Texto de autoria de João Hora Neto
"A vida não é boa nem má, apenas arbitrária..."
Joseph Brodsky
Introdução
Induvidosamente, a discussão acerca da pandemia Covid-19 é de ingente importância, à vista dos seus reflexos no mundo jurídico; afinal, múltiplas e variadas relações contratuais são atingidas, causando insegurança e frustração aos contratantes.
Re vera, não se sabe ao certo qual o instituto jurídico que caracteriza o fenômeno pandêmico e, a partir disso, qual o instrumental jurídico aplicável ao conflito contratual, ou seja, se é caso de revisão ou de resolução (extinção).
Este breve estudo argumenta que a pandemia Covid-19 é um fato jurídico, classificando-a como um fortuito interno humano, por decorrer da atividade humana ao longo da história, bem como aponta que os riscos pandêmicos devem ser arcados pelo contratante mais forte, com base na Teoria do Risco.
Também vaticina que, na sociedade pós-moderna do século XXI (massificada, plural, complexa), uma nova realidade contratual se impõe, representada pelos contratos empresariais e existenciais, a exigir soluções jurídicas distintas, inclusive por força da Lei da Liberdade Econômica em consonância com os princípios sociais do contrato.
O estudo discute, enfim, se a revisão deve ser a regra ou a exceção a ser adotada ou, até mesmo, se a revisão é a única solução possível.
1. A miséria do coronavírus, a responsabilidade civil e o fortuito interno
Em sede de responsabilidade civil, há dois pressupostos inafastáveis – nexo e dano – posto que a culpa é atinente apenas à responsabilidade civil aquiliana (subjetiva), mas não ocorrente na responsabilidade objetiva.
O nexo causal é uma relação de causa e efeito, ou seja, é um elo naturalístico entre a conduta e o resultado, significando um vínculo entre um determinado comportamento e um evento, permitindo concluir se a ação ou omissão do agente foi ou não a causa do dano. Contudo, não se trata apenas de uma compreensão naturalística (leis físicas) entre causa e efeito, haja vista que, além da identificação do elo naturalístico, faz-se imperioso a presença do liame jurídico, com base em juízo de probabilidade, uma vez que nem toda condição é causa do evento.
No Brasil, há algumas teorias acerca do nexo causal, sendo a teoria da causalidade adequada a mais aceita, consoante art.403 Código Civil.
De forma unânime, informa a doutrina que o nexo causal é um pressuposto indelével da responsabilidade civil em geral, quer seja subjetiva ou objetiva, contratual ou extracontratual, apenas mitigado em situações especialíssimas, como é a hipótese da responsabilidade fundada no risco integral.
Também há situações em que o nexo causal é rompido, afastando o dever de indenizar, como, por exemplo, nas hipóteses da culpa exclusiva da vítima, caso fortuito e força maior.
Em relação ao caso fortuito e a força maior, a despeito de persistir confusão na doutrina acerca da sua distinção, é patente e meridiano atestar-se que são causas exonerativas da responsabilização civil (civil ou consumerista), com base na regra do art. 393 § único do Código Civil, não obstante sem previsão no Código do Consumidor.
Grosso modo, entende-se por caso fortuito os acontecimentos advindos da ação humana (greve, conflito armado), enquanto a força maior decorre dos acontecimentos da Natureza (act of God) (furações, tempestades, maremotos etc.). A partir de tal compreensão e à luz da melhor doutrina (CAVALIERI FILHO, Sergio, 2018), o caso fortuito decorre de um evento imprevisível e inevitável, enquanto a força maior deriva de um acontecimento previsível, porém inevitável, concluindo-se assim que a imprevisibilidade é o elemento indispensável para a caracterização do caso fortuito, enquanto que a inevitabilidade o é da força maior.
Demais disso, anote-se que o caso fortuito tem duas variantes doutrinárias, ou seja -- fortuito externo e fortuito interno -- sendo que a primeira implica no rompimento do nexo causal, mas a segunda não (fortuito interno), pois constitui risco ligado à atividade do sujeito responsável, sendo conexo ao desempenho do seu empreendimento.
Em essência, enquanto o fortuito externo afasta o dever de indenizar, pois o dano não guarda relação com a atividade desenvolvida pelo ofensor, o fortuito interno gera o dever de indenizar, uma vez que o dano causado tem relação com a organização da empresa, isto é, com a atividade desenvolvida pelo fornecedor, cuja atividade se torna impossível exercer sem abarcar esses riscos.
