste breve ensaio, sobre o “novo fideicomisso”.
2. O fideicomisso no CC de 2002
Embora hoje em dia seu uso seja infrequente e, por essa razão, tenha sido relegado ao esquecimento, o fideicomisso já foi mais valorizado pela lei e doutrina brasileiras em épocas passadas, tendo sido objeto de estudo de juristas de escol2.
O código de 2002 recebeu uma seção específica para tratar da substituição fideicomissária3, determinação realizada via testamento de transmissão de herança ou legado em favor de um fiduciário para que, ocorrendo a morte desse ou ocorrendo determinado termo ou condição, tais bens sejam transmitidos em caráter definitivo a um terceiro, o fideicomissário. Logo, a substituição fideicomissária possui uma estrutura tripartite: em primeiro lugar, o fideicomitente, que é o testador, o qual decide instituir o fideicomisso; em segundo lugar, há o fiduciário, que no momento da morte do fideicomitente receberá em caráter resolúvel os bens objeto do fideicomisso. Seus deveres são os de conservar tais bens e ocorrendo o termo ou a condição estabelecida pelo fideicomitente, transmiti-los ao fideicomissário, de modo que sua propriedade será resolúvel. O fideicomissário será o titular em caráter permanente dos bens. O fideicomisso pode ser universal, recaindo sobre todos os bens deixados em herança, ou particular, incidindo apenas sobre bens determinados.
A substituição fideicomissária promove uma única sucessão, mas com ordens sucessivas. Por esta razão, consoante afirmou Pontes de Miranda, o fideicomisso não configura verdadeira substituição testamentária, pois o fiduciário não é simplesmente trocado pelo fideicomissário4. A beleza do fideicomisso está justamente em permitir que o mesmo bem seja fruído por mais de um sujeito, porém em momentos diferentes, apresentando, em tese, inúmeras potencialidades.
Uma importante ruptura separa o CC de 1916 do CC de 2002 no que tange ao fideicomisso: O fato de o atual art. 1.952 determinar que a substituição fideicomissária “somente se permite em favor dos não concebidos ao tempo da morte do testador”5, isto é, a prole eventual6. A opção do codificador de 2002 de reduzir drasticamente o número de situações passíveis de instituição de fideicomisso tornou o instituto de pouca serventia e aplicação prática escassa na atualidade.
Além disso, para a doutrina majoritária, a instituição de fideicomisso só pode ocorrer em testamento, sendo vedada a sua inserção em cláusula contratual, pois representaria afronta à vedação do pacta corvina, previsto no art. 426 do CC7. Nesse sentido, prevê o enunciado 529 da V jornada de Direito Civil do CJF: “O fideicomisso, previsto no art. 1.951 do CC, somente pode ser instituído por testamento”.
Logo, o fideicomisso no tempo presente está sendo uma figura de parca utilização. Todavia, pela semelhança de sua estrutura tríplice com os trusts e as inúmeras funções que poderia desempenhar, tem sido mencionado em projetos de lei que visam lhe atribuir nova roupagem, potencializando a sua aplicação8.
3. O fideicomisso no anteprojeto de reforma do CC
Diferente de muitas das propostas de alteração do CC, a reconfiguração do fideicomisso não representa a cristalização da jurisprudência. Em realidade, parte do acolhimento das críticas de seu estado atual de desuso e do cotejo com o direito comparado, o que já motivou a propositura de projetos de lei que permitam uso alargado do fideicomisso, tornando-o uma espécie de trust à brasileira9.
No anteprojeto, para que se viabilize o “novo fideicomisso”, foram realizadas alterações em vários dispositivos. Passa-se ao exame de tais formulações, principiando, por ordem topográfica, pela parte geral.
