1. Introdução
Sem dúvida, um dos livros que mais me influenciou academicamente foi “A obrigação como processo”, texto de autoria de Clóvis do Couto e Silva. A obra, mesmo tendo passado mais de 50 anos de sua confecção e apresentação ao público1, ainda é extremamente atual e bastante impactante.
As noções e premissas trazidas pelo autor gaúcho demonstram a importância de se analisar as obrigações atreladas aos negócios jurídicos em movimento dinâmico, sendo inviável efetuar as incursões sobre a relação obrigacional sem perceber que esta se plasma em verdadeiro engenho. O olhar que se lança sobre as relações obrigacionais, portanto, não é estático, devendo acompanhar as etapas e as flutuações que são inerentes ao vínculo correspondente. Dentro de tal dinamismo, sob a ótica da interpretação negocial, não se admite que o comportamento das partes deixe de ter importância. Esse é, pois, o epicentro do brevíssimo ensaio.
2. A (re)inserção do comportamento das partes como critério legal para a interpretação dos negócios jurídicos
A partir da bússola introdutória, ainda que em resumo apertado, é importante que sejam ditas algumas palavras acerca do atual artigo 113, § 1º, inciso I, regra legal que foi inserida no ventre do Código Civil por força da Lei 13.874/2019 (a chamada “Lei da Liberdade Econômica”) e que agora faz parte, de forma expressa, dos mecanismos para a interpretação dos negócios jurídicos. Segundo o aludido dispositivo, além da boa-fé e dos usos do lugar de sua celebração (tema do caput) e de outros critérios interpretativos (alojados nos demais incisos postos no rol no § 1º do art. 113), a interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido que for confirmado pelo comportamento das partes posterior à celebração do negócio.
Ao se eleger o comportamento como peça integrante do gabarito legal para interpretar os negócios jurídicos, há o reconhecimento de situação dinâmica na relação negocial, desenvolvendo-se esta a partir de atos em sequência. É possível importar, ainda que com adaptações necessárias, as lições de Clóvis do Couto e Silva, uma vez que o comportamento das partes se desenrola em cadeia dinâmica de fatos, tendo, como pano de fundo, o vínculo respectivo ao negócio jurídico.
Em análise global, ainda que grosso modo, pode-se afirmar que a interpretação do negócio do jurídico se efetua a partir de dois pilares: (a) comandos legais e (b) previsões internas2. No primeiro bloco, o legislador municiou o ordenamento legal de dispositivos que o intérprete deverá usar para interpretar as disposições de vontade dos negócios jurídicos, como é o caso do artigo 114 do Código Civil3, que determina a interpretação estrita da renúncia e dos negócios jurídicos benéficos. Para suplementar a sistemática legal vinculada à interpretação negocial, é perfeitamente possível que as partes possam definir, no próprio negócio jurídico, elementos interpretativos, com a fixação de regras de interpretação para o “preenchimento de lacunas e de integração dos negócios jurídicos diversas daquelas previstas em lei”, consoante se extrai do § 2º do art. 113 do Código Civil4, dispositivo também inserido pela lei 13.874/20195. Da resenha, tem-se que a interpretação do negócio jurídico, basicamente, está atrelada a critérios legais (= determinados pela lei) e a critérios voluntários (= previamente estipulados pelas partes).
Saliente-se que a proposta inserida no artigo 113, § 1º, inciso I, não é de todo inovadora, pois o comportamento das partes fazia parte do critério interpretativo que constava do rol do artigo 131 do Código Comercial, diploma que restou praticamente superado pelo Código Civil em vigor, já que se afirma a superação dos artigos 1º a 456 do texto legal comercialista. Na gaveta de número 3, do art. 131 da referida legislação, estava previsto que: “O facto dos contrahentes posterior ao contracto, que tiver relação com o objecto principal, será a melhor explicação da vontade que as partes tiverão no acto da celebração do mesmo contracto”.6
Nada obstante a revogação do artigo 131 do Código Comercial, a conduta das partes depois de concretizado o negócio jurídico não foi abandonada pela doutrina nacional como peça relevante à interpretação dos negócios jurídicos. Em ilustração, o tema está presente na parte final do Enunciado 409 da 5ª Jornada do Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, que possui a seguinte redação: “Os negócios jurídicos devem ser interpretados não só conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração, mas também de acordo com as práticas habitualmente adotadas entre as partes.” O referido posicionamento da doutrina prestigiava a opção de algumas nações que expressamente tratam do comportamento das partes como critério interpretativo dos negócios jurídicos. Seguindo tal linha, em exemplo, o assunto está na pauta do Código Civil de Portugal (art. 236º7).
De todo modo, com a (re)inserção expressa na legislação brasileira, certo é que o comportamento das partes integra atualmente o rol de mecanismos de interpretação do negócio jurídico, incorporando-se ao roteiro de critérios legais aplicáveis no sentido.8 Dito de outro modo, o tema fixado no inciso I, do § 1º, do artigo 113, do Código Civil, faz parte, como se vê, de fórmula legal (= critério fixado em lei) para a interpretação do negócio jurídico, não podendo, assim, o “comportamento das partes” sofrer desprezo por nenhum intérprete, inclusive pelo julgador chamado a decidir sobre a exegese que deve ser aplicada. Não é ocasional que a doutrina trate a hipótese legal analisada como a “regra da confirmação posterior”9, em demonstração clara de que se trata de situação incorporada na lei (ou seja, como critério legal) para a interpretação do negócio jurídico.
As breves linhas tracejadas permitem que algumas explorações interessantes possam ser feitas, valendo-se das premissas já fincadas e do próprio texto que foi empregado no artigo 113, § 1º, inciso I, do Código Civil. Diante do limitado espaço para o debate, trago 03 (três) questões para diálogo, embora o cardápio de assuntos seja muito mais variado.
3. Art. 113, § 1º, inciso I, e o venire contra fatcum proprium
Não é despropositado se afirmar que a vedação do venire contra fatcum proprium10 está contida dentro do inciso I, do § 1º, do artigo 113, do Código Civil, na medida em que o comportamento das partes será necessariamente analisado na interpretação do negócio jurídico. Inadmissíveis serão as condutas que destoem do cenário de confiança, sendo certo que o comportamento corresponde a elemento que permite examinar se as partes laboraram para concretizar as expectativas que foram criadas.
O dispositivo em voga poderá ser usado para coibir a contradição perpetrada por uma parte na sequência de atos posteriores à celebração do negócio jurídico, já que as condutas conflitantes não serão admitidas dentro de quadrante de expectativas que criam ambiência de confiança. Dessa forma, o inciso I, do § 1º, do artigo 113, do Código Civil terá especial importância para as relações contratuais, vedando-se a contradição das condutas dos contratantes em relação ao cenário de confiança gerado pela contratação. Assim, a regra legal, sob tal aspecto, não é apenas um dispositivo voltado à interpretação dos negócios jurídicos e ao sentido das suas disposições, mas também uma plataforma que permite a aplicação do comando de proibição do venire contra fatcum proprium no âmbito dos negócios jurídicos em geral, em especial os contratos.11
4. Art. 113, § 1º, inciso I, e o comportamento antecedente ao negócio jurídico
Apesar de o artigo de lei fazer alusão apenas ao comportamento das partes “posterior à celebração do negócio”, é inegável que a boa exegese do art. 113, § 1º, inciso I, do Código Civil, remete a análise toda cadeia de atos, retornado também aos antecedentes ao próprio negócio jurídico12. Há, na redação do artigo de lei, semelhante omissão que se nota em relação ao art. 422 do Código Civil13, que também não faz menção aos atos (= comportamentos) antecedentes à conclusão do contrato.
Sem prejuízo da omissão denunciada, o timão que fixa o bom rumo ao artigo 113, § 1º, inciso I, do Código Civil, envolve o comportamento completo das partes, de modo a incorporá-lo ao próprio negócio jurídico. É intuitivo (ou melhor, é imperativo) que os atos antecedentes não sejam desprezados para a missão interpretativa, pois estes, em boa parte das vezes, permitem aferir as reais expectativas dos negociantes, mormente em se tratando de contratos. Note-se, em detalhe, que a interpretação mais alargada da norma legal autorizará, inclusive, que o art. 113, § 1º, inciso I, do Código Civil, seja usado na aferição de responsabilidade pré-contratual, fortalecendo a presença da figura no nosso ordenamento jurídico.
5. Art. 113, § 1º, inciso I, e a presença de mais de um negócio jurídico entre as partes
Não é raro que as mesmas partes possuam vínculos jurídicos outros, atrelados a negócios jurídicos diversos, alguns com subordinação, sem prejuízo daqueles com autonomia (ainda que esta possa ser relativa). Com tal contexto, também não é invulgar que determinadas disposições contratuais sejam uniformes (ou ao menos assemelhadas) nos vários negócios jurídicos, mesmo que, repita-se, entre eles se note independência.
O comportamento das partes acerca de determinadas cláusulas contratuais em negócio jurídico pontual poderá criar expectativa para a(s) outra(s) parte(s) de que a mesma conduta seja adotada em todos os demais negócios, especialmente quando há identificações nas redações das disposições negociais. Desta feita, o art. 113, § 1º, inciso I, do Código Civil, aplicado à realidade contratual dos dias atuais, não pode desprezar que as partes poderão estar vinculadas por mais de um negócio jurídico, de modo que o comportamento em relação a cada um dos protagonistas se projetará, em expectativa, para os outros, notadamente quando se estiver diante de cláusulas contratuais com desenho simétrico ou com boa semelhança.14
6. Fechamento
Sem rebuços, há muitos outros assuntos importantes que gravitam em torno do art. 113, § 1º, inciso I, do Código Civil, reclamando trabalho e fôlego que, certamente, fogem às matrizes e objetivos do presente ensaio. Apenas em exemplificação simples, pode-se cogitar no transporte da regra legal, analisando o comportamento das partes para situações outras que não a relação propriamente negocial, extraindo da conduta das partes a identificação de posicionamentos jurídicos e os seus deveres correspondentes.
Em outra ilustração, no campo processual – com foco na produção da prova em juízo - a análise da aplicação do dispositivo será diferenciada, pois o objeto da prova será a apresentação dos fatos em cadeia, a fim de que a análise dos comportamentos respectivos permita a interpretação do negócio jurídico (e/ou de disposição específica) que se posta como objeto do litígio. Na exemplificação, o objeto da prova não será o comportamento em si, pois este é aferido pelo julgador, mas apenas os fatos que sucederam na cadeia dinâmica do negócio jurídico, já que a conduta neles impregnada faz parte do núcleo do art. 113, § 1º, inciso I, do Código Civil.
Como se vê, o art. 113, § 1º, inciso I, do Código Civil, contém palco para estudos variados, sendo importante desnudá-lo em todos os seus detalhes. Trouxe aqui ínfima contribuição, que apenas anuncia alguns pontos iniciais para debate mais horizontal e vertical sobre o assunto.
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*O estudo é resultado das incursões do grupo de pesquisa "Núcleo de Estudos em Processo e Tratamento de Conflitos” – NEAPI, vinculado à Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), cadastrado no Diretório Nacional de Grupos de Pesquisa do CNPq. O grupo é membro fundador da “ProcNet – Rede Internacional de Pesquisa sobre Justiça Civil e Processo Contemporâneo”. Trata-se de tese apresentada pelo autor e vinculada à sua cátedra em Direito Civil na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), trabalho este que foi apresentado no ano de 1964. Diante da sua importância, o texto vem sendo republicado pela Fundação Getulio Vargas, em formato de livro, desde 2006, com um total 16 (dezesseis) reimpressões até o ano de 2021.
1 Trata-se de tese apresentada pelo autor e vinculada à sua cátedra em Direito Civil na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), trabalho este que foi apresentado no ano de 1964. Diante da sua importância, o texto vem sendo republicado pela Fundação Getulio Vargas, em formato de livro, desde 2006, com um total 16 (dezesseis) reimpressões até o ano de 2021.
2 Mônica Yoshizato Bierwagen faz alusão às regras de interpretação explicitas e implícitas em sua obra Princípios e regras de interpretação dos contratos no novo Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 83-86.
3 Art. 114. Os negócios jurídicos benéficos e a renúncia interpretam-se estritamente.
4 Art. 113 (...) § 2º - As partes poderão livremente pactuar regras de interpretação, de preenchimento de lacunas e de integração dos negócios jurídicos diversas daquelas previstas em lei.
5 A interpretação com esteio na prévia vontade das partes está presente também quando estas, no próprio negócio jurídico, trazem a motivação que ensejou a disposição negocial, ou seja, lançam as justificativas que ensejam a cláusula e/ou elementos para sua própria aplicação.
6 Com semelhante observação: FORGIONI. Paula. A interpretação dos negócios jurídicos II: alteração do art. 113 do Código Civil. In: MARQUES NETO, Floriano Peixoto; RODRIGUES JR., Otavio Luiz; LEONARDO, Rodrigo Xavier. Comentários à Lei da Liberdade Econômica: Lei 13.874/2019. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 376.
7 Artigo 236.º - (Sentido normal da declaração). 1. A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoàvelmente contar com ele. 2. Sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida.
8 Bem próximo: GEDIEL, José Antônio Peres; CORRÊA, Adriana Espíndola. Interpretações: art. 113 do Código Civil. In: MARQUES NETO, Floriano Peixoto; RODRIGUES JR., Otavio Luiz; LEONARDO, Rodrigo Xavier. Comentários à Lei da Liberdade Econômica: Lei 13.874/2019. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 340.
9 OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de; COSTA-NETO, João. Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 255 – destaques que constam do original.
10 No tema, capital a seguinte leitura: SCHREIBER, Anderson. A proibição de comportamento contraditório. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.
11 O ponto também foi analisado e bem trabalhado por: TARTUCE, Flávio. Direito Civil: teoria geral dos contratos e contratos em espécie. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 139).
12 Igualmente: SCHREIBER, Anderson. Código Civil Comentado. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 90-91; e GEDIEL, José Antônio Peres; CORRÊA, Adriana Espíndola, op. cit., p. 341-342.
13 Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.
14 Bem próximo, confira-se: SCHREIBER, Anderson. Código Civil Comentado. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 91.