A ampliação da liberdade de pactuar nas relações familiares conjugais e convivenciais é uma demanda crescente no cenário jurídico e social, e é impulsionada pela conquista jurídica da liberdade de escolha do modelo familiar.
É importante, inicialmente, romper a barreira do discurso contrário à contratualização das relações familiares conjugais e convivenciais, como se a realização de um pacto ou ajuste a respeito dos efeitos patrimoniais do relacionamento fosse um indicativo de ausência de afeto.
Todos os relacionamentos conjugais ou convivenciais geram efeitos patrimoniais contratados. Ao celebrar um casamento ou iniciar uma união estável, os cônjuges ou conviventes estão contratando o regime de bens de comunhão parcial de bens, que está previsto de maneira supletiva nos artigos 1.640 e 1.725 do Código Civil, ainda que não elaborem um pacto ou contrato escrito ou específico. Por esta razão, inclusive, a figura do contrato de namoro vem ganhando destaque na doutrina e na jurisprudência, a fim de evitar o reconhecimento de união estável contrário a vontade das partes, e presumir a existência de uma contratação de regime de bens1.
O que estamos a defender, acima de tudo, é a ampliação da liberdade de pactuar um modelo patrimonial adequado à cada relacionamento. A elaboração de pactos conjugais e convivenciais tornam possível que cada casal formate os efeitos patrimoniais do seu relacionamento de acordo com as individualidades existentes em sua relação.
Cada relação conjugal ou convivencial é única, e a escolha do modelo patrimonial mais adequado passa pela análise de diversos fatores pessoais, familiares e patrimoniais únicos. A escolha de um regime de separação total de bens, por exemplo, tem diferentes consequências pessoais e patrimoniais a depender da situação pessoal, patrimonial e familiar de cada um dos cônjuges.
O casamento entre duas pessoas jovens, sem filhos, e que estão iniciando a vida profissional e aquisição de patrimônio, bem como planejando ter filhos durante a relação, por exemplo, merece um olhar mais cuidadoso sobre a distribuição e cuidados financeiros, já que nesta fase da vida é mais comum que as mulheres abdiquem de crescimento profissional e financeiro em razão do cuidados dos filhos que serão gerados na constância da união, de forma que a escolha de um regime simples de separação total de bens, por exemplo, poderá trazer desequilíbrio econômico e insegurança na relação.
Por outro lado, o casamento entre pessoas com filhos adultos, e que já tem patrimônio e vida profissional definido, pode ter um bom resultado com o regime de separação total de bens, garantindo a independência patrimonial e financeira de cada um. E seguindo nos exemplos, o casamento entre duas pessoas em situações pessoais e patrimoniais diferentes também precisa de um olhar único. Pode existir uma grande diferença econômica e familiar entre os cônjuges na hipótese em que um deles seja detentor de patrimônio e já tenha filhos, e o outro cônjuge não tenha patrimônio e filhos.
É certo que não conseguimos esgotar os exemplos, já que as dinâmicas familiares são muito mais complexas e individualizadas. E justamente por isso que não podemos supor que todas as relações familiares devem se submeter às mesmas regras tipificadas de regime de bens. A individualização do modelo patrimonial é muito mais do que escolher um dos regimes de bens previsto no código, como a comunhão parcial, a comunhão universal ou a separação total de bens. Pensar desta forma é limitar por demais as possibilidades jurídicas de enriquecer os arranjos individuais de cada casal. As regras gerais são importantes em todas as relações contratuais pois definem os contornos jurídicos dos institutos, simplificando a sua aplicabilidade, em especial para aqueles que não desejam elaborar um contrato mais complexo.
A autonomia das partes na realização de pactos e contratos conjugais e convivenciais, no entanto, pode ir além da utilização dos modelos previstos em lei. O contrato de compra e venda é um bom exemplo da importância de regras gerais, sem excluir as individualizações em cada situação concreta. A grande maioria dos contratos de compra e venda realizados diariamente é feito por meio de contratos simples, e muitas vezes até verbais. Isso, no entanto, não limita a realização de contratos com cláusulas específicas, individualizando cada situação, respeitando por evidente as normas de ordem pública.