Conclui-se, pois, que o fortuito interno não exclui a responsabilidade civil, mormente porque, apesar de inevitável a ocorrência do risco, as suas consequências são evitáveis, pelo menos em larga escala, com base no estado da técnica (avanço técnico/científico) a cargo do detentor do monopólio da atividade.
2. A pandemia Covid-19 e o fortuito interno humano
O Direito existe para resolver o conflito humano, sendo um produto cultural da humanidade e não uma abstração celestial, como assim conclui o genial sergipano Tobias Barreto: "O Direito não é filho do céu. É um produto cultural e histórico da evolução humana".
A miséria pandêmica é uma realidade inconteste, a exigir uma solução jurídica iluminada pela legalidade civil-constitucional.
O novo coronavírus – esse inimigo oculto – tem a natureza jurídica de um fortuito interno que diz respeito à Humanidade em geral, ou seja, à própria sobrevivência do ser humano.
Nesta pesquisa, sustenta-se que a milenar existência humana no planeta gerou a Covid-19, o que significa dizer que a pandemia é um efeito e não uma causa.
Ao estudo não interessa a discussão se o coronavírus tem origem em morcegos chineses contaminados (o que seria a hipótese de força maior) e muito menos que é produto da mente sórdida e demoníaca de algum cientista, que, por iniciativa própria ou a mando político-ideológico, criou o vírus mortal (o que seria a hipótese de caso fortuito externo).
Viver é arriscar-se!
E foi o risco da ação humana no planeta Terra, permeada de conflitos de variados matizes, quem gerou o novo coronavírus – o fortuito interno humano – que é inerente à vida humana em si, e que, ipso facto, faz persistir o dever de indenizar, uma vez que a pandemia não é causa excludente de responsabilidade civil.
3. A classificação moderna do contrato
Impõe-se, hodiernamente, uma renovada mentalidade civil constitucional, voltada para a aplicação direta e efetiva dos valores e princípios da Constituição, não apenas na relação Estado-indivíduo, mas também na relação entre particulares (MORAES, Maria Celina Bodin de, 2016), com a observância, por exemplo, de que o princípio da força obrigatória dos contratos (pacta sunt servanda) pode ser relativizado, uma vez que o contrato (obrigação) deve ser compreendido como um processo dinâmico, complexo, de cooperação e confiança (COUTO E SILVA, Clóvis V.do, 2018), também voltado para a materialização do programa constitucional.
No mundo atual há três contratos bem distintos – civilístico, empresarial e de consumo – cuja natureza jurídica implica na adoção de um direito civil geral ou comum (contrato civil) ou de dois direitos especiais (o direito empresarial e o direito do consumidor), todos eles, contudo, operacionalizados à luz da teoria do ‘diálogo das fontes’.
A moderna classificação aponta a existência de outras espécies contratuais, largamente entrelaçadas entre si, à vista da superação da dicotomia direito público/direito privado, além da múltipla e variada gama de relações jurídicas insertas na sociedade contemporânea.
4. O contrato empresarial e o contrato existencial
Ainda que reconheça a serventia da classificação clássica dos contratos dominante no século XX, mormente a distinção entre contrato paritário e de adesão, sugere Antonio Junqueira de Azevedo (2010) a adoção de uma nova classificação contratual para o século XXI, com a distinção entre contrato empresarial e contrato existencial.
À luz da dicotomia proposta, entende-se por contrato empresarial aquele celebrado entre empresários, pessoas físicas ou jurídicas, ou, ainda, entre um empresário e um não-empresário que, contudo, naquele contrato visa obter lucro, ressaltando-se que no contrato empresarial “ambas [ou todas] as partes têm no lucro o escopo de sua atividade” (FORGIONI, Paula A., 2019, p. 33). Já o contrato existencial é aquele firmado entre pessoas não empresárias ou, como é frequente, em que somente uma parte é não-empresária, desde que não pretenda transferir, com intuito de lucro, os efeitos do contrato a terceiros (AZEVEDO, Antonio Junqueira de, 2010).
