Texto de autoria de Paula Moura Francesconi de Lemos Pereira e Úrsula Goulart
Em 20 de maio de 2020, foi aprovado no Senado Federal o PL 2.113/20, e que está em fase de apreciação pela Câmara dos Deputados1. O projeto aprovado sofreu algumas modificações no seu texto inicial, e tornou prejudicado o Projeto de Lei nº 890/2020, que visava alterar o Código Civil criando o art. 798-A em que ficava estabelecido que o segurador não pode se eximir ao pagamento do seguro, ainda que da apólice conste a restrição se a morte ou a incapacidade do segurado provier da infecção por epidemias ou pandemias, ainda declaradas por órgão competente. O Projeto de lei 2.113, de 2020, por sua vez, acrescenta o artigo 6º-E na lei 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019, para determinar que o seguro de assistência médica ou hospitalar, bem como o seguro de vida ou de invalidez permanente, inclusive o já celebrado, não pode conter restrição de cobertura a qualquer doença ou lesão decorrente da emergência de saúde pública de que trata a lei.
O projeto implica em uma norma temporária para uma situação transitória, não incluindo, portanto, futuras pandemias, diferentemente do proposto no PL 890/2020.
O objetivo do PL 2.113, 2020, é proteger os segurados, calcado nos princípios da boa-fé e na defesa do consumidor.
A mudança implica em resumo nas seguintes proibições às seguradoras: i) restringir a cobertura de qualquer doença ou lesão decorrente da pandemia da Covid-19; ii) restringir a exclusão dos riscos decorrentes da pandemia da Covid-19 no seguro de vida ou de invalidez permanente; iii) realizar o aumento do prêmio pago pelo segurado; e iv) suspender e/ou cancelar os contratos por falta de pagamento durante a Covid-19 (estado de emergência pública) em virtude de mora do segurado no pagamento do prêmio.
Além das proibições, o referido projeto estabelece o dever das seguradoras de: i) efetuar o pagamento da indenização no prazo de 10 (dez) dias corridos contados a partir da data de protocolo da documentação comprobatória na sociedade seguradora; e ii) permitir o parcelamento do débito do consumidor após o fim do período da calamidade pública antes de proceder à suspensão e/ou o cancelamento do contrato em razão da inadimplência.
O projeto de lei acaba por beneficiar o segurado/consumidor, já que terá garantido a cobertura e a manutenção do seguro durante a pandemia, mesmo diante de sua inadimplência no pagamento do prêmio, assim como o direito de, após o período, parcelar o débito antes de ter suspenso e/ou cancelado o contrato.
Todavia, o projeto de lei interfere na dinâmica da relação contratual, o que pode impactar de forma direta o setor securitário, haja vista a inclusão de cobertura de sinistro não considerado para fins de cálculo atuarial necessário para manter o fundo mutual e o equilíbrio econômico do contrato. Além de afetar o próprio fundo quando permite que haja um inadimplemento sem que isso afete a manutenção do contrato.
No que tange à obrigatoriedade da cobertura do risco decorrente de pandemia, cabe esclarecer que sua exclusão depende do que está previsto nas apólices dos seguros.
Nos seguros de vida e acidentes pessoais é comum verificar essa exclusão de riscos, o que acaba ficando a critério das seguradoras. Isso em razão da dificuldade de quantificar o prêmio e de realizar cálculos atuariais precisos quando se trata de riscos extraordinários como é a hipótese da pandemia da Covid-19.
Como já salientado por Thiago Junqueira2, a título de exemplo, a Circular SUSEP nº 440, de 27 de junho de 2012, que regula os planos de microsseguro de pessoas (seguro de valor baixo, prêmio mais barato, proteção mais baixa), prevê, no art. 12, inc. I, alínea d, a possibilidade de exclusão de riscos causados por "epidemia ou pandemia declarada por órgão competente"3. Além disso, o item 69 da designada "Lista de verificação" (versão de setembro/2012), que traz requisitos para o envio de novos planos de seguro de pessoas à SUSEP (em busca da aprovação de sua comercialização), prevê: "Riscos excluídos – Epidemias e Pandemias" (Orientação da Procuradoria Federal junto à SUSEP)4. Logo, é possível que a seguradora exclua a morte ou invalidez permanente do segurado decorrente de epidemias ou pandemias da cobertura, devendo, in casu, prever de forma expressa e clara a respectiva exclusão.
Logo, existe por parte de normas regulatórias da SUSEP uma permissibilidade da exclusão da cobertura de riscos em casos de pandemia. Ademais, o Código Civil estabelece, no artigo 757: "Pelo contrato de seguro, o segurador se obriga, mediante o pagamento do prêmio, a garantir interesse legítimo do segurado, relativo a pessoa ou a coisa, contra riscos predeterminados". Desta forma, não sendo o risco predeterminado, não há que se falar em cobertura.
Portanto, não há ilegalidade na restrição, na liberdade da seguradora de delimitar os riscos cobertos. E a pandemia é um risco extraordinário, risco catastrófico, que foge à álea normal.
No entanto, deve-se observar que a questão posta pode ser lida à luz das normas consumeristas, quando aplicável, o que ressalta o dever do segurador de informar de forma prévia e clara sobre as exclusões, devendo observar a forma que foi comercializado o seguro; se o segurado recebeu a apólice, e se estava de forma expressa a exclusão, negritado. Mesmo com todo esse cuidado, nada impede de ser alegado que se trata de uma cláusula abusiva por limitar o direito do consumidor, limitar a responsabilidade do fornecedor, atraindo uma interpretação mais favorável ao segurado/consumidor (arts. 6º, III, 30, 51, I, §, 1º, 54, § 4).
