Migalhas Contratuais

Aplicabilidade da Teoria do Adimplemento Substancial a. C. (antes do covid) e d. C. (depois do covid)

Aplicabilidade da Teoria do Adimplemento Substancial a. C. (antes do covid) e d. C. (depois do covid).

7/5/2020

Texto de autoria de Cristiano Sobral Pinto

A pandemia mudou nossas perspectivas sobre a vida em curso e sobre o futuro. As incertezas são maiores, mas podemos delinear um norte a ser seguido diante dos impactos nas relações contratuais apresentando o adimplemento substancial como uma via promissora para a solução de litígios.

Alguém do passado que pudesse prever nossa realidade atual diria com toda a certeza que se trataria de um cenário de filme de ficção científica. Mas, para todas as mentes mais criativas, superamos em pouco tempo as expectativas e por mais temeroso e triste que possa parecer, a pandemia chegou e com ela, nosso cotidiano sofreu impactos que alteraram nosso lidar com o mundo, em todas as instâncias micro e macro: nossas relações afetivas, nossos trabalhos, nosso ir e vir, a política, a economia, a saúde, a educação, de todos os países do globo foram impactados por um vírus.

O inimigo em comum é chamado como novo coronavírus, cientificamente recebeu o codinome de COVID-19. Trata-se de um vírus da família Coronaviridae que causam uma variedade de doenças no homem e nos animais, especialmente no trato respiratório. O primeiro registro oficial de covid-19 refere-se a um paciente hospitalizado no dia 12 de dezembro de 2019 em Wuhan, China, mas estudos anteriores apontam um caso clínico com sintomas da doença em 1/12/19. Assim, em dezembro de 2019, iniciou-se um surto que atingiu cerca de 50 pessoas na cidade de Wuhan, na China1. E no mês de março de 2020, a doença já fazia casos em mais de 100 países, alcançando o status de uma pandemia2, de acordo com pronunciamento da OMS (Organização Mundial da Saúde). A doença pode apresentar-se como uma infecção branda, podendo também chegar a causar pneumonia, insuficiência respiratória e até a morte.

A alta taxa de disseminação e a evolução dos sintomas para níveis mais graves da doença - estando seu maior percentual de letalidade entre pessoas com mais de 60 anos e com comorbidades anteriores, a exemplo, diabéticos, hipertensos e obesos -, e juntamente a isso, por tratar-se de um vírus novo, com poucos estudos sobre o seu desenvolvimento e tratamento, não existindo nem uma vacina nem drogas capazes de combatê-lo, foram tomadas medidas sanitárias que possuem caráter iminentemente preventivos, com o objetivo de diminuir o seu contágio e seus desdobramentos, evitando que os sistemas de saúde possam sofrer colapso, por falta de leitos, principalmente os de caráter intensivo, e de profissionais de saúde.

Tais medidas dizem respeito não só aos hábitos de higiene pessoal e do ambiente como também, a diminuição do contato entre pessoas, sendo amplamente aconselhado o isolamento social horizontal como principal forma de evitar a doença. Diante de tal situação, vários países que foram atingidos pela pandemia tomaram medidas restritivas relativas ao funcionamento do comércio, escolas, e todos os ambientes que contem com grande fluxo e aglomeração de pessoas e, limitando, inclusive o direito ao deslocamento de seus cidadãos a fim de conter a disseminação da doença. Entre outros problemas surgidos com a pandemia, a economia mundial sofreu uma queda abrupta na maioria de seus setores e houve perdas significativas nos postos de empregos, ocasionando uma crise de larga escala.

Como é possível observar, a pandemia repercute em nossas vidas de uma forma bastante ampla e profunda, e junto a ela e por sua consequência, surgem situações excepcionais, reivindicando novos olhares sobre essas questões, em especial, aquelas que tocam o âmbito do Direito Civil. Tema que passamos a nos ocupar, mais detidamente, no que diz respeito ao direito obrigacional e contratual.

Surgem diversas questões de alta indagação acerca das relações contratuais durante a pandemia: sua continuidade, o seu adimplemento, hipóteses que ensejam revisão contratual, e as que podem incidir em sua resolução. Afinal, como ficam os contratos na pandemia?

