Migalhas Contratuais

Planos de saúde: quando a ação do Estado pode ter efeitos piores que os da pandemia!

Planos de saúde: quando a ação do Estado pode ter efeitos piores que os da pandemia!

22/6/2020

Texto de autoria de Angélica L. Carlini

Planos de saúde são contratos que se sustentam na existência de uma mutualidade para a qual contribuem todos os usuários. O pagamento mensal realizado pelo usuário tem duas destinações fundamentais, conforme se pode constatar na Sala de Situação da Agência Nacional de Saúde Suplementar - ANS1: o pagamento de despesas assistenciais e o pagamento de despesas administrativas, de distribuição e outras de caráter operacional. Portanto, o valor pago mensalmente pelos usuários individuais ou coletivos constituem os recursos necessários para sustentar a assistência aos próprios usuários no pagamento de consultas, exames, internações, tratamentos ambulatoriais e medicamentos; e, para sustentar a operação administrativa das operadoras de saúde.

No Brasil segundo informa a ANS existem hoje 714 operadoras ativas com beneficiários, ou seja, operando normalmente em todo o território nacional em uma das modalidades previstas em lei: cooperativas, autogestão, medicina de grupo, seguradoras, filantropia ou administradora de benefícios.

As operadoras de saúde podem atuar com planos individuais ou familiares; planos coletivos por adesão ou empresariais; ou, com planos coletivos empresariais de até 30 vidas.

Os planos individuais ou familiares têm reajustes anuais em percentual fixado pela ANS; e, os planos coletivos por adesão ou empresariais, tem reajustes fixados em contrato e que levam em conta dois fatores: a sinistralidade do grupo (quantidade e tipo de utilização feita ao longo do ano) e, variação da inflação de produtos médico-hospitalares e medicamentos, que é usualmente denominada de Índice de Variação Médico-Hospitalar ou, simplesmente, inflação médica.

A ANS informa também em sua Sala de Situação que a distribuição dos usuários dos planos de saúde está assim formalizada

A maior quantidade de usuários está alocada nos planos coletivos empresariais que, certamente sofrerão grande impacto em decorrência da pandemia e das consequências negativas na atividade econômica, tanto no período do isolamento social como no retorno que ainda não tem exata previsão no Brasil. Muitas empresas foram obrigadas a demitir empregados, a encerrar atividades e outras não voltarão a operar normalmente em um curto período de tempo, como é o caso do setor de turismo, de eventos e de entretenimento.

Com menor atividade econômica ou tendo que repensar seus modelos de negócios, muitas empresas vão cortar o pagamento de benefícios como seguros de vida, planos de saúde, vale refeição, bolsas de estudo entre outros. Até que a atividade econômica se recupere os cortes de despesas serão compreensíveis e esperados, quando não apoiados pelos próprios trabalhadores para que seja possível manter os empregos.

Com essa realidade colocada para análise e sugestão de todos, o Poder Legislativo está discutindo projetos de lei que têm por objetivo: (i) estabelecer em caráter excepcional que até 2021 os índices máximos de reajuste dos planos de saúde coletivos sejam limitados aos que forem definidos pela ANS e em 2022 os reajustes obedecerão regras de transição a serem estabelecidas; (ii) reduzir pela metade o valor das mensalidades dos planos de saúde de qualquer natureza enquanto durar a pandemia; (iii) proibir o reajuste de qualquer plano de saúde durante o período de emergência decorrente da pandemia; (iv) alocar o atendimento médico à distância como cobertura obrigatória dos planos de saúde, inclusive para emissão de atestados e receitas.

As propostas do Poder Legislativo se referem ao fato de que foram colocados à disposição das operadoras de saúde os valores do fundo garantidor, estimados em 15 bilhões de reais. De fato, a ANS ofereceu às operadoras de saúde a possibilidade de utilizarem recursos do fundo garantidor com a contrapartida da obrigação de atender inadimplentes e, continuar pagando regularmente os prestadores de serviços médicos, hospitalares, laboratoriais, entre outros. A maior parte das operadoras de saúde não aceitou a proposta da ANS e, portanto, não utilizará os recursos do fundo garantidor.

Em uma análise rápida parece que o setor de saúde suplementar teria à sua disposição 15 bilhões para gastar e não quis. Por que não quis? Porque a proposta da ANS foi para que as operadoras utilizassem os recursos dos ativos garantidores mas devolvessem os valores a cada mês, ou seja, constituíssem novas garantias todos os meses em valores compatíveis com suas provisões técnicas. Em outras palavras, poderiam gerir os valores depositados porém, com a obrigação de devolver todos os meses para que haja garantia de que as operadoras de saúde suplementar não se tornarão insolventes.