Como contrato empresarial, exemplifica-se todos os contratos que tenham por fim precípuo a obtenção do lucro, isto é, os contratos de franquia, de agência, de distribuição, de locação comercial, de consórcio interempresarial, de engineering, de compra de matéria prima, de fornecimento, de transporte, contratos bancários, dentre outros.
Já o contrato existencial exemplifica-se como todo contrato de consumo em que o consumidor é o destinatário final ou não vise a obtenção de lucro, à luz da Teoria Finalista, além do contrato de trabalho, o de aquisição da casa própria, o de locação da casa própria, o de conta corrente bancária, dentre outros, figurando como seu objeto característico bens ou serviços destinados à subsistência da pessoa humana, isto é, que integram o património mínimo existencial do ser humano (alimentação, moradia, educação, saúde, dentre outros) (GALVANO, Renato Rodrigues Costa, 2019).
Na doutrina, aponta-se um critério bastante diferenciador entre ambos, isto é, a intenção ou não de lucro, assim resumido: nos contratos empresariais todas as partes teriam a intenção de lucro e, nos contratos existenciais, apenas uma das partes não teria intenção de lucro (EROLES, Pedro, 2018).
Um outro critério deveras diferenciador diz respeito a maior ou menor interferência judicial, haja vista que no contrato empresarial a intervenção judicial deve ocorrer de forma mais branda, em respeito ao pactuado pelas partes (pacta sunt servanda), não sendo possível a revisão judicial como regra, mas apenas em caráter excepcional, conforme art. 421 § único do Código Civil, alterado pela Lei da Liberdade Econômica. Já no contrato existencial, por interpretação inversa, a interferência judicial deve ocorrer com maior intensidade, em homenagem aos princípios sociais do contrato (função social, boa fé objetiva e equilíbrio contratual), para fins de tutelar a dignidade da pessoa humana, cujo contratante não pode ser visto como um mero interesse 'descartável'.
Demais disso, a boa fé objetiva deve incidir com graduação variável, posto que nos contratos empresariais pode haver uma maior dispositividade dos deveres anexos de conduta, com menor incidência da boa fé objetiva em respeito ao pact sunt servanda; já nos contratos existenciais, pode haver uma menor dispositividade dos deveres anexos e uma maior incidência da boa fé objetiva.
5 A Covid-19 e os contratos empresariais e existenciais
Como dito, a pandemia não faz romper o nexo causal.
Baseado na Teoria do Risco, entende-se que a parte mais forte da relação contratual é quem deve assumir os riscos, indenizando os danos decorrentes, por ser a detentora do monopólio privado do serviço ou do produto, quer seja por desenvolver uma atividade ou uma profissão que não aufira proveito econômico (risco criado), quer seja por desenvolver uma atividade que tire proveito econômico ou lucro (risco proveito).
Tal compreensão também se funda no brocardo que diz, onde está o ganho, aí reside o encargo (ubi emolumentum, ibi onus), ou, ainda, quem aufere o bônus suporta o prejuízo, de sorte que a mesma solução é extensível às duas outras modalidades de risco (risco profissional e risco integral).
O estudo não adota uma solução única e generalizante, como se uma panaceia aplicável a todo e qualquer contrato, indistintamente, até porque há uma gama infinda de espécies contratuais, típicas e atípicas, o que dificultaria em muito uma solução planificada e universal.
Para a solução do caso concreto, também sob a égide da Lei da Liberdade Econômica (lei 13.874/2019), entende-se que o primeiro passo adotável é a identificação da natureza jurídica do contrato em litígio – se empresarial ou existencial – posto que, a partir disso, advirão soluções jurídicas diversas.
Nos contratos empresariais a interferência estatal (judicial) deve ser mínima (art. 421 § único CC), sendo permitida a sua revisão de maneira excepcional e limitada (art. 421-A, III CC), além de ser possível a resolução (extinção) (art. 421-A I CC), desde que, em ambas as hipóteses, estejam em conformidade com as regras contratuais contratadas (pacta sunt servanda).
