Migalhas Contratuais

Planejamento patrimonial e o contrato de doação

Planejamento patrimonial e o contrato de doação.

3/8/2020

Texto de autoria de Felipe Quintella

Considerações iniciais

No Brasil, o contrato de doação constitui, sem dúvida, uma das ferramentas mais utilizadas de planejamento patrimonial e sucessório. Minha atuação na área, como advogado, como professor e como pesquisador, não me deixa dúvida disso.

Porém, também não tenho dúvida de que o contrato de doação ainda precisa de mais cuidados por parte da comunidade jurídica em um sentido amplo: autores, advogados, juízes e legisladores.

Espero, neste breve trabalho, destacar três pontos fundamentais, que requerem atenção, fazendo uma síntese do conteúdo que estou desenvolvendo no Curso de Direito Patrimonial, o qual está em fase de elaboração. São pontos que, novamente, como advogado, como professor e como pesquisador, destacam-se quanto a aspectos teóricos e práticos.

Primeiramente, é preciso lembrar que, conforme as regras estabelecidas pelo Código Civil de 2002, as doações feitas por quem posteriormente morre deixando herdeiros necessários representa sempre adiantamento de herança. Explicarei, adiante, na seção 1, o porquê da ressalva quanto a morrer deixando herdeiros necessários.

Ademais, é preciso observar que, ao considerar o contrato de doação como adiantamento de herança, o Código Civil brasileiro distingue duas hipóteses: a da doação como adiantamento de legítima (art. 544), e a da doação como adiantamento de parte disponível (art. 549). Explicarei essa distinção na seção 2.

Outro ponto problemático está no fato de que, como se sabe, frequentemente o Direito brasileiro se inspira no Direito estrangeiro — em geral, no Direito europeu. O legislador e a doutrina fazem isso habitualmente, e, por vezes, também os Tribunais Superiores. E, quanto à doação, essas ideias colhidas fora do Direito pátrio não foram bem costuradas pelo Código Civil. Temos um sistema misto, e truncado. Explicarei esse ponto na seção 3.

Antes de examinarmos os três pontos, no entanto, é necessária uma ressalva: este trabalho contém reflexões teóricas com preocupação prática, para contribuir para o desenvolvimento da cultura do planejamento patrimonial no nosso país. Logo, as reflexões são todas de lege lata, ou seja, sobre o Direito que temos em vigor, e não de lege ferenda, sobre como gostaríamos de que o Direito fosse.

1 Por que a existência de herdeiros necessários ao tempo da abertura da sucessão é que determina o caráter de adiantamento de herança da doação?

Como explicarei melhor na seção 2, são os arts. 544 e 549 do Código Civil os dispositivos legais que atribuem à doação o caráter de adiantamento de herança. Porém, como afirmei nas considerações iniciais, somente serão consideradas adiantamento de herança as doações feitas por doador que falecer deixando herdeiros necessários, ainda que tal esclarecimento não esteja expresso na lei.

Por quê?

O Direito brasileiro, diversamente do que ocorre em alguns outros países, distingue as doações — contratos —, dos legados — disposições testamentárias. E, por isso, somente se preocupa com efeitos sucessórios da doação para proteger a legítima dos herdeiros necessários.

A legítima, conforme se depreende dos arts. 1.789 e 1.846 do Código Civil, constitui a parcela da herança — hoje, 50% — que a lei atribui aos chamados herdeiros necessários ou legitimários (ou, ainda, reservatários). Por esse motivo, não pode ser objeto de testamento, cabendo ao testador a liberdade de testar apenas quanto à outra metade da herança, denominada parte disponível.

Os herdeiros necessários, atualmente, segundo o art. 1.845, são os descendentes, os ascendentes e o cônjuge, sendo, ainda, controvertida a situação do companheiro, vez que o STF, ao equiparar a sucessão do cônjuge à do companheiro, não tratou expressamente do assunto1.