Os recursos disponibilizados para utilização das operadoras de saúde são recursos da Provisão de Eventos Ocorridos e não Avisados, conhecido como PEONA. É o valor que a operadora de planos de saúde tem que provisionar para conseguir pagar os procedimentos e eventos em saúde que já tenham ocorrido e, que ainda não tenham sido lançados contabilmente. A provisão da PEONA é obrigatória e seu cálculo depende de um atuário que prepara a Nota Técnica Atuarial da PEONA, que é apresentada ao órgão regulador. A PEONA tem por principal objetivo impedir a insolvência porque se constitui em reserva para procedimentos e eventos em saúde que já foram realizados pelo usuário e seus beneficiários, junto à rede credenciada ou, por escolha própria com reembolso no caso dos seguros saúde, mas sem que esses valores decorrentes da utilização tenham chegado ao conhecimento da operadora e, em consequência, tenham sido contabilizados para serem pagos.

Se os valores da PEONA garantem a solvência das operadoras e que os prestadores de serviços serão pagos, é fundamental que esse ativo garantidor esteja sempre atualizado e correto. A utilização desses recursos seria, então, provisória porque se impõe a devolução. A ANS deliberou que as operadoras que utilizassem os recursos da PEONA deveriam devolver todos os meses. A grande maioria das operadoras de saúde entendeu que seria melhor não assinar o acordo proposto pela ANS, continuar recebendo as mensalidades e atendendo os usuários e, negociar com os inadimplentes caso a caso.

Os projetos de lei parecem estar alicerçados em uma premissa equivocada. Os recursos existentes nos fundos garantidores não estão liberados para utilização pelas operadoras de saúde. Se utilizados deverão ser devolvidos no mês o que é bastante difícil se as operadoras não estiverem recebendo o valor das mensalidades ou, se esse valor estiver defasado em relação a realidade da inflação dos preços médico-hospitalares.

Também parece equivocado que os projetos de lei defendam a moratória para todos, mesmo para aqueles que podem pagar por não terem sido atingidos pelos efeitos perversos da pandemia no setor econômico; ou, para aqueles que poderiam negociar valores compatíveis com suas possibilidades, diretamente com a operadoras, em especial as empresas que são o maior volume de contratantes como comprovam os dados da ANS.

Aprovados os projetos terão o condão de descaracterizar a essência da atividade das operadoras de saúde porque não haverá arrecadação suficiente para a correta composição do fundo mutual e, em consequência, o custeio dos procedimentos e eventos de saúde poderão ficar seriamente comprometidos. Sem arrecadação de mensalidades não há fundo mutual e sem ele, não são contratos de operadoras de saúde.

Mesmo as operadoras que atuam com rede própria precisam custear seus médicos, hospitais, equipes de saúde, exames, medicamentos, manutenção de equipamentos de alto custo, entre tantas outras responsabilidades próprias da atividade econômica de saúde suplementar.

Acreditar que seja possível responder por todas as responsabilidades de um setor complexo que atua em redes contratuais, sem recursos provenientes das mensalidades é, minimamente, intervenção inadequada e que poderá gerar resultados bastante desastrosos para as mais de 700 operadoras do setor e, igualmente para seus usuários.

Rodolpho Barreto Sampaio Júnior2

Mais do que uma discussão filosófica sobre a liberdade, a intenção é ressaltar que o empreendedor tem a liberdade de dedicar-se a uma atividade econômica sem deparar-se com percalços desarrazoados estabelecidos pelo estado. É certo que existem limites à atividade econômica, limites esses estabelecidos em prol da sociedade. Todavia, tais limites não podem se tornar mais relevantes que a atividade econômica em si.

Os projetos de lei supra mencionados modificam a estrutura do contrato de saúde suplementar, sua essência e formação. Se proibida a cobrança de mensalidades, ou, permitida apenas cobrança de metade dos valores previstos nos cálculos atuariais ou, ainda, se negada a possibilidade de aumento das mensalidades em valores compatíveis com os custos de procedimentos e eventos de saúde, o contrato perderá sua estrutura jurídica e atuarial. Será qualquer outra figura jurídica ou não jurídica, mas não será contrato de saúde suplementar.