Independentemente de algumas seguradoras terem declarado que irão realizar o pagamento integral das indenizações, em caso de morte ou invalidez permanente do segurado por infecção de Covid-195, isso decorria de ato de mera liberalidade, o que, por si só, não confere segurança jurídica e não abrangeria todas as seguradoras6. A despeito da indagação acerca de qual será a fonte de retirada das quantias indenizatórias, haja vista o papel da seguradora de gestora de um fundo mutual coletivo ao qual não tem plena ingerência.
O projeto de lei facilitaria para os segurados que não precisariam eventualmente buscar a solução do conflito no Poder Judiciário, e evitaria a insegurança jurídica em razão da possibilidade de decisões divergentes pelos diversos órgãos julgadores, seja em razão das regras que regulam o contrato de seguro e as normas regulatórias, desde que observada a legislação consumerista. Além disso, o processo judicial é demorado, o que postergaria o recebimento da indenização.
Um dos maiores problemas trazidos pelo PL 2.113, de 2020, decorre da forte interferência dos contratos de seguro, que são pautados na mutualidade, na sinistralidade, em que se busca o equilíbrio entre o prêmio pago e a cobertura dos riscos previstos. A intervenção legislativa na cobertura de risco inicialmente não previsto, que não teve a sua cobertura considerada para fins de cálculos atuariais, para definição do prêmio pode colocar em xeque o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos, afetando a base atuarial dos seguros. Isso porque mitiga a correspectividade entre o prêmio pago pelo segurado e a garantia que deve ser prestada pela seguradora, já que o projeto não permite nem o aumento do prêmio, nem a suspensão e/ou cancelamento do seguro pelo não pagamento pelo segurado.
No que diz respeito à impossibilidade de aumento do prêmio por parte da seguradora durante o curso da relação contratual, cabe apontar que o reajuste do prêmio decorre da essência do contrato de seguro. Mas para isso é preciso que haja uma circunstância que agrave o risco, tendo em vista o disposto no Código Civil, arts. 757, 760, 768 e 769 .
A possibilidade de ajustes se dá pela base do contrato, pois, como já dito, o seguro é baseado no mutualismo, de conteúdo técnico e econômico, apesar de jurídico. O fundo mutual tem de ter exata correspondência entre a garantia que ela está prestando e o prêmio que vai ser pago pelos segurados. Logo, não adianta a seguradora cobrar um prêmio baixo, pois vai comprometer a sua solvência e ainda pode ser multada pela SUSEP7.
Quanto à impossibilidade de as seguradoras suspenderem e/ou cancelarem os contratos em razão do inadimplemento, é uma forte intervenção, pois a lei assegura à seguradora o não pagamento de indenização em caso de mora no pagamento do prêmio pelo segurado (art. 763 e 796 do Código Civil).
Por fim, quanto ao prazo de 10 dias para pagamento da indenização, o Projeto de lei se pautou na Circular nº 440, de 2012, citada anteriormente, que, no caput do art. 63, prevê que o prazo máximo para o pagamento da indenização ou do benefício é de dez dias corridos contados a partir da data de protocolo de entrega da documentação comprobatória, requerida nos documentos contratuais, junto à sociedade seguradora ou entidade aberta de previdência complementar ou seu representante. Entretanto, esse prazo se refere apenas aos microsseguros, o que não é a regra geral, já que, pelo disposto no na Circular nº 302 da SUSEP, aplicável para seguros de pessoas, o prazo é de 30 dias (art. 72)8.
Não há dúvidas de que o projeto está pautado em movimento ancorado no princípio da solidariedade de valor ético e jurídico e que atende aos interesses dos segurados, dos consumidores, de seus familiares em uma fase tão peculiar de pandemia.
No entanto, não podemos deixar de observar que, caso o texto seja aprovado pelo Poder Legislativo e sancionado pelo Executivo, poderá haver um efeito reflexo, acarretando um aumento substancial nos prêmios dos novos seguros, onerando as novas apólices, entre outras repercussões.
As mudanças legislativas, administrativas e as decisões judicias em um momento peculiar de pandemia em que se vislumbra uma tríplice crise: de gestão, sanitária e econômica, não pode deixar de avaliar as consequências pós-covid-19 e os impactos nos setores de saúde, economia, inviabilizando o desenvolvimento de certas atividades que podem afetar negativamente o próprio consumidor (art. 20 Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro). É preciso ter cautela e equilibrar os interesses merecedores de tutela por meio de uma interpretação pela lente da legalidade constitucional.
*Paula Moura Francesconi de Lemos Pereira é doutora e mestre em Direito Civil pela UERJ. Pós-graduada em Advocacia Pública pela CEPED-UERJ. Pós-graduada em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico da Universidade de Coimbra. Professora da PUC-Rio e da pós-graduação Lato Sensu do Centro de Estudos e Pesquisas no Ensino de Direito (CEPED-UERJ). Membro do IBDCivil, IBIOS, do IBDCont e IBERC. Advogada.
**Úrsula Goulart é mestre em Direito Civil pela UERJ. Pós-graduada em Direito do Consumidor pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro -EMERJ. Membro da AIDA. Advogada.
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1 Disponível aqui. Acesso em 25 maio 2020.
2 Disponível aqui. Acesso em: 25 maio 2020.
3 Disponível aqui. Acesso em: 28 maio 2020.
4 Disponível aqui. Acesso em: 28 maio 2020.
5 Disponível aqui. Acesso em: 30 maio 2020.
6 A respeito do tema, merece destacar as reflexões de Angelica Carlini. Disponível aqui. Acesso em: 25 maio 2020.
7 Disponível aqui. Acesso em: 30 maio 2020.
8 Disponível aqui. Acesso em 30: maio 2020.