Ocorre que, para proteger a sucessão dos herdeiros necessários, evitando a denominada fraude à legítima, o Código Civil houve por bem atribuir efeitos sucessórios à doação. Isso para impedir que aquele que gostaria de beneficiar mais um filho que outro, por exemplo, e que não se conforma com a limitação à liberdade de testar nos limites da parte disponível, fizesse em vida doações para beneficiar o predileto, em detrimento do outro. Ainda que a herança somente surja com a morte e que, consequentemente, só se possa falar em legítima e em parte disponível após a abertura da sucessão, a lei brasileira projeta efeitos sucessórios antecipados à doação.

Mas, como a ideia é proteger a legítima, e esta só surge efetivamente quando o autor da herança falece deixando herdeiros necessários, somente nessa hipótese é que serão confirmados os efeitos sucessórios projetados antecipadamente à doação. Não se pode esquecer, porém, que a maior parte dos brasileiros morre deixando herdeiros necessários

2 Como se distinguem o adiantamento de legítima e o adiantamento de parte disponível?

Conforme o art. 544 do Código Civil, consideram-se adiantamento de legítima as doações de ascendente a descendente, ou de um cônjuge a outro. Vale destacar, mais uma vez, que ainda não está resolvida a situação do companheiro; se este vier a ser considerado herdeiro necessário por alteração legislativa, ou por decisão do STF, também as doações de um companheiro a outro terão que ser consideradas adiantamento de legítima.

As doações consideradas adiantamento de legítima, conforme o art. 2.002, devem ser conferidas no inventário do doador. É o que se denomina colação. Para que não haja dúvida, o art. 2.003 esclarece que a finalidade da colação é justamente igualar as legítimas dos descendentes e do cônjuge sobrevivente.

Em tempo: apesar de o art. 544 não fazer tal ressalva, somente se consideram adiantamento de legítima as doações feitas aos descendentes chamados à sucessão por direito próprio. A própria lógica do sistema embasa tal conclusão: não são consideradas adiantamento de legítima as doações feitas a descendentes que não sejam chamados à sucessão, ou que sejam chamados por direito de representação, ou de transmissão, porque tais descendentes não têm direito à legítima! Quando herdam por representação ou transmissão, herdam a legítima do herdeiro que representam, ou que lhes transmitiu, e, por isso, devem colacionar as doações recebidas pelo representado, ou pelo transmitente. A parte inicial do art. 2.002, ao impor a obrigação de colacionar aos “descendentes que concorrerem à sucessão do ascendente comum”, bem como a regra do art. 2.009, no sentido de que os netos, sendo chamados à sucessão por direito de representação, somente estão obrigados à colação das doações recebidas pelo representado, confirmam a conclusão.

O art. 549, por sua vez, estabelece a nulidade das doações que ultrapassarem a metade disponível do doador, no momento da doação. Embora essa linguagem não seja frequentemente utilizada — ainda —, tais doações são consideradas adiantamento de parte disponível. Tal conclusão é inquestionável ao se verificar que o critério para examinar a validade total, ou a invalidade parcial da doação, é justamente o do montante de que o doador poderia, naquele momento, dispor em testamento.

Ademais, conforme o art. 2.005, pode o doador, no instrumento da doação, ou em testamento, dispensar os donatários que receberam adiantamento de herança da respectiva conferência no inventário — da colação. Nos próprios termos do art. 2.005, a ideia seria a de que tais doações sairiam da parte disponível do doador. Ou seja, trata-se, também nessa hipótese, de adiantamento de parte disponível, e não de legítima.

Em resumo, pois, são consideradas adiantamento de legítima as doações de ascendente aos descendentes chamados à sucessão por direito próprio, bem como aos descendentes representados ou transmitentes, ou de um cônjuge a outro, sem dispensa de colação; são consideradas adiantamento de parte disponível, por sua vez, as doações a quem não seja cônjuge ou descendente chamado à sucessão por direito próprio, ou que não seja representado ou transmita o direito à sucessão aberta, bem com as feitas aos que sejam, mas que tenham sido dispensadas da colação.