Ainda que não haja remissão direta ao fideicomisso, a proposição de nova redação ao art. 91 do código pode impactar no seu bom funcionamento, uma vez que corresponde ao que se entende por patrimônio. Em um primeiro olhar, pode-se pensar que a sugestão de mudança contemplaria a teoria contemporânea do patrimônio, a qual concebe que uma mesma pessoa possa ser titular de mais do que um patrimônio, permitindo a criação de patrimônios de afetação. Isso seria positivo para reforçar a ideia que os bens submetidos ao fideicomisso constituiriam um patrimônio afetado, o que poderia representar maior segurança, sobretudo para os fideicomissos inter vivos. Contudo, a proposta contempla a expressão “experimentadas por uma ou mais pessoas, conforme assim se tenha estabelecido”, que ficou pouco compreensível e não captou a essência das teorias contemporâneas. Neste ponto, modestamente, se aconselha uma emenda e como norte indica-se o art. 2º da Convenção da Haia sobre a lei aplicável ao trust e a seu reconhecimento.
No livro de Contratos, o anteprojeto introduz o art. 426-A, por meio do qual “é admitido o fideicomisso por ato entre vivos, desde que não viole normas cogentes e de ordem pública”. Esta modificação representará uma verdadeira revolução para o fideicomisso, que poderá, então, ser utilizado amplamente em negócios jurídicos, tais como compra e venda, doação, pactos societários, dentre outros. Importante a cautela do legislador ao reforçar a necessária observância das normas de ordem pública, para que esta proposta tão promissora, não seja desvirtuada e empregada no cometimento de fraudes.
No livro de Sucessões, foram feitas diversas mudanças no regramento da substituição fideicomissária. Inicialmente, o enunciado proposto para o art. 1.951 repara a limitação desacertada operada na passagem do código Beviláqua para o de 2002. Na proposição consta que o fideicomissário poderá ser “pessoa jurídica ou natural, já nascida ou concebida, ou ainda pessoas não concebidas, determinadas ou determináveis”, expandindo consideravelmente o alcance do instituto.
No dispositivo subsequente, descreve-se como um fideicomisso poderá ser estruturado com a participação de um fiduciário que seja gestor profissional dos bens a ele transferidos, de modo extremamente semelhante ao que ocorre nos trusts, em que é frequente a utilização de trustees profissionais. Neste ponto, cabe destacar que esta maneira de planejamento patrimonial poderá beneficiar sujeitos vulneráveis, tais como crianças, adolescentes, idosos e pessoas com deficiência, além de permitir a sucessão hereditária por etapas10. Todavia, é preciso cautela para que não haja a deturpação de sua vocação para finalidades merecedoras de tutela, mormente em nosso país, em que as instituições financeiras e assemelhadas gozam de privilégios que nem sempre são coerentes com a proteção dos cidadãos.
O anteprojeto também deixa claro que poderão fazer parte da instituição do fideicomisso “quaisquer bens e direitos, incluindo os bens digitais” (art. 1.952-A) e no art. 1.952-B estão arrolados os elementos mínimos que devem constar na cláusula testamentária que cria o fideicomisso, contribuindo para que sua instituição seja inequívoca e assertiva. Do mesmo modo, ratifica as responsabilidades e deveres do fiduciário, prestigiando a vontade do testador.
Digna de registro é a redação prevista no art. 1.953-A, segundo a qual: “(p)ode ser fideicomissa'rio qualquer sujeito de direito, ente juri'dico despersonalizado ou pessoa determinável, ainda que não concebida no momento da instituição do fideicomisso”. Deste modo, o fideicomisso realmente poderá ser útil em diversas situações de planejamento patrimonial ou sucessório, sem prejuízo de ser coligado a outras figuras.
Pelo exposto, percebe-se que, em aprovada a reforma, o fideicomisso terá maior campo de aplicabilidade, podendo desempenhar papel de maior protagonismo no ordenamento jurídico brasileiro. O conhecimento de sua forma de funcionamento será fundamental para todos os profissionais da área jurídica. Alguns dos leitores podem se sentir tentados a aguardar o andamento do anteprojeto para iniciarem seus estudos. Todavia, a lei que rege a sucessão é a vigente ao tempo de sua abertura11. Isso significa que, para a boa prática profissional, as consultas jurídicas realizadas pela advocacia devem ao menos considerar a hipótese de que quando futuramente houver o falecimento do cliente, a lei poderá ter sido alterada.