Portanto, nos contratos empresariais, doravante classificados como contratos paritários (art. 421-A CC), a regra é a prevalência da irretratabilidade das convenções (pacta sunt servanda), de sorte que a intervenção judicial, em caso de desequilíbrio econômico do contrato, deve ocorrer com esteio na Teoria da Onerosidade Excessiva prevista no CDC (art. 6º, V), aplicável em sede de 'diálogo das fontes'. Malgrado isso, entende-se que a interferência judicial deve preferir a revisão à resolução, a fim de salvar o contrato, em homenagem ao princípio da conservação dos contratos (Enunciado n. 22 da I Jornada de Direito Civil), pertinente à função social dos contratos, sob sua eficácia interna.
Já nos contratos existenciais, por interpretação inversa ao novel princípio da intervenção mínima no contrato (art. 421 § único CC), alterado pela Lei da Liberdade Econômica, que disciplinou os contratos empresariais -- entende-se que a interferência judicial deve ocorrer com maior intensidade, em respeito aos princípios sociais do contrato (função social, boa fé objetiva e equilíbrio contratual), para fins de tutelar a dignidade da pessoa humana, cujo contratante é a parte vulnerável, na acepção técnica, fática, jurídica ou informacional.
Ademais, considerando que o contrato existencial é eminentemente de consumo, impõe-se a aplicação genuína da Teoria da Onerosidade Excessiva prevista no CDC (art. 6º V), que adota a revisão como única hipótese possível, à luz do princípio da conservação do contrato, haja vista que o direito à revisão é uma prerrogativa de ambos (consumidor e fornecedor), desde quando a onerosidade excessiva seja superveniente à formação do contrato.
Em suma: em sede de contratos existenciais, a revisão contratual deve ser a única hipótese permitida, por interpretação contrária ao disposto no art. 421 § único CC, uma vez que a intervenção mínima prevista na Lei da Liberdade Econômica, bem como a excepcionalidade da revisão contratual, somente é aplicável aos contratos empresariais, profissionais ou de lucro.
Considerações finais
Na compreensão de que a pandemia Covid-19 é um fato jurídico, uma vez que repercute no universo dos contratos, o estudo a classificou como um fortuito interno humano, posto que advindo da atividade humana ao longo da história, não implicando em rompimento do nexo causal.
Argumentou-se que a pandemia é um efeito e não uma causa, bem como observou-se que a responsabilização civil dela derivada deve ficar a cargo do contratante economicamente mais forte, em razão da atividade por ele desenvolvida, à luz da Teoria do Risco.
O estudo não acolheu o entendimento generalizante e uniforme aplicável a todos os contratos, sem distinção, no sentido da revisão ou extinção. Preferiu-se pautar na dicotomia moderna do contrato – contrato empresarial e contrato existencial – uma vez que melhor abarcaria uma gama infinda de tipos contratuais atinentes a um grupo ou outro, tornando assim a solução jurídica mais prática e efetiva.
Por derradeiro, a pesquisa concluiu que, nos contratos empresariais, a intervenção estatal deve ser mínima, em respeito ao pacta sunt servanda, sendo apenas excepcional a revisão ou resolução do contrato e que, ainda assim, deve-se priorizar a revisão, com base no 'diálogo das fontes', para salvar ou conservar o contrato. Diferentemente, nos contratos existenciais, a intervenção dever ser máxima, por interpretação inversa da Lei de Liberdade Econômica, para fins de efetivar os princípios sociais do contato em prol do contratante vulnerável, sendo a revisão a única hipótese possível.
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AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Novos Estudos e Pareceres de Direito Privado. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 185.
___________________________. Novos Estudos e Pareceres de Direito Privado. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 186.
COUTO E SILVA, Clóvis V. do. A Obrigação como processo. São Paulo: editora FGV, 2018, p. 20-21.
CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 13 ed. São Paulo: Atlas, 2018, p. 99.
EROLES, Pedro. Boa Fé Objetiva nos Contratos. Especificação Normativa, Cogência e Dispositividade. São Paulo: Quartier Latin, 2018, p. 125.
FORGIONI, Paula A. Contratos Empresariais. Teoria Geral e Aplicação. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019.
GALVANO, Renato Rodrigues Costa. A Boa Fé Objetiva no Âmbito dos Contratos Relacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2019, p. 111.
MORAES, Maria Celina Bodin de. Na Medida da Pessoa Humana. Estudos de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Processo, 2016, p. 14.
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*João Hora Neto é doutorando em Direito pela UFBA; professor adjunto de Direito Civil da Universidade Federal de Sergipe; juiz de Direito do Estado de SE. Membro Fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT).