Migalhas Contratuais

A doação do cônjuge para terceiros e a reforma do Código Civil

O contrato de doação, instrumento principal das liberalidades, é um dos mais instigantes do ponto de vista de sua construção e regulação.

13/5/2024

O contrato de doação, instrumento principal das liberalidades, é um dos mais instigantes do ponto de vista de sua construção e regulação. Justamente por veicular atribuição patrimonial sem contraprestação, as possibilidades de utilização da doação no exercício da autonomia privada (no gerenciamento dos interesses econômicos e solidários) são variadíssimas. O amplo espectro de boa e má utilização do contrato de doação, chama regulações específicas, tendo em vista a sua causa, o seu conteúdo ou as partes do contrato. Bem por isso o legislador se preocupa com diversas modalidades de doação, como, por exemplo, a doação com cláusula de reversão, a doação universal, a possibilidade de revogação da doação por ingratidão do donatário, a doação como instrumento de adiantamento da herança, a doação inoficiosa etc. 

Proíbem-se, total ou parcialmente, diversas modalidades de doação, considerando-as inválidas ou ineficazes. Uma destas hipóteses chama a atenção, por razões sensíveis (envolve as relações afetivas) mas também por sua construção jurídica. Trata-se da antes chamada “doação do cônjuge adúltero ao seu cúmplice”, tida como inválida pelo artigo 550 do Código Civil. Em poucas palavras, a lei diz que não vale a doação de pessoa casada, para alguém com quem teve relação adulterina. 

A preocupação do legislador em proteger patrimonialmente a família constituída legalmente diante de relações espúrias já era prevista no artigo 1.177 do Código Civil de 1916, cuja redação foi praticamente repetida no art. 550 do Código Civil de 2002: 

“Art. 550. A doação do cônjuge adúltero ao seu cúmplice pode ser anulada pelo outro cônjuge, ou por seus herdeiros necessários, até dois anos depois de dissolvida a sociedade conjugal.” 

O dispositivo, tanto em 1916 como em 2022 (melhor seria dizer em 1975, quando o projeto do Código Civil foi encaminhado ao Poder Legislativo) tinha alvo firme: para o bem da família, ainda que o cônjuge tivesse pleno poder de disposição (basta pensar num bem móvel de propriedade exclusiva de um cônjuge) ele não podia fazer doação para aquele com quem tivesse praticado – ou praticasse - adultério. 

A norma revela uma determinada concepção da família (no caso, a família matrimonial), uma preocupação de gênero (ainda que se aplicasse para o adultério da mulher, evidentemente mirava o adultério do marido), e a criminalização da infidelidade (adultério já foi considerado crime). A quaestio envolvida na proibição de doação em tal circunstância era complexa. Bem por isso dizia SERPA LOPES, em 1991, que “Este dispositivo envolve uma parte do problema das liberalidades entre amantes, o que por si só já justifica uma monografia a respeito”1. 

O dispositivo, tal qual escrito (diga-se: reproduzido do Código anterior), prestava-se a uma série de dúvidas interpretativas, decorrentes dos avanços sociais e da necessidade de aplicá-lo na atualidade. Três exemplos de dúvidas que surgem na sua aplicação: - a invalidade aplica-se apenas ao casamento (a lei fala em “cônjuge”) ou também à união estável? – o que se considera adultério (exige relação sexual com terceiro ou apenas relação  afetiva? Aplica-se ao “adultério virtual?) – o art. 550 prevalece sobre o artigo 1.642, V do Código (que fala da faculdade de o cônjuge reivindicar bens doado ao concubino)? 

Além de ser de uma constitucionalidade duvidosa2 a redação do artigo 550 do Código Civil merece críticas. Como disse Flávio TARTUCE,  “Na verdade, o art. 550 do CC é polêmico, parecendo-me a sua redação um verdadeiro descuido do legislador, um grave cochilo”. 

Pois firme no propósito de atualizar e tornar mais operável a legislação civil, o reformador propõe alteração no dispositivo. A sugestão de redação é: 

“Art. 550. A doação de pessoa casada ou em união estável a terceiro com quem mantenha relação na forma do art. 1.564-D pode ser anulada pelo outro cônjuge ou convivente, ou por seus herdeiros necessários, até dois anos depois de dissolvida a sociedade conjugal ou a união estável.” 

Vê-se bem que a lógica da vedação e suas linhas mestras continuam. A doação será inválida, o prazo decadencial para pleitear a anulação é de 2 anos e os legitimados são o cônjuge e os herdeiros necessários. 

Mas, agora, o dispositivo (a) refere a união estável (a proibição, acertadamente, não se dirige apenas à família matrimonial), (b) afasta-se do adultério como tipo civil e (c) concatena-se com o tratamento dado ao antigo concubinato (expressão que deve ser defenestrada da ordem jurídica, mas é aqui utilizada por razão didática). O artigo 1.564 projetado cuida da união estável3 e a sua letra D dispõe:

“Art. 1.564-D. A relação não eventual entre pessoas impedidas de casar não constitui família.

Parágrafo único. As questões patrimoniais oriundas da relação prevista no caput serão reguladas pelas regras da proibição do enriquecimento sem causa previstas nos arts. 884 a 886.” 

O reformador então, enfrenta o problema das uniões paralelas, para reconhecer que elas não constituem família, que podem gerar demandas patrimoniais, as quais serão atingidas pelas regras do enriquecimento sem causa. 

Por fim, a nova redação do dispositivo afasta-se do adultério como um tipo civil, facilitando sua aplicação, na medida em que a conceituação do art. 1.564 é mais objetiva. 

Fatalmente situações fáticas imprevistas acontecerão, obrigando o julgador a adequar a normativa a cada caso concreto, em verdadeira criação da norma pela interpretação. Ademais, há que se aguardar o resultado do processo legislativo. De qualquer maneira, o tema, muito sensível como foi dito acima, foi objeto de atenção do reformador, e mostra a preocupação em destravar o direito sem descurar de sua sistematização.

__________

1 Miguel Maria de SERPA LOPES. Curso de Direito Civil, vol. III, Rio de Janeiro, Freitas Bastos: 1991, p. 374-375.

2 Paulo LOBO. Direito Civil. Contratos. São Paulo: Saraivajur, 2021, p. 301.

3 Art. 1.564-A. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre duas pessoas, mediante uma convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida como família.

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Angelica Carlini é presidente do IBDCONT Nacional. Doutora em Direito Político e Econômico. Mestre em Direito Civil. Pós-doutorado em Direito Constitucional. Pós-graduanda em Direito Digital pelo ITS-UERJ. Advogada. Professora doutora e coordenadora do curso 'MBA Gestão Jurídica de Seguros e Resseguros'.

Eroulhts Cortiano Jr. é professor da Faculdade de Direito da UFPR. Doutor em Direito pela UFPR. Pós-doutor em Direito pela Universitá di Torino e pela Universitá Mediterranea di Reggio Calabria. Conselheiro Estadual da OAB/PR. Secretário-geral do IBDCONT. Advogado em Curitiba/PR.

Flávio Tartuce é pós-doutor e doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP. Professor Titular permanente e coordenador do mestrado da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor e coordenador do curso de mestrado e dos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD. Patrono regente da pós-graduação lato sensu em Advocacia do Direito Negocial e Imobiliário da EBRADI. Diretor-Geral da ESA da OABSP. Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família em São Paulo (IBDFAMSP). Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico.

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