Texto de autoria de Flávio Tartuce, José Fernando Simão e Maurício Bunazar
Tramita no Congresso Nacional - atualmente na Câmara dos Deputados - o Projeto de lei 1.179/2020, proposto pelo senador Antonio Anastasia, após uma iniciativa do Ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal. A proposta legislativa cria um "Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do Coronavírus (covid-19)"; e contou com a nossa participação, conjuntamente com outros juristas, liderados pelos Professores Otavio Luiz Rodrigues Jr. e Rodrigo Xavier Leonardo, que assessoraram os trabalhos legislativos.
Naquela etapa inicial, quando o projeto era debatido no Senado Federal, fizemos sugestões ao texto, algumas delas acatadas, a saber: a) aprimoramento do dispositivo que trata da prescrição e da decadência (art. 3º) e; b) previsão a respeito da prorrogação automática dos mandatos dos síndicos em condomínios edilícios, vencidos no período da pandemia (art. 12, parágrafo único).
Entretanto, entre as sugestões que não foram acolhidas, destacamos a regra geral a respeito da possibilidade da revisão contratual nos contratos de locação urbana. O projeto aprovado traz apenas uma previsão a respeito do afastamento do despejo liminar - permitido pelo artigo 59 parágrafo único da lei 8.245/1991 -, em algumas hipóteses envolvendo a locação imobiliária (art. 9º). Abaixo, transcrevemos a nossa proposição sobre revisão dos contratos de locação urbana, ao lado da redação original que constava do PL 1.179/2020:
Nas justificativas que enviamos ao Professor Otávio Luiz Rodrigues, Jr., coordenador da comissão de juristas que atuou no Senado Federal, pontuamos o nosso entendimento conjunto de que a simples suspensão do pagamento dos aluguéis pelos locatários, como constava do projeto, seria excessivamente onerosa aos locadores. Por isso, nos termos do novo § 5º, a situação econômica do locador também deve ser levada em conta e, se for o caso, a moratória deve ser afastada.
Propusemos, ainda, a moratória legal em termos próximos aos do artigo 916 do Código de Processo Civil vigente. Esse plano de pagamento por nós sugerido, por estar previsto na própria lei processual, é interessante, experimentado e aceito pelas partes e magistrados, já havendo larga experiência quanto à sua efetivação, e pode, portanto, ser aplicado para outras esferas, como por exemplo nas locações.
Também sugerimos a inclusão de preceito segundo o qual a regra incidiria para a locação não residencial, desde que exercida por empresários individuais, empresas individuais de responsabilidade limitadas e por sociedades empresariais qualificadas como micro empresas e empresas de pequeno porte. O objetivo seria a tutela de pequenos empresários locatários, dando-lhes a oportunidade de fazer uso da moratória legal, se for o caso.
Essas sugestões acabaram por se acatadas pela comissão de juristas que auxiliava o Senado Federal para a aprovação do projeto. Todavia, infelizmente, a proposição - artigo 10 do projeto -, acabou por ser retirada pelo próprio Senador Anastasia e também pela Relatora, Senadora Simone Tebet. A retirada deveu-se à preocupação dos senadores mencionados com a situação dos locadores, que poderiam vir a ser prejudicados economicamente ao não receberem a integralidade do que lhes é devido.
No entanto, a realidade que se revela neste curto período de crise é a da existência de inúmeras demandas ajuizadas por inquilinos pleiteando ora a redução do valor dos alugueres, ora a cessação integral da obrigação de pagar. À falta de uma norma legal que forneça critérios objetivos e, por isso seguros aos magistrados, o que se vê são decisões muito divergentes entre si, o que colabora para a criação de um ambiente de insegurança jurídica e de incremento de conflitos.
Se dúvida havia sobre a necessidade de uma lei disciplinado especificamente a questão da locação em tempos de pandemia, a realidade fática superou essa dúvida. Em pesquisa realizada no portal Jusbrasil no dia 8 de maio de 2020, em ferramenta que propicia o encontro de julgados que mencionam os termos não só nas suas ementas como também nos corpos das decisões, foram encontrados 182 resultados com as expressões "locação" e "pandemia"; e 149 resultados com "locação" e "Covid". Pontue-se que tal pesquisa elenca não só decisões de segundo como de primeiro grau.
Entre essas, como já apontado, existe uma grande variação nas conclusões dos julgadores, notadamente em sede de cognição sumária, para a concessão ou não de tutelas provisórias. De início, afastando-se a concessão de medidas de urgência para a suspensão ou redução dos pagamentos de aluguéis, destacamos, somente para ilustrar:
"LOCAÇÃO NÃO RESIDENCIAL. AÇÃO REVISIONAL. PEDIDO DE TUTELA DE URGÊNCIA. SUSPENSÃO DA OBRIGAÇÃO DE PAGAMENTO OU REDUÇÃO DO VALOR DA LOCAÇÃO EM RAZÃO DA PANDEMIA DECORRENTE DO COVID-19. Requisitos ausentes. INDEFERIMENTO. Manutenção da decisão recorrida. Ausentes os requisitos legais do art. 300 do CPC, o indeferimento da tutela provisória de urgência é medida que se impõe. RECURSO DESPROVIDO" (TJSP, Agravo de instrumento n. 2070513-61.2020.8.26.0000, Acórdão n. 13513877, São José dos Campos, Vigésima Sexta Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Antonio Nascimento, julgado em 28/04/2020, DJESP 05/05/2020, pág. 2236).
