Em que pese o conteúdo principal de um contrato seja a autodeterminação de vontades, atualmente deve-se reconhecer que este instrumento é integrado por outras fontes advindas da política interventiva do Estado.
Por se tratar de um dos maiores motores propulsores do desenvolvimento econômico e social, as normas voltadas ao contrato reconhecem que ele instrumenta relações entre pessoas pertencentes a categorias sociais antagônicas, e, por isso, devem ajustar-se a parâmetros que consideram a dimensão coletiva dos conflitos sociais que a eles se incorporam.1
Os contratos, ainda que gratuitos ou benéficos, possuem como objeto coisa que representem valor, e, por isso, estão intrinsecamente relacionados com a economia.
O valor daquilo que é o objeto contratual de uma compra e venda, troca ou prestação de serviço, é representado por uma moeda, que é, ao mesmo tempo, tanto uma medida de valor como um meio de pagamento.
Ocorre que a moeda como medida de valor está sujeita a alteração decorrente de fatos alheios à vontade dos contraentes, como ocorre com a inflação, conceituada pelo Banco Central do Brasil de forma bastante simples como o aumento dos preços de bens e serviços no tempo.
Ainda que muito seja relevante a discussão dos motivos causadores da inflação, este estudo limitar-se-á a investigação de seus efeitos jurídicos, afinal, em razão da inflação aquela original bilateralidade contratual transforma-se numa relação triangular cujos partícipes passam a ser credor, devedor e o Estado, este último na qualidade de criador do risco decorrente da depreciação monetária.2
São variados os índices que sirvem para medir a perda do poder de compra da moeda brasileira3, no entanto, o Banco Central do Brasil adotou como principal medida da inflação o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). O IPCA foi criado pelo IBGE e é calculado pelo Instituto Brasileiro de Economia e Estatística, indicando a variação de preços mensalmente de treze áreas urbanas do país4, obtendo, aproximadamente, 430 mil preços em 30 mil diferentes locais.5
A redação original do Código Civil de 2002 considerou em seu art. 389 que o inadimplemento de determinada obrigação culminava na imposição do devedor pagar aquele valor original acrescido perdas e danos, juros e correção monetária “segundos índices oficiais regularmente estabelecidos”.
Ainda que tivesse em conta o fato da recomposição do valor da moeda, a redação original trazia insegurança jurídica porque diferentes interpretações e diversos índices poderiam ser utilizados para calcular uma mesma obrigação inadimplida ou protraída no tempo.
Não fosse suficiente, sequer o montante de juros se conseguia extrair de forma indubitável da original redação do Código Civil de 2002, mesmo que se levasse em conta o complemento descrito no art. 406 do mesmo dispositivo legal.
Como se pode observar, ainda que exista previsão legal em relação a necessidade de correção monetária e juros moratórios em decorrência de inadimplemento contratual, há insegurança jurídica acerca do índice que deverá ou poderá ser utilizado para valorar a depreciação da moeda e o montante mínimo e máximo para remunerá-la com juros no curso do tempo.
O tema é parcialmente objeto do Recurso Especial n. 1.795.982/SP, que em 06/03/2024 teve proclamação de julgamento6 no sentido de, por 6 votos a 5, dar-se provimento ao recurso especial para determinar que nas dívidas civis sejam os juros de mora e correção monetária calculados pela taxa SELIC.
É bem verdade que o Recurso Especial trata apenas de casos judicializados e sem previsão contratual acerca do índice de correção monetária utilizado ou juros pactuados. No entanto, o apertado placar na Corte da Cidadania deixa clara a divisão jurisprudencial na interpretação daquilo que originalmente disposto no Código Civil de 2002.
Talvez não por outra razão o relatório final da Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil já prevê e propõe a alteração de artigos na lei a fim de trazer maior segurança jurídica e mais claros limites aos contratantes em relação aos juros que podem pactuar.
De toda sorte, enquanto a substancial e ampla alteração do Código Civil não é finalizada, cuidou o Poder Legislativo, apressado ou não pelo julgamento daquele Recurso Especial acima mencionado, de trazer alterações à legislação civil voltada ao cálculo e limites de pactos contratuais no que se refere à correção monetária e à incidência de juros moratórios e remuneratórios.
Dentre as alterações trazidas e que passarão a ser plenamente válidas a partir de 1º setembro de 2024 está utilização do IPCA como índice subsidiário de atualização monetária quando não previsto outro em contrato ou lei específica7 e a definição da taxa legal, que passa a ser definida como SELIC menos o IPCA e que será utilizada subsidiariamente quando não houver pacto em sentido diverso ou não determinados por lei8.
Desta forma, bem ou mal vê-se que a Lei 14.905/2024, ao mesmo tempo que fortalece a autonomia de vontade ao expressamente reconhecer a possibilidade de pactuação de índice e taxa de juros pelas partes, cuidou de trazer critérios objetivos e balizadores para o cálculo da desvalorização da moeda e índice de juros moratórios e remuneratórios para os casos em que silente as partes quanto à forma de atualizar-se o valor da obrigação avençada.
Em linhas gerais, o que se percebe é que com o advento das alterações trazidas pela Lei 14.905/24, quando não pactuados de forma diversa, juros e correção monetária, juntos, serão calculados pela SELIC. Isto é, como a correção monetária será o IPCA e os juros a SELIC diminuída do IPCA, ambos, somados, resumem-se à SELIC integral.
Também dispõe a nova redação do Código Civil naquilo que aqui se propõe a estudar que caberá ao Conselho Monetário Nacional (CMN) a metodologia para o cálculo da taxa legal e sua forma de aplicação, e, ainda, que caso a taxa legal apresente resultado negativo, este será considerado igual a 0 (zero) para o período de referência.
Necessário destacar que a Lei 14.905/24 trouxe alterações na Lei da Usura (DL 22.626/1933) que é aquela que limita a convenção de taxa de juros ao dobro da taxa legal, contudo, este ponto e aquele que se refere a aplicação da Lei 14.905/24 em relação a contratos firmados, demandas formadas e decisões transitados em julgado anteriormente à vigência da lei, são digressões que remanescem para um posterior estudo acerca do tema.
Desta forma, mesmo que a alteração legislativa pudesse ser mais simples o operacional na forma de correção e remuneração de valores, verdade que trouxe mais segurança jurídica para as relações contratuais, e, com isso, certamente ganha a cidadão.
Para concluir, serve este estudo para alertar os leitores que a partir de setembro de 2024, para que não fiquem sujeitos a uma taxa de juros e de correção monetária limitada à SELIC, necessário será que pactuem de forma expressa o índice e a a taxa de juros compensatórios e moratórios que julgue aquela mais adequada à contratação realizada a fim de não causar onerosidade excessiva para credor ou devedor.
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1 GOMES, Orlando. Contratos. 28 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022.
2 WALD, Arnoldo. A correção monetária no direito privado. In Doutrinas essenciais: obrigações e contratos. Gustavo Tepedino e Luiz Edson Fachin (orgs). Volume II. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
3 Como o IGP-M, INPC, Taxa SELIC, dentre outros.
4 Belém(PA), Belo Horizonte(MG), Curitiba(PR), Distrito Federal(DF), Fortaleza(CE), Goiânia(GO), Porto Alegre(RS), Recife(PE), Rio de Janeiro(RJ), São Paulo(SP) e Vitória(ES).
5 IBGE. Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo. Disponível aqui. Acesso em 04 de agosto de 2024.
6 Sem trânsito em julgado.
7 Nova redação do art. 389, parágrafo único.
8 Nova redação do art. 406, caput e 406, parágrafo primeiro.