Trata-se de tema amplo e que devido à especificidade de cada relação contratual in concreto requer análise caso a caso, mas, em sentido mais generalizante, a pandemia, situação vivenciada por todos, é um evento que tem sido classificado como de força maior3. Tal hipótese encontra previsão no art. 393 do Código Civil com o seguinte teor:

Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.

Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.

Devido à facilidade de sua disseminação e suas consequências, a pandemia é tida também como um fato extraordinário e imprevisível, sendo possível a resolução contratual decorrente da onerosidade excessiva para uma das partes contratantes, com base no disposto no art. 478, da lei civil:

Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.

Outra consequência diz respeito à revisão contratual, tendo por fundamento legal a previsão do art. 317, do mesmo diploma:

Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.

Como dito anteriormente, trata-se de uma visão generalista e que não constituindo o caminho a ser percorrido em toda e qualquer situação que ocorra durante a pandemia. Isso porque tratam-se de medidas excepcionais e de acordo com os ditames que regem todas as relações contratuais há de se priorizar a boa-fé objetiva e a continuidade e manutenção das avenças contratuais4. Não só tomando por pressuposto o teor do art. 422, do CC5, como também deverão ser observados seus deveres anexos, como o de cooperação e lealdade entre as partes contratantes.

Assim, persiste a necessidade de se relativizar essa interpretação acerca da revisão e da resolução contratual com liberação da parte contratante devedora da obrigação porque ambas as alternativas só terão lugar se o inadimplemento tiver como causa exclusiva a pandemia de Covid-19, seja ela tida por força maior ou evento extraordinário ou imprevisível, ou acontecimentos dela decorrentes, como a hipótese de impossibilidade ou onerosidade por fato do príncipe, devido as medidas de restrições impostas pelos Estados para a prevenção e contenção da doença.

Nessa toada, há de se observar, ainda o disposto nos arts. 421. parágrafo único e 421-A, inc. III, do Código Civil com redação dada pela recente lei 13.874/2019, Lei da Liberdade Econômica, dispondo que:

Art. 421. A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato.

Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual.

Art. 421-A. Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que:

[...]

III - a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada.

O art. 421-A do Código Civil dispõe, por sua vez, em seus incisos I e II que "as partes negociantes poderão estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação das cláusulas negociais e de seus pressupostos de revisão ou de resolução"; e "a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada". Assim, havendo cláusula que preveja a força maior, estas deverão ser observadas pelas partes contratantes. E ainda que exista tal previsão, sobre a liberdade das partes em pactuar, a boa-fé deverá vigorar, conforme art. 113, da lei civil:

Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.

§ 1º A interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido que:

I - for confirmado pelo comportamento das partes posterior à celebração do negócio;

II - corresponder aos usos, costumes e práticas do mercado relativas ao tipo de negócio;

III - corresponder à boa-fé;

IV - for mais benéfico à parte que não redigiu o dispositivo, se identificável; e

V - corresponder a qual seria a razoável negociação das partes sobre a questão discutida, inferida das demais disposições do negócio e da racionalidade econômica das partes, consideradas as informações disponíveis no momento de sua celebração.

§ 2º As partes poderão livremente pactuar regras de interpretação, de preenchimento de lacunas e de integração dos negócios jurídicos diversas daquelas previstas em lei.

Neste contexto de covid-19, os autores Flávio Jardim e André Silveira em artigo recentemente publicado apresentam duas teorias interessantes relativas à ideia de impraticabilidade e frustração do cumprimento contratual, observe:

É de se imaginar, também, obrigações contratuais que não se tornaram literalmente impossíveis de serem cumpridas, mas que, em virtude da pandemia do novo coronavírus, ficaram extremamente onerosas, demoradas ou, para sintetizar, impraticáveis. Esse conceito de impraticabilidade é bem desenvolvido no direito americano. Se, após a celebração do contrato, a execução das obrigações contratuais, sem culpa da parte inadimplente, torna-se impraticável, em razão de um evento cuja não ocorrência era uma premissa fundamental da contratação, o dever da parte de cumprir a obrigação é liberado, salvo se o contrato dispuser em contrário ou as circunstâncias indicarem distintamente. [...] Para explicar situações abarcadas pela impraticabilidade, também são listados como exemplo casos de severa escassez de matéria prima ou de desabastecimento por força de circunstâncias como guerra, embargo, perda de colheita e falência não prevista de fornecedores de produtos que causa aumento substancial no custo ou impossibilita o vendedor de obter as mercadorias necessárias para o cumprimento da obrigação. Tem-se aí a ideia de onerosidade excessiva, já consagrada pela nossa jurisprudência como um elemento que relativiza o pacta sunt servanda.

