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Exceção de contrato não cumprido e renúncia: notas sobre os atos unilaterais do credor e as cláusulas solve et repete

Exceção de contrato não cumprido e renúncia: notas sobre os atos unilaterais do credor e as cláusulas solve et repete.

28/9/2020

A exceção de contrato não cumprido, também denominada pela doutrina de exceptio non adimpleti contractus, exceção de inexecução ou exceção de inadimplemento, pode ser conceituada como a "faculdade que tem uma das partes de recusar-se a cumprir a obrigação, quando a parte contrária, por sua vez, à sua não deu cumprimento"1. Prevista expressamente no art. 476 do Código Civil2, alude-se a essa figura jurídica a noção de direito potestativo3, atuando como remédio para o contratante que possui interesse na manutenção da relação obrigacional e no adimplemento da contraparte. Busca-se refletir, então, acerca da possibilidade do exercício de renúncia à oposição dessa exceção.

Afirma-se que a renúncia consiste em causa impeditiva da exceção de contrato não cumprido4. Em outros termos, o exercício de autonomia privada pelas partes, no bojo de uma relação sinalagmática, com o propósito de renunciar à possibilidade de oposição da exceção de contrato não cumprido não extingue essa exceção, apenas impede o seu exercício por parte do contratante que estaria na posição de excipiente.

A renúncia à exceção de contrato não cumprido pode se configurar de diversos modos, quais sejam de forma antecipada, no próprio contrato; no curso da relação obrigacional, por meio de ato unilateral de uma das partes; e depois de oposta a exceção, desde que antes do trânsito em julgado do provimento que reconhecer a exceção5.

Quanto à renúncia pactuada no bojo da relação contratual – seja no próprio contrato ou em seu respectivo aditivo –, a doutrina geralmente enuncia a cláusula solve et repete, que em sua concepção latina significa "pague e depois reclame". Importa observar, todavia, que tal cláusula pode se manifestar por arranjos contratuais os mais diversos e pode ter por objeto exceções muito variadas. Por essa razão, a restrição de seu  âmbito de atuação à exceção de contrato não cumprido não parece adequada, como não raramente se verifica na doutrina6.

Nesse contexto, a cláusula solve et repete "tem uma finalidade específica, qual seja limitar, em favor daquele a quem beneficia, a oponibilidade de exceções relativas à inexecução das obrigações contratuais, como é o caso da exceptio non adimpleti contractus"7. Dito de outra forma, a cláusula solve et repete consiste em "meio de autotutela no contrato bilateral, em favor da parte que tem a receber a prestação indispensável, a fim de impedir que a contraparte se exima de cumprir invocando a exceção"8.

Trata-se, portanto, de renúncia ao exercício da oponibilidade de uma exceção e não de renúncia ao crédito. Por essa razão, pode o contratante, impedido de opor a exceção e prejudicado pelo inadimplemento da contraparte, voltar-se contra o inadimplente para exigir o cumprimento da prestação ou as perdas e danos9. Essa renúncia gera, então, o efeito de impedir que o contratante prejudicado se recuse a cumprir a própria prestação10, mas não o impossibilita de perseguir o seu crédito pelos meios adequados. Assim, a cláusula solve et repete assegura ao contratante que dela se beneficiou "um fluxo contínuo das prestações a que tem direito, o que pode atender a diversos interesses negociais dignos de tutela"11.

Embora amplamente aceita doutrinariamente, a cláusula solve et repete, diferente do direito italiano12, não possui previsão legal na codificação civil brasileira. Ainda assim, é possível cogitar de sua aplicabilidade como resultado do exercício da autonomia privada, desde que observadas certas limitações tais como a observância dos deveres laterais da boa-fé objetiva, o respeito aos critérios de validade do negócio jurídico, bem como o exercício não abusivo da cláusula13.

Ainda sobre as limitações de aplicabilidade da cláusula solve et repete, podem-se reputar os contratos de adesão e os contratos de consumo. Quanto aos contratos de adesão, considerando-se especificamente a exceção de contrato não cumprido, pode-se alcançar a conclusão de que a cláusula solve et repete se amolda à causa de nulidade disposta no art. 424 do Código Civil14, tendo em vista que essa exceção consiste em remédio atribuído aos contratos sinalagmáticos15. Já em relação aos contratos de consumo, a inserção de cláusula solve et repete seria reputada nula por força do art. 51, I, do CDC16.