O fato de representarem adiantamento de legítima, por si só, jamais interfere na validade de tais doações. Sua eficácia é que poderá ser impactada. Em outras palavras, as doações com adiantamento de legítima sujeitam-se à conferência no inventário do doador — à colação —, o que se dá no plano da eficácia, e não no plano da validade.

Já as doações com adiantamento de parte disponível sujeitam-se a exame na plano da validade, vez que a lei estabelece a nulidade do excesso, o qual, posteriormente, será resolvido no plano da eficácia, por meio da redução. E, como o critério para se apurar o excesso é o da parte disponível calculada ao tempo da doação, a discussão, normalmente, requer dilação probatória, razão pela qual, em geral, não é admitida no bojo do inventário, demandando ação própria.

3 Quais os desafios do Código Civil brasileiro quanto à disciplina da doação como adiantamento de herança?

O primeiro desafio, que já vem do Código Civil de 1916, consiste nos diferentes critérios estabelecidos para o exame das doações que configuram adiantamento de legítima e das doações que configuram adiantamento de parte disponível.

Conforme o art. 2.002, a conferência das doações consideradas adiantamento de legítima — a colação — é feita no inventário, após, pois, a morte do doador.

Dentro deste tema específico, um outro desafio consiste nos modos de se proceder à colação, vez que o Código de Processo Civil de 2015 derrogou tacitamente regras do Código Civil de 2002, repristinando regras do Código de Processo Civil de 1973: o Código de 2002 mandava fazer a colação por estimação, e pelo valor da época da doação (arts. 2.002 e 2.004); os Códigos de Processo de 1973 e de 2015 mandam fazer a colação em substância, se o donatário ainda tiver o bem doado ao tempo da morte do doador, e por estimação, pelo valor da época da abertura da sucessão, se o donatário não mais tiver o bem doado (arts. 1.014, caput e parágrafo único, e 639, caput e parágrafo único, respectivamente).

O assunto é bastante complexo, e ainda não tão bem explorado quanto precisa ser.

Quanto às doações que implicam adiantamento de parte disponível, por sua vez, o Código não esclarece — como fazem os de outros países — em que momento se poderia discutir o eventual excesso na doação — a denominada doação inoficiosa, que, na verdade, constitui apenas uma parte da doação, correspondente ao excesso. Há quem entenda que a discussão pode ser feita desde a doação, e há quem entenda que a discussão só faz sentido depois de aberta a sucessão. Doutrina e jurisprudência se dividem quanto ao tema.

Além disso, independentemente de quando se suscita a discussão, o art. 549 estabelece como parâmetro para verificar se houve ou não excesso na doação o patrimônio do doador ao tempo da doação: a doação integralmente válida não pode exceder a metade de que, naquele momento, o doador poderia dispor em testamento… Isso quer dizer que a conferência do adiantamento de parte disponível não é feita com base na verdadeira parte disponível, aquela que é calculada após a liquidação da herança, depois de aberta a sucessão. Por si só, esse fato já torna o tema intrincado. O Código Civil francês, por exemplo, usa como critério, diversamente, a verdadeira parte disponível (art. 913).

Mas, para piorar, o Código de 2002, inspirado, sobretudo, pelo Códigos Civis francês e português, estabeleceu, no art. 2.007, regras sobre como se deve realizar a redução do excesso da doação inoficiosa. O Código de 1916 não o fazia… E ocorre que nem o Código francês, nem o Código português, consideram inoficiosa a doação que ultrapassa a parte disponível calculada ao tempo da liberalidade, como faz o Código brasileiro…

Na pesquisa jurisprudencial que estou realizando para o Curso de Planejamento Patrimonial, ainda não encontrei julgados discutindo as regras — provavelmente, por serem novas, e complexas.