A pandemia do novo coronavírus também provoca inúmeras situações nas quais, a despeito de o adimplemento ser possível, pereceu o propósito pelo qual uma das partes celebrou o contrato. Essa ideia de frustração da intenção foi consagrada no direito inglês como uma das justificativas que permitem que a parte obrigada não cumpra o que pactuado. A doutrina da frustration acabou também consolidada nos Estados Unidos. No Restatement (2nd) of Contracts ela está assim descrita: "quando, após celebrado o contrato, a principal motivação for substancialmente frustrada sem culpa da parte, em virtude de um fato que ela não tinha razão para conhecer e cuja não ocorrência era uma premissa fundamental sobre a qual a contratação ocorreu, não haverá obrigação da parte de cumprir a avença, salvo se a linguagem do contrato ou as circunstâncias indicarem o contrário"6.

Sobre a doutrina da frustration, Nelson Rosenvald enfatiza que:

A doutrina da frustration está enraizada na common law e independe dos termos do contrato. Portanto, na ausência de uma cláusula de força maior, as partes devem considerar seu escopo. A doutrina é excepcional: ela não existe para permitir que as partes contratantes se furtem a uma bad bargain, pois dificuldades ou inconvenientes não são suficientes. A frustration atuará em circunstâncias muito limitadas, intervindo para eximir justificadamente a performance do contratante. A lei exige um evento superveniente que atinja a própria raiz do contrato – tornando-o física ou comercialmente impossível o seu cumprimento – para além do que foi contemplado pelas partes, sendo que nenhuma delas foi responsável pelo evento. Como o evento precisa ser imprevisto, se as partes tiverem aventado tal eventualidade, ele não mais será imprevisível7.

Tema importante que surge diante das hipóteses referentes ao inadimplemento contratual, e que ganha proeminência no contexto de uma pandemia, é a possibilidade de aplicação da Teoria do Adimplemento Substancial inspirada na teoria na Substancial Performance oriunda do Direito anglo-saxônico. Assunto este que foi objeto de abordagem em recente live realizada por este autor com o eminente jurista Pablo Stolze, em decorrência de uma pergunta realizada por um ouvinte quando da entrevista de Stolze para uma emissora do Estado da Bahia8.

Essa teoria propõe que, em se tratando de um adimplemento tão próximo do resultado final que, tendo-se em vista a conduta das partes, exclui-se o direito de resolução, permitindo-se tão somente o pedido de indenização. Não sendo justo resolver o contrato no caso de inadimplemento mínimo, tendo em vista que estaríamos violando a função social e a boa-fé objetiva, devendo, portanto, ser rejeitada a resolução do vínculo obrigacional sempre que a desconformidade entre a conduta do devedor e a prestação estabelecida seja de pouca relevância9.

Tal teoria vem ao encontro de diversas situações em que ocorrência do descumprimento ínfimo da obrigação por parte do devedor não deve ensejar a resolução do contrato causando prejuízo exacerbado para aquele que cumpriu a sua obrigação quase em sua integralidade, ainda que não de forma perfeita, por fatos alheios à sua vontade, como é o caso de uma situação relativa à pandemia. Principalmente em razão de uma série de fatores decorrentes desta crise que assola grande parte do planeta, como a perda de empregos, suspensão dos contratos de trabalho e, em certos casos, os acordos trabalhistas que, visando à manutenção do contrato de trabalho, diminuem a jornada laboral com a consequente diminuição do salário do empregado, comprometendo de forma inegável a vida do cidadão e suas finanças.

A teoria do adimplemento substancial foi tema abordado nas Jornadas de Direito Civil figurando em dois enunciados, que passamos a mencionar:

Arts. 421, 422 e 475. O adimplemento substancial decorre dos princípios gerais contratuais, de modo a fazer preponderar a função social do contrato e o princípio da boa-fé objetiva, balizando a aplicação do art. 475 (Enunciado n. 361 da IV Jornada de Direito Civil).

Art. 475 – Para a caracterização do adimplemento substancial (tal qual reconhecido pelo Enunciado 361 da IV Jornada de Direito Civil – CJF), levam-se em conta tanto aspectos quantitativos quanto qualitativos (Enunciado n. 586 da VII Jornada de Direito Civil).

De acordo com o exposto, a aplicação da teoria do adimplemento tem por fim precípuo a preservação e continuidade das relações contratuais, fundamentada nos princípios da boa-fé objetiva e de seus deveres anexos, que são decorrência lógica deste principio. Assim, o dever anexo de cooperação pressupõe ações recíprocas de lealdade dentro da relação contratual. A violação a qualquer destes deveres anexos implica inadimplemento contratual de quem lhe tenha dado causa. Tratando-se de violação positiva do contrato.

A jurisprudência pátria tem abordado o tema em seus julgados, como podemos observar os do Tribunal da Cidadania, Superior Tribunal da Justiça:

Arrendamento mercantil. Reintegração de posse. Adimplemento substancial.

Trata-se de REsp oriundo de ação de reintegração de posse ajuizada pela ora recorrente em desfavor do recorrido por inadimplemento de contrato de arrendamento mercantil (leasing) para a aquisição de 135 carretas. A Turma reiterou, entre outras questões, que, diante do substancial adimplemento do contrato, qual seja, foram pagas 30 das 36 prestações da avença, mostra-se desproporcional a pretendida reintegração de posse e contraria princípios basilares do Direito Civil, como a função social do contrato e a boa-fé objetiva. Ressaltou-se que a teoria do substancial adimplemento visa impedir o uso desequilibrado do direito de resolução por parte do credor, preterindo desfazimentos desnecessários em prol da preservação da avença, com vistas à realização dos aludidos princípios. Assim, tendo ocorrido um adimplemento parcial da dívida muito próximo do resultado final, daí a expressão “adimplemento substancial”, limita-se o direito do credor, pois a resolução direta do contrato mostrar-se-ia um exagero, uma demasia. Dessa forma, fica preservado o direito de crédito, limitando-se apenas a forma como pode ser exigido pelo credor, que não pode escolher diretamente o modo mais gravoso para o devedor, que é a resolução do contrato. Dessarte, diante do substancial adimplemento da avença, o credor poderá valer-se de meios menos gravosos e proporcionalmente mais adequados à persecução do crédito remanescente, mas não a extinção do contrato. Precedentes citados: REsp 272.739-MG, DJ 2/4/2001; REsp 1.051.270-RS, DJe 5/9/2011, e AgRg no Ag 607.406-RS, DJ 29/11/2004 (REsp n. 1.200.105-AM, rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, j. em 19.06.2012). (Inf. n. 500)

Direito civil. Contrato de venda e compra de imóvel. OTN como indexador. Ausência de estipulação contratual quanto ao número de parcelas a serem adimplidas. Contrato de adesão. Interpretação mais favorável ao aderente. Exceção do contrato não cumprido. Afastada. Inadimplemento mínimo verificado. Adjudicação compulsória cabível. Aplicação da equidade com vistas à conservação negocial. Aplicação da teoria do adimplemento substancial. Dissídio não demonstrado.

1. Demanda entre promitente vendedor e promitente comprador que se comprometeu a pagar o valor do imóvel em parcelas indexadas pela já extinta OTN. Na ocasião, as partes acordaram que o adquirente arcaria com um valor equivalente a certo número de OTNs estabelecido no contrato. No entanto, no instrumento particular de compra e venda não restou definida o número de prestações a serem pagas.

2. O Tribunal de origem sopesou o equilíbrio entre o direito do adquirente de ter o bem adjudicado, após pagamento de valor expressivo, e o direito do vendedor de cobrar eventuais resíduos.

Nesse diapasão, não há que se falar em violação do dispositivo mencionado referente à equidade. O artigo 127 do Código de Processo Civil, apontado como violado, não constitui imperativo legal apto a desconstituir o fundamento declinado no acórdão recorrido no sentido de se admitir a ação do autor para garantir o domínio do imóvel próprio, reservando-se ao vendedor o direito de executar eventual saldo remanescente.

3. Aparente a incompatibilidade entre dois institutos, a exceção do contrato não cumprido e o adimplemento substancial, pois na verdade, tais institutos coexistem perfeitamente podendo ser identificados e incidirem conjuntamente sem ofensa à segurança jurídica oriunda da autonomia privada.

4. No adimplemento substancial tem-se a evolução gradativa da noção de tipo de dever contratual descumprido, para a verificação efetiva da gravidade do descumprimento, consideradas as consequências que, da violação do ajuste, decorre para a finalidade do contrato. Nessa linha de pensamento, devem-se observar dois critérios que embasam o acolhimento do adimplemento substancial: a seriedade das consequências que de fato resultaram do descumprimento, e a importância que as partes aparentaram dar à cláusula pretensamente infringida.

5. Recurso Especial improvido. (REsp n. 1215289/SP, Rel. Ministro Sidnei Beneti, 3ª Turma, j. em 05.02.2013, DJe, 21.02.2013).

Leasing. Adimplemento substancial.

Trata-se de REsp oriundo de ação de reintegração de posse ajuizada pela ora recorrente em desfavor do ora recorrido por inadimplemento de contrato de arrendamento mercantil (leasing). A Turma, ao prosseguir o julgamento, por maioria, entendeu, entre outras questões, que, diante do substancial adimplemento do contrato, ou seja, foram pagas 31 das 36 prestações, mostra-se desproporcional a pretendida reintegração de posse e contraria princípios basilares do Direito Civil, como a função social do contrato e a boa-fé objetiva. Consignou-se que a regra que permite tal reintegração em caso de mora do devedor e consequentemente, a resolução do contrato, no caso, deve sucumbir diante dos aludidos princípios. Observou-se que o meio de realização do crédito pelo qual optou a instituição financeira recorrente não se mostra consentâneo com a extensão do inadimplemento nem com o CC/2002. Ressaltou-se, ainda, que o recorrido pode, certamente, valer-se de meios menos gravosos e proporcionalmente mais adequados à persecução do crédito remanescente, por exemplo, a execução do título. Precedentes citados: REsp 272.739-MG, DJ 2/4/2001; REsp 469.577-SC, DJ 5/5/2003, e REsp 914.087-RJ, DJ 29/10/2007.(REsp 1.051.270-RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 4/8/2011). (Inf. n. 480)

Sobre a adoção da teoria do adimplemento substancial pelo Superior Tribunal de Justiça essa não vem sendo admitida nas hipóteses de alienação fiduciária10, o que, acompanhando a posição do jurista Pablo Stolze, respeitosamente, divergimos deste entendimento. Assim, ainda que o inadimplemento seja mínimo, o STJ acolhe a resolução do contrato com perdimento do bem objeto de alienação, vejamos:

Ação de busca e apreensão. Contrato de financiamento de veículo com alienação fiduciária em garantia regido pelo Decreto-Lei 911/69. Incontroverso inadimplemento das quatro últimas parcelas (de um total de 48). Aplicação da teoria do adimplemento substancial. Descabimento.

Não se aplica a teoria do adimplemento substancial aos contratos de alienação fiduciária em garantia regidos pelo Decreto-Lei 911/69.

A controvérsia posta no recurso especial reside em saber se a ação de busca e apreensão, motivada pelo inadimplemento de contrato de financiamento de automóvel, garantido por alienação fiduciária, deve ser extinta, por falta de interesse de agir, em razão da aplicação da teoria do adimplemento substancial. Inicialmente, releva acentuar que a teoria, sem previsão legal específica, desenvolvida como corolário dos princípios da boa-fé contratual e da função social dos contratos, preceitua a impossibilidade de o credor extinguir o contrato estabelecido entre as partes, em virtude de inadimplemento, do outro contratante/devedor, de parcela ínfima, em cotejo com a totalidade das obrigações assumidas e substancialmente quitadas. Para o desate da questão, afigura-se de suma relevância delimitar o tratamento legislativo conferido aos negócios fiduciários em geral, do que ressai evidenciado, que o Código Civil se limitou a tratar da propriedade fiduciária de bens móveis infungíveis (arts. 1.361 a 1.368-A), não se aplicando às demais espécies de propriedade fiduciária ou de titularidade fiduciária disciplinadas em lei especial, como é o caso da alienação fiduciária dada em garantia, regida pelo Decreto-Lei 911/1969, salvo se o regramento especial apresentar alguma lacuna e a solução ofertada pela "lei geral" não se contrapuser às especificidades do instituto regulado pela mencionada lei. No ponto, releva assinalar que o Decreto-lei 911/1969, já em sua redação original, previa a possibilidade de o credor fiduciário, desde que comprovada a mora ou o inadimplemento – sendo, para esse fim, irrelevante qualquer consideração acerca da medida do inadimplemento – valer-se da medida judicial de busca e apreensão do bem alienado fiduciariamente, a ser concedida liminarmente. Além de o Decreto-Lei não tecer qualquer restrição à utilização da ação de busca e apreensão em razão da extensão da mora ou da proporção do inadimplemento, preconizou, expressamente, que a restituição do bem livre de ônus ao devedor fiduciante é condicionada ao pagamento da “integralidade da dívida pendente, segundo os valores apresentados pelo credor fiduciário na inicial”. Por oportuno, é de se destacar que, por ocasião do julgamento do REsp n. 1.418.593-MS, sob o rito dos repetitivos, em que se discutia a possibilidade de o devedor purgar a mora, diante da entrada em vigor da Lei n. 10.931/2004, que modificou a redação do art. 3º, § 2º, do Decreto-Lei, a Segunda Seção do STJ bem especificou o que consistiria a expressão "dívida pendente", assim compreendida como as parcelas vencidas e não pagas, as parcelas vincendas e os encargos, segundo os valores apresentados pelo credor fiduciário na inicial, cujo pagamento integral viabiliza a restituição do bem ao devedor, livre de ônus. Afigura-se, pois, de todo incongruente inviabilizar a utilização da ação de busca e apreensão na hipótese em que o inadimplemento revela-se incontroverso e quando a lei especial de regência expressamente condiciona a possibilidade de o bem ficar com o devedor fiduciário somente nos casos de pagamento da integralidade da dívida pendente. (REsp 1.622.555-MG, Rel. Min. Marco Buzzi, Rel. para acórdão Min. Marco Aurélio Bellizze, por maioria, julgado em 22/2/2017, DJe 16/3/2017) (Inf. n. 599).

Assim, alçando às instâncias judiciais, em caso de inadimplemento por descumprimento ínfimo do contrato que, já tenha sido parcialmente cumprido, poderá a parte devedora alegar a teoria do adimplemento substancial em face do credor. Sendo plenamente viável a sua aplicabilidade, inclusive em decorrência de fatos ligados diretamente ou indiretamente à pandemia.

A questão que nos surge a partir de então é: o STJ, antes da pandemia, não admitia a aplicação da teoria do adimplemento substancial em casos de contratos de alienação fiduciária, como bem observado na jurisprudência. Será que, após a pandemia, havendo inadimplemento considerado ínfimo, decorrente diretamente do novo estado de coisas gerado pela Covid-19, o STJ passará a admitir a aplicação da teoria do adimplemento substancial nas hipóteses de alienação fiduciária?

Não sabemos qual será o posicionamento do STJ para essa hipótese, mas, de qualquer forma, acreditamos que seria um grande passo que o entendimento acerca do assunto fosse reavaliado pelo Tribunal da Cidadania, sendo oportuna a mudança com o objetivo de evitar maiores danos às partes contratantes.