O exercício de renúncia à possibilidade de oponibilidade da exceção de contrato não cumprido também pode resultar de ato unilateral do contratante, seja expresso ou tácito. No primeiro caso, é possível vislumbrar a hipótese em que, diante de um inadimplemento, o contratante prejudicado pela falta da prestação comunique a contraparte informando que continuará cumprindo com a sua obrigação, a despeito do incumprimento do outro. A renúncia seria tácita, por outro lado, se o contratante, cientificado de forma antecipada pela contraparte de seu iminente descumprimento, ainda assim efetuasse normalmente o seu pagamento17.

Nesse contexto, Vitor Butruce observa que o não uso da exceção de contrato não cumprido não implica necessariamente em renúncia. Isso porque a exceção de contrato não cumprido consistiria em direito potestativo e, por essa razão, faculta-se ao seu titular o seu exercício no momento mais oportuno. Dessa forma, a tolerância ao inadimplemento não se iguala à renúncia à oposição da exceção de contrato não cumprido18. É o que se constata nos chamados contratos de duração, em que a parte excipiente por vezes, aceita o inadimplemento do outro contratante enquanto essa postura se mostra conveniente à persecução de seu interesse dentro do programa contratual globalmente considerado.

A renúncia à exceção de contrato não cumprido demonstra que as partes podem perseguir o resultado útil do contrato sem necessariamente lançarem mão do remédio previsto em lei. Embora o adimplemento reconhecidamente polarize a obrigação, a complexidade da relação contratual permite construir e modular os meios para alcançá-lo, de maneira que o próprio adimplemento passa a integrar uma equação mais ampla, em que se leva em conta a globalidade dos interesses subjacentes ao contrato. Uma vez mais, a leitura funcional se mostra imprescindível, ao permitir, de um lado, a identificação dos fins efetivamente perseguidos pela parte que renuncia e, do outro, a submissão da própria renúncia, enquanto expressão da autonomia privada, a um exame de conformidade com a ordem civil-constitucional.

*Jeniffer Gomes da Silva é mestranda em Direito Civil pela UERJ. Pesquisadora da Clínica de Responsabilidade Civil da UERJ. Pesquisadora do escritório Galdino & Coelho Advogados.

 

**Marcos de Souza Paula é mestre e doutorando em Direito Civil pela UERJ. Assessor do TJ/RJ. 

__________

1 DANTAS, San Tiago. Programa de direito civil: os contratos. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1978, v. 2, p. 188.

2 "Art. 476. Nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro".

3 Nesse sentido, v. BUTRUCE, Vitor Augusto José. A exceção de contrato não cumprido no Direito Civil brasileiro contemporâneo: funções, pressupostos e limites de um "direito a não cumprir". Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2009, p. 64 e FREITAS, Rodrigo Lima e Silva de. O locus de atuação da exceção de contrato não cumprido no ordenamento jurídico brasileiro. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, p. 53-54.

4 GAGLIARDI, Rafael Villar. A exceção de contrato não cumprido. Dissertação de Mestrado. São Paulo: PUC SP, 2006, p. 228. Em sentido contrário, Araken de Assis considera que a renúncia como uma das "causas autônomas de extinção da exceção de inadimplemento" (ASSIS, Araken de. In: ALVIM, Arruda; ALVIM, Thereza (Coords.). Comentários ao código civil brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 694).

5 ASSIS, Araken de. In: ALVIM, Arruda; ALVIM, Thereza (Coords.). Comentários ao código civil brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 695-696.

6 Para uma análise pormenorizada da matéria e dessa crítica, seja consentido remeter a SILVA, Rodrigo da Guia; SILVA, Jeniffer Gomes da. Cláusulas solve et repete: perspectivas de atuação da autonomia privada na (de)limitação das exceções oponíveis pelo devedor. Revista Eletrônica da PGE RJ. Jan.- abr./2020, v. 3, n. 1. Disponível aqui.

7 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Contratos e Obrigações – Pareceres: de acordo com o Código Civil de 2002, Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 472.

8 AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. In: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (Coord.). Comentários ao novo código civil: da extinção do contrato. Rio de Janeiro: Forense, 2011, v. 6, t. 2, p. 821-822.

9 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. São Paulo: Atlas, 2014, p. 414.

10 BUTRUCE, Vitor Augusto José. A exceção de contrato não cumprido no Direito Civil brasileiro contemporâneo: funções, pressupostos e limites de um “direito a não cumprir”. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2009, p. 167.