O anteprojeto de Lei para revisão e atualização do Código Civil2 caminha exatamente nesta direção, mantendo as regras de regime de bens de maneira supletiva, permitindo aqueles que iniciarão um casamento ou união estável apenas aderirem aos regimes de bens existentes. Inclusive, o texto aprovado pela comissão de juristas aprimora os regimes de bens existentes a fim de facilitar a sua compreensão e aplicabilidade. No regime de comunhão parcial, por exemplo, o rol de comunicabilidades é atualizado (art. 1.659 e 1.660), inserindo expressamente temas que há anos são objeto de embates doutrinários e jurisprudenciais, como a comunicabilidade do FGTS, de participação em previdência privada, bem como a controvertida questão da participação do cônjuge nas quotas sociais do outro, na valorização destas quotas e nos lucros gerados. Também o regime de separação total de bens tem importante modificação, inserindo dois parágrafos no art. 1.688 prevendo a possibilidade de partilha de bens adquiridos com contribuição econômica direta de ambos bem como prevendo compensação pelo trabalho na residência da família e cuidado da prole. E ainda, o texto do anteprojeto tem disposições específicas revogando as normas que o regime de participação final nos aquestos e o da separação obrigatória de bens.
E mais do que isso, o texto do anteprojeto consolida e amplia de maneira expressa a liberdade de pactuar nas relações conjugais e convivenciais para aqueles que assim o quiserem. Muito além de optar por um dos regimes previstos no Código Civil, o anteprojeto traz, no art. 1.640, § 2º, a previsão de possibilidade expressa das partes em pactuarem um regime misto ou atípico, tendo por limite as normas cogentes ou de ordem pública. Assim poderiam escolher, por exemplo, a separação total para participações societárias, e adotar a comunhão parcial para bens imóveis adquiridos na constância da união.
Considerando que as relações conjugais e convivências podem se modificar com o tempo, o art. 1.639, § 2º do anteprojeto prevê a facilitação da mudança de regime de bens, possibilitando que o seja de maneira extrajudicial. Desta forma, um casal que, no início do casamento ou da união entendeu que determinado regime era mais adequado, pode com mais facilidade modificar esse regime de bens na constância do casamento, tornando mais dinâmica a relação patrimonial.
Como novidade, foi inserida pelo art. 1.653-B do anteprojeto a previsão expressa de possibilidade de cláusula prevendo a modificação automática do regime de bens, conhecida como sunset clause. E a dinamicidade do momento de elaboração dos pactos conjugais ou convivenciais segue reforçada pela previsão art. 1.656-A., que prevê expressamente que os pactos poderão ser firmados antes ou depois de celebrado o matrimônio ou constituída união estável. Esta liberdade de modificar ou pactuar os regimes de bens na constância do casamento ou da união estável é limitada pela irretroatividade desta mudança, o que deve ser observado pelos contratantes.
Não pretendemos com este texto esgotar as situações que consolidam a ampliação da liberdade de pactuar, uma vez que foram diversos ponto no anteprojeto que a reforçam, ultrapassando os limites do direito familiar. A título de exemplo, a previsão de inserir a liberdade de contratar sobre a herança no pactos conjugais ou convivenciais, com a inserção de parágrafos no art. 426 do Código Civil, que expressamente trata sobre a renuncia antecipada da condição de herdeiro; também há no anteprojeto previsão de ajustes no direito empresarial, por exemplo nos artigos 1.027 e 1.028, na questões relativas a participação do cônjuge ou herdeiro do sócio em relação à sociedade , entre outras previsões de modificações no Código Civil que direta ou indiretamente ampliam a liberdade do casal.
A ampliação da liberdade de ajustes patrimoniais entre os cônjuges e conviventes é uma conquista, mas que não deve vir desacompanhada do olhar criterioso quando presente desequilíbrio econômico, social ou pessoal entre os cônjuges. A liberdade contratual somente se faz presente, efetivamente, em um cenário de igualdade entre as partes. Devemos atentar que muitas vezes, em relações conjugais e convivenciais, há uma vulnerabilidade social e econômica da mulher contratante, o que não se ignorar ao se interpretar o pacto na situação específica quando presente a desigualdade.
A ampliação da liberdade de pactuar também aumenta a responsabilidade das partes nas suas escolhas ao explicitar antecipadamente as decisões daquele casal para reger a sua vida patrimonial, e portanto amplia a necessidade de comunicação, evidenciando os pilares que fundamentam o seu relacionamento. Desta forma, é o possível a redução de conflitos pela maior previsibilidade dos efeitos patrimoniais.
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1 Sobre este assunto, recomendamos a leitura da coluna do mês anterior, escrita pela prof. Marilia Xavier https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-contratuais/408949/contrato-de-namoro-tem-validade-confirmada-pelo-tj-pr
2 Disponível em https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento/download/68cc5c01-1f3e-491a-836a-7f376cfb95da ou https://legis.senado.leg.br/comissoes/comissao?codcol=2630