No entanto, nesse momento de excepcionalidade que vivenciamos, os impasses surgidos entre as partes contratantes devem, primordialmente, valer-se das técnicas de mediação e de autocomposição, abandonando, tanto quanto possível, a judicialização dos conflitos. Porque é certo que, somente os interessados poderão avaliar de forma mais apurada as suas necessidades, buscando o equilíbrio e a melhor solução para os problemas que possam surgir durante a execução do contrato, sempre tendo por objetivo alcançar o bem-estar das partes, fundamentando as avenças nos princípios da boa-fé objetiva e da lealdade e confiança. Sabendo que a negociação, espontânea e livre das partes contratantes sempre é um caminho a ser trilhado para alcançar soluções que sejam satisfatórias para todos os envolvidos.

*Cristiano Sobral Pinto é doutor em Direito. Professor de Direito Civil e Direito do Consumidor na FGV, Associação do Ministério Público do Rio de Janeiro, Fundação Escola da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, Complexo de Ensino Renato Saraiva e na Fundação do Ministério Público do Rio de Janeiro. Professor universitário, palestrante e autor de diversas obras jurídicas.

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1 Disponível aqui. Acesso em 18 abr. 2020.

2 Segundo a OMS, uma pandemia é a disseminação mundial de uma nova doença, em geral, indica que uma epidemia se espalhou para dois ou mais continentes com transmissão de pessoa para pessoa.

3 O Conselho Chinês para Promoção do Comércio Internacional, órgão do Governo da China, tem dado ao fato o status de força maior. De acordo com divulgações até 3 de março, o referido Conselho já havia emitido mais de 4,5 mil certificados de força maior, com a finalidade de eximir contratantes inadimplentes chineses do pagamento de mais de 53 bilhões de dólares em prejuízos. Disponível aqui. Acesso em 18 abr. 2020.

4 SCHREIBER, Anderson. Devagar com o andor: coronavírus e contratos - Importância da boa-fé e do dever de renegociar antes de cogitar de qualquer medida terminativa ou revisional. Disponível aqui. Acesso em 18 abr. 2020.

5 Art. 422, do CC: "Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé".

6 O novo corona vírus e a relação contratual. Disponível aqui. Acesso em 18 abr. 2020.

7 Os impactos do coronavirus na responsabilidade contratual e aquiliana. Disponível aqui. Acesso em 18 abr. 2020.

8 A pandemia e a teoria do adimplemento substancial. Realizada em 06 de abril de 2020. Disponível aqui.

9 Pinto, Cristiano Vieira Sobral. Direito civil sistematizado. 11ª ed. rev., atual. e ampl. Salvador: Juspodivm, 2019. p. 402-403.

10 Impõe mencionar que o STJ também não admite a aplicação da teoria do adimplemento substancial no caso de descumprimento da obrigação alimentar.

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Coordenação

Eroulhts Cortiano Jr. é professor da Faculdade de Direito da UFPR. Doutor em Direito pela UFPR. Pós-doutor em Direito pela Universitá di Torino e pela Universitá Mediterranea di Reggio Calabria. Conselheiro Estadual da OAB/PR. Secretário-geral do IBDCONT. Advogado em Curitiba/PR.

Flávio Tartuce é pós-doutor e doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP. Professor Titular permanente e coordenador do mestrado da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor e coordenador do curso de mestrado e dos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD. Patrono regente da pós-graduação lato sensu em Advocacia do Direito Negocial e Imobiliário da EBRADI. Diretor-Geral da ESA da OABSP. Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família em São Paulo (IBDFAMSP). Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico.

José Fernando Simão é professor da USP. Advogado.

Luciana Pedroso Xavier é professora da Faculdade de Direito da UFPR. Doutora e Mestre em Direito pela UFPR. Advogada sócia da P.X Advogados.

Marília Pedroso Xavier é professora da graduação e da pós-graduação stricto sensu da Faculdade de Direito da UFPR. Doutora em Direito Civil pela USP. Mestre e graduada em Direito pela UFPR. Coordenadora da Escola Superior de Advocacia da OAB/PR. Diretora do Instituto Brasileiro de Direito Contratual - IBDCONT. Mediadora. Advogada do PX ADVOGADOS, com especialidade em Famílias, Sucessões e Empresas Familiares.

Maurício Bunazar é mestre, doutor e pós-doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Diretor executivo e fundador do IBDCONT. Professor do programa de mestrado da Escola Paulista de Direito. Professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie e do IBMEC-SP.