11 BUTRUCE, Vitor Augusto José. A exceção de contrato não cumprido no Direito Civil brasileiro contemporâneo: funções, pressupostos e limites de um "direito a não cumprir". Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2009, p. 171.

12 Na codificação civil italiana, as cláusulas solve et repete são previstas no art. 1.462: "Cláusula limitativa da proponibilidade de exceções. A cláusula pela qual se estabelece que uma das partes não pode opor exceções a fim de evitar ou de retardar a prestação devida, não tem efeito para as exceções de nulidade, de anulabilidade e de rescisão do contrato. Nos casos em que a cláusula for eficaz, se o juiz achar que concorrem motivos graves, pode, apesar da circunstância, suspender a condenação, impondo, quando for o caso, uma caução" (tradução livre do original).

13 Miguel Maria de Serpa Lopes conclui pela admissibilidade da cláusula solve et repete no direito brasileiro, desde que ressalvadas algumas limitações: "(...) a referida cláusula não pode ser entendida deslimitadamente, mas sim guardadas certas reservas, sobretudo no tocante à questão da nulidade, anulabilidade e precipuamente em relação ao dolo. Consideramos, mesmo, que a omissão da nossa ordem jurídica a esse respeito pode ser perfeitamente suprida obedecendo-se à estrutura que vem de lhe dar o atual Código Civil italiano (...)" (LOPES, Miguel Maria de Serpa. Exceções substanciais: exceção de contrato não cumprido, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1959, p. 334).

14 "Art. 424. Nos contratos de adesão, são nulas as cláusulas que estipulem a renúncia antecipada do aderente a direito resultante da natureza do negócio".

15 Em sentido semelhante, manifesta-se João Pedro de Biazi: "Em contratos por adesão, a cláusula solve et repete é inválida por incidência do artigo 424 do Código Civil, bem como por incidência da cláusula geral de boa-fé, que impõe a preservação de regras que assegurem o equilíbrio mínimo da relação negocial" (BIAZI, João Pedro de. A exceção de contrato não cumprido no direito privado brasileiro. Rio de Janeiro: GZ, 2019, p. 241).

16 "Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: I - impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer natureza dos produtos e serviços ou impliquem renúncia ou disposição de direitos. Nas relações de consumo entre o fornecedor e o consumidor pessoa jurídica, a indenização poderá ser limitada, em situações justificáveis;".

17 A situação é bem exemplificada por Vitor Butruce: "Imagine-se situação em que um empreiteiro deixe de concluir tempestivamente certa etapa do cronograma de uma empreitada, por encontrar-se em dificuldades financeiras. Haveria renúncia expressa à exceptio se o dono da obra comunicasse à contraparte, mediante correspondência, que não suspenderia seus pagamentos periódicos para não o conduzir à ruína. Diante da mesma inadimplência, haveria renúncia tácita, por exemplo, se o empreiteiro desse ciência ao dono da obra sobre o iminente descumprimento do prazo e este, verificado o inadimplemento, solicitasse emissão de fatura para providenciar o pagamento da prestação vencida (embora inexigível, dado o inadimplemento). Também o próprio cumprimento da prestação, antecipado ou em conformidade ao programa contratual, é considerado por alguns autores como uma espécie de renúncia tácita ao exercício da exceptio". (BUTRUCE, Vitor Augusto José. A exceção de contrato não cumprido no Direito Civil brasileiro contemporâneo: funções, pressupostos e limites de um "direito a não cumprir". Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2009, p. 167).

18 BUTRUCE, Vitor Augusto José. A exceção de contrato não cumprido no Direito Civil brasileiro contemporâneo: funções, pressupostos e limites de um "direito a não cumprir". Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2009, p. 168.

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Eroulhts Cortiano Jr. é professor da Faculdade de Direito da UFPR. Doutor em Direito pela UFPR. Pós-doutor em Direito pela Universitá di Torino e pela Universitá Mediterranea di Reggio Calabria. Conselheiro Estadual da OAB/PR. Secretário-geral do IBDCONT. Advogado em Curitiba/PR.

Flávio Tartuce é pós-doutor e doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP. Professor Titular permanente e coordenador do mestrado da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor e coordenador do curso de mestrado e dos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD. Patrono regente da pós-graduação lato sensu em Advocacia do Direito Negocial e Imobiliário da EBRADI. Diretor-Geral da ESA da OABSP. Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família em São Paulo (IBDFAMSP). Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico.

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