Migalhas Contratuais

A correção e remuneração da moeda nos contratos após o advento da lei 14.905/24

Os contratos, ainda que gratuitos ou benéficos, possuem como objeto coisa que representem valor, e, por isso, estão intrinsecamente relacionados com a economia.

5/8/2024

Em que pese o conteúdo principal de um contrato seja a autodeterminação de vontades, atualmente deve-se reconhecer que este instrumento é integrado por outras fontes advindas da política interventiva do Estado.

Por se tratar de um dos maiores motores propulsores do desenvolvimento econômico e social, as normas voltadas ao contrato reconhecem que ele instrumenta relações entre pessoas pertencentes a categorias sociais antagônicas, e, por isso, devem ajustar-se a parâmetros que consideram a dimensão coletiva dos conflitos sociais que a eles se incorporam.1

Os contratos, ainda que gratuitos ou benéficos, possuem como objeto coisa que representem valor, e, por isso, estão intrinsecamente relacionados com a economia.

O valor daquilo que é o objeto contratual de uma compra e venda, troca ou prestação de serviço, é representado por uma moeda, que é, ao mesmo tempo, tanto uma medida de valor como um meio de pagamento.

Ocorre que a moeda como medida de valor está sujeita a alteração decorrente de fatos alheios à vontade dos contraentes, como ocorre com a inflação, conceituada pelo Banco Central do Brasil de forma bastante simples como o aumento dos preços de bens e serviços no tempo.

Ainda que muito seja relevante a discussão dos motivos causadores da inflação, este estudo limitar-se-á a investigação de seus efeitos jurídicos, afinal, em razão da inflação aquela original bilateralidade contratual transforma-se numa relação triangular cujos partícipes passam a ser credor, devedor e o Estado, este último na qualidade de criador do risco decorrente da depreciação monetária.2

São variados os índices que sirvem para medir a perda do poder de compra da moeda brasileira3, no entanto, o Banco Central do Brasil adotou como principal medida da inflação o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). O IPCA foi criado pelo IBGE e é calculado pelo Instituto Brasileiro de Economia e Estatística, indicando a variação de preços mensalmente de treze áreas urbanas do país4, obtendo, aproximadamente, 430 mil preços em 30 mil diferentes locais.5

A redação original do Código Civil de 2002 considerou em seu art. 389 que o inadimplemento de determinada obrigação culminava na imposição do devedor pagar aquele valor original acrescido perdas e danos, juros e correção monetária “segundos índices oficiais regularmente estabelecidos”.

Ainda que tivesse em conta o fato da recomposição do valor da moeda, a redação original trazia insegurança jurídica porque diferentes interpretações e diversos índices poderiam ser utilizados para calcular uma mesma obrigação inadimplida ou protraída no tempo.

Não fosse suficiente, sequer o montante de juros se conseguia extrair de forma indubitável da original redação do Código Civil de 2002, mesmo que se levasse em conta o complemento descrito no art. 406 do mesmo dispositivo legal.

Como se pode observar, ainda que exista previsão legal em relação a necessidade de correção monetária e juros moratórios em decorrência de inadimplemento contratual, há insegurança jurídica acerca do índice que deverá ou poderá ser utilizado para valorar a depreciação da moeda e o montante mínimo e máximo para remunerá-la com juros no curso do tempo.

O tema é parcialmente objeto do Recurso Especial n. 1.795.982/SP, que em 06/03/2024 teve proclamação de julgamento6 no sentido de, por 6 votos a 5, dar-se provimento ao recurso especial para determinar que nas dívidas civis sejam os juros de mora e correção monetária calculados pela taxa SELIC.

É bem verdade que o Recurso Especial trata apenas de casos judicializados e sem previsão contratual acerca do índice de correção monetária utilizado ou juros pactuados. No entanto, o apertado placar na Corte da Cidadania deixa clara a divisão jurisprudencial na interpretação daquilo que originalmente disposto no Código Civil de 2002.

Talvez não por outra razão o relatório final da Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil já prevê e propõe a alteração de artigos na lei a fim de trazer maior segurança jurídica e mais claros limites aos contratantes em relação aos juros que podem pactuar.

De toda sorte, enquanto a substancial e ampla alteração do Código Civil não é finalizada, cuidou o Poder Legislativo, apressado ou não pelo julgamento daquele Recurso Especial acima mencionado, de trazer alterações à legislação civil voltada ao cálculo e limites de pactos contratuais no que se refere à correção monetária e à incidência de juros moratórios e remuneratórios.

Dentre as alterações trazidas e que passarão a ser plenamente válidas a partir de 1º setembro de 2024 está utilização do IPCA como índice subsidiário de atualização monetária quando não previsto outro em contrato ou lei específica7 e a definição da taxa legal, que passa a ser definida como SELIC menos o IPCA e que será utilizada subsidiariamente quando não houver pacto em sentido diverso ou não determinados por lei8.