4. Considerações finais
As propostas de remodelação do fideicomisso são alvissareiras. Exigiram um trabalho coordenado das subcomissões (em especial de contratos e sucessões), que resultou em uma proposta de alteração legislativa corajosa e arrojada. Certamente é uma das 'joias' escondidas do anteprojeto.
A opção por resgatar e aprimorar institutos com os quais já temos familiaridade é muito mais produtiva. Espera-se que o futuro reserve ao fideicomisso maior aplicação prática e versatilidade para colmatar lacunas e oferecer soluções adequadas, sem descuidar das cautelas necessárias para que não tenha seu uso desvirtuado.
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1 Disponível aqui. Acesso em: 05/11/24.
2 Dentre diversos escritos sobre o tema, destacam-se os pareceres proferidos por Alfredo Bernardes, Carlos Maximiliano, Clovis Beviláqua, Hahnemann Guimarães e Orozimbo Nonato, que constam na obra a seguir: VALLADÃO, Haroldo. Enfim... Fideicomisso!. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1942.
3 Vide artigos 1.951 a 1.960 do CC de 2002.
4 “Num só capítulo, o CC (1916) juntou dois institutos de natureza diversa, e só semelhantes na aparência: a substituição vulgar e o fideicomisso. Naquela há, realmente, uma substituição, - uma pessoa fica no lugar que tocava a outra; nesse, não: uma foi, ou é, até certo tempo, ou até certo fato, e depois outra lhe sucede na herança. Não a substitui, vem-lhe depois. Os juristas constroem-na como instituição condicional; sem que isso lhe obste poder ser ela mesma condicional nos casos em que o pode ser a instituição do herdeiro ou legatário”. (PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Direito das sucessões: sucessão testamentária, disposições testamentárias e formas ordinárias de testamento. Atual. por Giselda Hironaka e Paulo Lôbo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. Coleção tratado de direito privado: parte especial, 58, p. 145).
5 Art. 1.952 do CC de 2002: “A substituição fideicomissária somente se permite em favor dos não concebidos ao tempo da morte do testador. Parágrafo único. Se, ao tempo da morte do testador, já houver nascido o fideicomissário, adquirirá este a propriedade dos bens fideicometidos, convertendo-se em usufruto o direito do fiduciário”.
6 O código Beviláqua previa a possibilidade de a prole eventual herdar via testamento, desde que expressamente determinado pelo testador e que quando do falecimento desse a prole eventual fosse existente. No CC de 2002, ao contrário, não é necessário estar concebido ou nascido no momento da morte do testador. Exige-se apenas que em até dois anos contados da abertura da sucessão esteja concebido.
7 Art. 426 do CC de 2002: “Não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva”.
8 A título de ilustração, mencionam-se os projetos de lei do Senado 487/13 e 4.758/20.
9 Sobre as semelhanças e dessemelhanças entre fideicomisso e trust, toma-se a liberdade de remeter a trabalho mais aprofundado da autora: XAVIER, Luciana Pedroso. Os trusts no direito brasileiro contemporâneo. Belo Horizonte: Fórum, 2023, p. 143 e ss.
10 Desenvolve-se com mais detalhes essas ideias em: XAVIER, Luciana Pedroso. O trust e suas potencialidades no planejamento sucessório. In: TEIXEIRA, Daniele Chaves (Coord.). Arquitetura do Planejamento Sucessório. Belo Horizonte: Fórum, 2022, p. 509-525. Tomo III.
11 Art. 1.787 do CC de 2002: “Regula a sucessão e a legitimação para suceder a lei vigente ao tempo da abertura daquela”.