"LOCAÇÃO DE IMÓVEL COMERCIAL. TUTELA DE URGÊNCIA DESTINADA A SUSPENDER A EXIGIBILIDADE DOS ALUGUÉIS EM FACE DA QUARENTENA DECORRENTE DA PANDEMIA POR COVID-19. DESCABIMENTO. Moratória que pelo regime legal não pode ser imposta ao credor pelo Juiz, devendo decorrer de ato negocial entre as partes ou por força de especial disposição legal. Evocação. Do caso fortuito e força maior que tampouco autoriza aquela medida. Cabimento, porém, da vedação à extração de protesto de título representativo do crédito por aluguéis. Recurso parcialmente provido". (TJSP, Agravo de instrumento n. 2063701-03.2020.8.26.0000, Acórdão n. 13459046, São Paulo, Trigésima Sexta Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Arantes Theodoro, julgado em 06/04/2020, DJESP 13/04/2020, pág. 1824).
Outros julgados e decisões, porém, concedem as medidas pleiteadas, com redução de percentuais dos aluguéis que variam de 20% a 50% do valor pago, enquanto durara pandemia. Mais uma vez somente a ilustrar, cite-se decisum da 36ª Câmara de Direito Privado do Tribunal Paulista que, em 6 de maio, reformou decisão de primeiro grau que havia indeferido a concessão da tutela provisória, e que restou assim ementada:
"Locação comercial. Tutela de urgência. Pandemia por COVID19. Redução do valor do aluguel em face da proibição à abertura do estabelecimento comercial. Fato do príncipe que corresponde à figura da força maior. Artigo 317 do Código Civil que autoriza nesses casos a readequação do valor da contraprestação. Redução em 50% que se mostra razoável enquanto persistir aquela proibição. Recurso provido" (TJSP, Agravo de instrumento n. 20817534720208260000, Relator Des. Arantes Theodoro, data de julgamento: 06/05/2020, 36ª Câmara de Direito Privado).
Também existem decisões, em sede de locação em "shopping center", que determinam o pagamento de valores mínimos, diante da ausência de atividades no local, como outra do Tribunal Paulista, em que se concedeu tutela provisória de urgência para o pagamento apenas do "aluguel percentual". Como consta do trecho de sua ementa, que novamente cita o art. 317 da codificação privada, "pela análise dos elementos constantes nos autos, em juízo de cognição sumária, considerando a relação continuada de locação, o fechamento do shopping devido à pandemia e os dados apresentados, cabe, a priori, observar a teoria da imprevisão, nos termos do art. 317 do CC, sopesando os valores sociais em conflito. Assim, estão preenchidos os requisitos necessários para concessão da tutela de urgência em relação ao pagamento temporário de 'aluguel percentual' até ulterior deliberação, mantidos os pagamentos das despesas de condomínio e demais encargos" (TJSP, Agravo de instrumento n. 20670017020208260000, Relator Des. Kioitsi Chicuta, data de julgamento: 23/09/2016, 32ª Câmara de Direito Privado).
Como dissemos anteriormente, as decisões já passam de uma centena, em pouco mais de dois meses, sendo desnecessário mencionar outros julgados, uma vez que a finalidade deste artigo é reforçar a conveniência de uma norma jurídica que traga algum critério objetivo para a resolução das disputas locatícias, que devem se avolumar nos próximos meses, e também depois que passar o primeiro surto da pandemia.
Em não havendo norma jurídica específica, os julgadores serão obrigados a decidir com base na analogia, nos costumes e nos princípios gerais do direito - como determina o artigo 4o da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro -, o que, não raro, conduz a julgamentos de equidade, por definição, imprevisíveis e inseguros. A nossa opinião é que é necessário se garantir uma coerência decisória por meio de um parâmetro lega de modo a evitar o colapso do regime contratual da locação por disparidade de decisões em casos idênticos.
Espera-se, assim, que o Congresso Nacional aproveite a tramitação do PL 1.179/2020 para regulamentar a questão premente das locações imobiliárias e trazer um mínimo de certeza e de segurança para locadores e locatários. Se por um lado são louváveis as ponderações de parte da doutrina no sentido de se privilegiar "análise do caso concreto", por outro a experiência mostra que esse espaço de conformação deixado ao magistrado é fonte de grandes instabilidades, como já se viu em inúmeras experiências do Direito Contratual Brasileiro.
Como palavras finais, não se pode negar que uma norma jurídica tratando do tema traria maior certeza para a tese que ora se propõe, devendo a temática ser debatida pela comunidade jurídica nacional nestes duros tempos, de "escolhas trágicas".
*Flávio Tartuce é pós-doutorando e doutor em Direito Civil pela USP. Professor Titular permanente e coordenador do mestrado da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor e coordenador dos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD. Presidente e Fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Advogado em SP, parecerista e consultor jurídico.
**José Fernando Simão é livre-docente, doutor e mestre em Direito Civil pela USP. Professor associado do Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP. Fundador e Membro da Diretoria Executiva do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Advogado em SP, parecerista e consultor jurídico.
***Maurício Bunazar é pós-doutorando, doutor e mestre em Direito Civil pela USP. Professor de Direito Civil do Damásio Educacional e do IBMECSP. Fundador e Membro da Diretoria Executiva do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Advogado em SP.