Impressiona que se ignore que a estrutura da atividade de saúde suplementar se materializa em rede, com inúmeros contratos interligados e interdependentes, para que seja possível organizar os atendimentos aos usuários, desde os mais simples até os mais complexos que envolvem vários profissionais, equipamentos e instalações apropriadas. Irrigar essa rede com o pagamento dos serviços prestados é tarefa essencial da garantia que os planos de saúde são legalmente obrigados a cumprir, em consonância com o disposto no Código Civil. Garantir mediante pagamento do prêmio determina o artigo 757 da lei civil, riscos predeterminados que afetem o interesse segurável.

Garantir o interesse segurável contra riscos predeterminados é atividade que na sociedade contemporânea, complexa e de risco, só pode ser desenvolvido e concretizado por empresas que se organizam adequadamente para isso. Subtrair do planejamento empresarial os valores necessários para custeio de serviços e remuneração de investimentos é demolir as estruturas contratuais, ou, simplesmente, enfraquece-las a ponto de se tornarem não confiáveis.

No plano jurídico, os projetos de lei agridem a Constituição Federal, a Lei de Planos de Saúde e a própria legislação que regula as atividades da ANS. No plano econômico serão responsáveis por graves problemas de solvência e custeio que para algumas operadoras de menor porte serão insuperáveis. Já vivemos uma pandemia, não precisamos de mais caos.

O Estado brasileiro criou mecanismos jurídicos para a defesa dos consumidores e o sistema nacional de direito do consumidor tem dado inúmeras provas de sua eficiência. No âmbito administrativo ou judicial as leis de proteção e defesa do consumidor têm sido utilizadas de forma plena, o que obriga o mercado a se tornar mais confiável em todas as diferentes áreas da atividade econômica, sob pena de sofrer consequências cumulativas de sanção e obrigação de reparar.

Os projetos de lei ora supra mencionados parecem não confiar no sistema de defesa do consumidor, na regulação da área de saúde suplementar e, ainda menos na maturidade que o mercado adquiriu ao longo de sua trajetória.

O momento é para o desenvolvimento de inúmeras formas de negociação, mediação e conciliação de interesses e necessidades. Os usuários de operadoras de saúde devem ser estimulados a apresentar suas dificuldades de pagamento às operadoras, aos canais de solução de conflitos públicos e privados, de forma que cada situação receba a atenção necessária para que os melhores resultados possam ser concretizados. Todos terão que negociar, aprender a dialogar e a desenvolver propostas possíveis de serem adotadas. A criticidade exacerbada só tem lugar se acompanhada de propostas de solução e aprimoramento dos setores econômicos. Sem essas propostas as críticas são inúteis e se perderão no tempo sem que a história sequer as mencione.

A maior contribuição do Direito neste momento de pandemia e efeitos econômicos perversos e perceptíveis no empobrecimento diário de milhões de pessoas em todo o mundo, será estimular o diálogo, a compreensão, a negociação e a construção de acordos que permitam a soluções passíveis de contemplarem os melhores resultados em um quadro complexo mas que, com toda certeza, poderá ser superado com bom senso e equilíbrio.

*Angélica L. Carlini é doutora em Direito Político e Econômico. Mestre em Direito Civil. Pós-doutorado em Direito Constitucional pela PUC/RS. Docente do ensino superior na UNIMES, UNIP e Escola de Negócios e Seguros – ENS. Vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito Contratual – IBDCONT e conselheira da seção brasileira da Associação Internacional de Direito do Seguro – AIDA.

__________

1 Disponível aqui. Acesso em 20 de junho de 2020.

2 SAMPAIO JÚNIOR, Rodolpho Barreto. Lei de Liberdade Econômica e seus Reflexos sobre o Direito Civil. In OLIVEIRA, Amanda Flávio de. Lei de Liberdade Econômica e o Ordenamento Jurídico Brasileiro. S.Paulo: D'Plácido, 2020, p. 197.

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Eroulhts Cortiano Jr. é professor da Faculdade de Direito da UFPR. Doutor em Direito pela UFPR. Pós-doutor em Direito pela Universitá di Torino e pela Universitá Mediterranea di Reggio Calabria. Conselheiro Estadual da OAB/PR. Secretário-geral do IBDCONT. Advogado em Curitiba/PR.

Flávio Tartuce é pós-doutor e doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP. Professor Titular permanente e coordenador do mestrado da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor e coordenador do curso de mestrado e dos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD. Patrono regente da pós-graduação lato sensu em Advocacia do Direito Negocial e Imobiliário da EBRADI. Diretor-Geral da ESA da OABSP. Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família em São Paulo (IBDFAMSP). Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico.

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Maurício Bunazar é mestre, doutor e pós-doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Diretor executivo e fundador do IBDCONT. Professor do programa de mestrado da Escola Paulista de Direito. Professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie e do IBMEC-SP.