Desta forma, bem ou mal vê-se que a Lei 14.905/2024, ao mesmo tempo que fortalece a autonomia de vontade ao expressamente reconhecer a possibilidade de pactuação de índice e taxa de juros pelas partes, cuidou de trazer critérios objetivos e balizadores para o cálculo da desvalorização da moeda e índice de juros moratórios e remuneratórios para os casos em que silente as partes quanto à forma de atualizar-se o valor da obrigação avençada.

Em linhas gerais, o que se percebe é que com o advento das alterações trazidas pela Lei 14.905/24, quando não pactuados de forma diversa, juros e correção monetária, juntos, serão calculados pela SELIC. Isto é, como a correção monetária será o IPCA e os juros a SELIC diminuída do IPCA, ambos, somados, resumem-se à SELIC integral.

Também dispõe a nova redação do Código Civil naquilo que aqui se propõe a estudar que caberá ao Conselho Monetário Nacional (CMN) a metodologia para o cálculo da taxa legal e sua forma de aplicação, e, ainda, que caso a taxa legal apresente resultado negativo, este será considerado igual a 0 (zero) para o período de referência.

Necessário destacar que a Lei 14.905/24 trouxe alterações na Lei da Usura (DL 22.626/1933) que é aquela que limita a convenção de taxa de juros ao dobro da taxa legal, contudo, este ponto e aquele que se refere a aplicação da Lei 14.905/24 em relação a contratos firmados, demandas formadas e decisões transitados em julgado anteriormente à vigência da lei, são digressões que remanescem para um posterior estudo acerca do tema.

 Desta forma, mesmo que a alteração legislativa pudesse ser mais simples o operacional na forma de correção e remuneração de valores, verdade que trouxe mais segurança jurídica para as relações contratuais, e, com isso, certamente ganha a cidadão.

Para concluir, serve este estudo para alertar os leitores que a partir de setembro de 2024, para que não fiquem sujeitos a uma taxa de juros e de correção monetária limitada à SELIC, necessário será que pactuem de forma expressa o índice e a a taxa de juros compensatórios e moratórios que julgue aquela mais adequada à contratação realizada a fim de não causar onerosidade excessiva para credor ou devedor.

__________

1 GOMES, Orlando. Contratos. 28 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022.

2 WALD, Arnoldo. A correção monetária no direito privado. In Doutrinas essenciais: obrigações e contratos. Gustavo Tepedino e Luiz Edson Fachin (orgs). Volume II. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.

3 Como o IGP-M, INPC, Taxa SELIC, dentre outros.

4 Belém(PA), Belo Horizonte(MG), Curitiba(PR), Distrito Federal(DF), Fortaleza(CE), Goiânia(GO), Porto Alegre(RS), Recife(PE), Rio de Janeiro(RJ), São Paulo(SP) e Vitória(ES).

5 IBGE. Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo. Disponível aqui. Acesso em 04 de agosto de 2024.

6 Sem trânsito em julgado.

7 Nova redação do art. 389, parágrafo único.

8 Nova redação do art. 406, caput e 406, parágrafo primeiro.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Coordenação

Eroulhts Cortiano Jr. é professor da Faculdade de Direito da UFPR. Doutor em Direito pela UFPR. Pós-doutor em Direito pela Universitá di Torino e pela Universitá Mediterranea di Reggio Calabria. Conselheiro Estadual da OAB/PR. Secretário-geral do IBDCONT. Advogado em Curitiba/PR.

Flávio Tartuce é pós-doutor e doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP. Professor Titular permanente e coordenador do mestrado da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor e coordenador do curso de mestrado e dos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD. Patrono regente da pós-graduação lato sensu em Advocacia do Direito Negocial e Imobiliário da EBRADI. Diretor-Geral da ESA da OABSP. Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família em São Paulo (IBDFAMSP). Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico.

José Fernando Simão é professor da USP. Advogado.

Luciana Pedroso Xavier é professora da Faculdade de Direito da UFPR. Doutora e Mestre em Direito pela UFPR. Advogada sócia da P.X Advogados.

Marília Pedroso Xavier é professora da graduação e da pós-graduação stricto sensu da Faculdade de Direito da UFPR. Doutora em Direito Civil pela USP. Mestre e graduada em Direito pela UFPR. Coordenadora da Escola Superior de Advocacia da OAB/PR. Diretora do Instituto Brasileiro de Direito Contratual - IBDCONT. Mediadora. Advogada do PX ADVOGADOS, com especialidade em Famílias, Sucessões e Empresas Familiares.

Maurício Bunazar é mestre, doutor e pós-doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Diretor executivo e fundador do IBDCONT. Professor do programa de mestrado da Escola Paulista de Direito. Professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie e do IBMEC-SP.