Por exemplo — para não estender demais este trabalho, que tem que ser breve —, veja-se que o § 2º do art. 2.007 manda fazer a redução “em espécie” — querendo dizer, na verdade, em substância —, e por aplicação das regras sobre a redução das disposições testamentárias, as quais sabemos que se encontram nos arts. 1.967 e 1.968. Por mais que a aula sobre redução do excesso nas disposições testamentárias seja uma das que mais gosto de dar, todo semestre, na disciplina do Direito das Sucessões, reconheço que o assunto é complexo, e muitas vezes até pouco explorado em obras sobre Sucessões, que dirá em obras sobre Contratos…

Por fim, veja-se que o § 4º do art. 2.007 trata de redução das doações por ordem cronológica, como manda a parte final do art. 923 do Código Civil francês, esquecendo-se, todavia, de que o critério brasileiro considera cada doação separadamente, e a parte disponível calculada no momento da liberalidade, e não a soma das doações, e a verdadeira parte disponível, calculada após a abertura da sucessão, como o Código francês. A meu ver, não há como aplicar, no Direito brasileiro, a regra do art. 2.007, § 4º, do nosso próprio Código Civil! Foi mal importada pelo Código de 2002, e não se encaixa no sistema que o nosso Código estabeleceu desde o de 1916, e que o de 2002 não ajustou…

Considerações finais

O texto já está extenso demais. Como eu disse nas considerações iniciais, a ideia foi a de levantar a discussão de três pontos fundamentais referentes ao planejamento patrimonial das doações, apresentando um brevíssimo resumo do conteúdo que estou desenvolvendo para o Curso de Planejamento Patrimonial.

Estou bem certo de que o IBDCONT constitui o espaço ideal para os debates sobre os temas aqui suscitados, para o desenvolvimento de soluções, e para a necessária difusão e para o imprescindível fortalecimento da cultura de planejamento patrimonial no Brasil, como uma das saídas para reduzir a litigiosidade e aumentar a segurança.

*Felipe Quintella é doutor, mestre e bacharel em Direito pela UFMG. Professor da Faculdade de Direito Milton Campos e do Ibmec. Autor do Curso de Direito Civil com Elpídio Donizetti. Membro do IBDCONT, do IBDCivil, do IBDFAM e do IBERC. Advogado na área de planejamento patrimonial. Instagram @prof.felipequintella.

__________

1 Eu, particularmente, entendo que nem o cônjuge, nem o companheiro precisariam ser herdeiros necessários, mas, examinando os fundamentos determinantes lançados nos votos dos Ministros do STF que votaram pela inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil, chego à conclusão de que o companheiro também se equiparou ao cônjuge quanto à condição de herdeiro necessário.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Coordenação

Eroulhts Cortiano Jr. é professor da Faculdade de Direito da UFPR. Doutor em Direito pela UFPR. Pós-doutor em Direito pela Universitá di Torino e pela Universitá Mediterranea di Reggio Calabria. Conselheiro Estadual da OAB/PR. Secretário-geral do IBDCONT. Advogado em Curitiba/PR.

Flávio Tartuce é pós-doutor e doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP. Professor Titular permanente e coordenador do mestrado da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor e coordenador do curso de mestrado e dos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD. Patrono regente da pós-graduação lato sensu em Advocacia do Direito Negocial e Imobiliário da EBRADI. Diretor-Geral da ESA da OABSP. Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família em São Paulo (IBDFAMSP). Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico.

José Fernando Simão é professor da USP. Advogado.

Luciana Pedroso Xavier é professora da Faculdade de Direito da UFPR. Doutora e Mestre em Direito pela UFPR. Advogada sócia da P.X Advogados.

Marília Pedroso Xavier é professora da graduação e da pós-graduação stricto sensu da Faculdade de Direito da UFPR. Doutora em Direito Civil pela USP. Mestre e graduada em Direito pela UFPR. Coordenadora da Escola Superior de Advocacia da OAB/PR. Diretora do Instituto Brasileiro de Direito Contratual - IBDCONT. Mediadora. Advogada do PX ADVOGADOS, com especialidade em Famílias, Sucessões e Empresas Familiares.

Maurício Bunazar é mestre, doutor e pós-doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Diretor executivo e fundador do IBDCONT. Professor do programa de mestrado da Escola Paulista de Direito. Professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie e do IBMEC-SP.