Migalhas Contratuais

A pandemia da covid-19: uma nova reviravolta nos distratos?

A pandemia da covid-19: uma nova reviravolta nos distratos?

4/5/2020

Texto de autoria de Luciana Pedroso Xavier e Adroaldo Agner Rosa Neto

A trágica pandemia da covid-19 tem afetado a normalidade da vida cotidiana, de modo que o direito positivo, pensado em termos gerais e abstratos, precisa ser adaptado às especificidades do momento excepcional. Em razão disso, são alvissareiras as contribuições que a doutrina vem dando, quer seja auxiliando o Legislador na construção de regramento emergencial, notadamente o PL 1.179/20201; quer seja em seu papel típico, orientando a aplicação e interpretação do Direito. Neste último aspecto, digno de nota é o locus oferecido pelo Migalhas, que desponta como meio privilegiado de reflexões acerca dos impactos da covid-19 no mundo jurídico.

No cenário que se desenha, o âmbito dos contratos certamente é um dos mais sensíveis. A íntima relação entre a atividade econômica e o direito contratual exige respostas deste último à desaceleração da primeira pelas medidas de isolamento social. Setores inteiros, como o varejo tradicional, serviços educacionais, entretenimento, turismo, moda, estão sofrendo quedas de faturamento superiores a 50% desde os dias iniciais da crise, segundo o Sebrae2. Ainda que não tenha sido totalmente paralisado, o setor da construção civil não escapa à regra.

Assim, a temática dos contratos imobiliários mostra-se como terreno fértil às disputas entre os contratantes, mais uma vez. Sim, mais uma vez, pois é certo que esse já é um dado histórico entre nós. A importância social da questão habitacional3, para além do assento constitucional4, implicou na intervenção legislativa e judicial no ritmo dos influxos do mercado5. São exemplos as Leis de Incorporação Imobiliária (lei 4.591/1964), Parcelamento do Solo Urbano (lei 6.776/1979), Sistema Financeiro de Habitação (lei 8.004/1990) e o art. 1.225, inciso VII, do CC/02, que ordinariamente demandam a atuação dos Tribunais em larga escala, a ponto de ensejarem a utilização de técnicas de uniformização da jurisprudência.

Lembrem-se, de um lado, da súmula 621 do Supremo Tribunal Federal6 (antes da alteração de competência implementada pela Constituição de 1988), impedindo embargos de terceiro fundado em promessa de compra e venda não inscrita no registro de imóveis. E, de outro, as Súmulas do Superior Tribunal de Justiça, como as de n.o 767, 848-9 (com orientação diametralmente oposta à do STF10), 23911, 30812 e 54313.

Citem-se, ainda, os julgamentos do STJ pelo rito dos repetitivos. Ganharam destaque as teses firmadas (i) sobre os requisitos de validade da transferência ao promitente-comprador do pagamento de comissão de corretagem; (ii) sobre a impossibilidade de cobrança do serviço de assistência técnico-imobiliária (taxa SATI); (iii) sobre o prazo prescricional para exercício da pretensão de restituição de valores pagos a título de comissão de corretagem e taxa SATI (todos no Tema 938); (iv) sobre a legitimidade passiva da incorporadora para responder pela restituição da comissão de corretagem e da taxa SATI (Tema 939); (v) sobre a impossibilidade de cumulação entre a cláusula penal moratória e indenização por lucros cessantes (Tema 970); e (vi) sobre a inversão da cláusula penal (Tema 971).

Episódio recente dessa série histórica é a chamada "Lei do Distrato" (lei 13.786/2018). Ainda que passível de críticas sob o ponto de vista técnico14, como a confusão no manejo dos conceitos e a criação de uma "mora à brasileira", na feliz expressão de Otavio Luiz Rodrigues Jr.15, trata-se de diploma extremamente relevante. Isso porque tem por intuito delimitar os efeitos da desistência do compromisso de compra e venda — que, apesar de irretratável nos termos da Lei de Incorporação Imobiliária (art. 32, §2º) é amplamente desfeito na prática —, o que acarretava ônus excessivo às construtoras e incorporadoras. Ao que parece, já no primeiro ano de vigência, a Lei do Distrato logrou êxito em seu objetivo, diminuindo em 30% o número de desistências em relação ao ano de sua promulgação16.

Conforme o regramento ali estabelecido, nos contratos firmados sob sua égide, o adquirente que exerce o poder de desligamento está sujeito a um duplo regime de restituição. Caso a incorporação possua patrimônio de afetação, a restituição limitar-se-á a 50% dos valores pagos e poderá ser feita pelo incorporador em até trinta dias após a expedição do certificado de vistoria e de conclusão de obras, o "habite-se" (art. 67-A, §5º, lei 4.591/1964). Se não houver patrimônio de afetação, o pagamento do adquirente, deduzidas a pena convencional e as despesas, será feito em parcela única, em até cento e oitenta dias do desfazimento contratual (art. 67-A, §6º, lei 4.591/1964). Note-se que o primeiro regime não deixa o adquirente saber, ao certo, quando irá receber o montante a que faz jus, uma vez que a expedição do "habite-se" exige o término das obras, o que pode ser bastante demorado. O segundo, por sua vez, deixa o adquirente à mercê da solidez da incorporadora — algo delicado no atual panorama econômico —, ainda que possa receber a restituição em prazo certo.

Importante frisar que a Lei prevê a possibilidade de desligamento do adquirente sem a retenção de qualquer valor. Isso poderá ocorrer caso o comprador-retirante encontrar adquirente substituto que o sub-rogue nos direitos e obrigações originalmente assumidos. É requisito da substituição a anuência do incorporador, a capacidade financeira e a aprovação dos cadastros do novo adquirente (art. 67-A, §9º, lei 4.591/1964). Todavia, tendo em vista as circunstâncias hodiernas, a tendência é que o permissivo tenha pouca aplicabilidade.

Antes da lei 13.786/2018, os Tribunais arbitravam a retenção, prevista nas chamadas cláusulas de decaimento, entre 10% e 30% do montante pago pelo adquirente, restituído, geralmente, em uma única parcela17. A existência patrimônio de afetação não era aquilatada para o arbitramento do percentual a ser devolvido. Desse modo, é evidente a diferença de valores entre a práxis judiciária até então vista e a nova opção do legislador.

Ocorre que, no contexto atual, a conjunção entre as incertezas econômicas, risco de desemprego e o regime mais gravoso de restituição que a Lei do Distrato instituiu — se comparado com experiência jurisprudencial anterior — pode reavivar os debates judiciais que o Legislador procurou pacificar, enquanto forem sentidos os impactos da pandemia.

A completa liberação do adquirente da retenção prevista em Lei não parece tecnicamente possível, considerando tanto as possibilidades do CC/02 quanto do CDC. Como indicou José Fernando Simão neste mesmo espaço, apesar de grave, a pandemia é passageira e não configura caso fortuito/força maior (art. 393 do CC/02) em obrigações cujo objeto é prestação de dar, salvo raras hipóteses. A conclusão foi extraída das lições de Pontes de Miranda: "[s]e é de prever-se que a impossibilidade pode passar, a extinção da dívida não se dá [...]"18.

Porém, a redução do montante a ser retido, especialmente nos contratos envolvendo empreendimentos com patrimônio de afetação, que chega a 50% do total pago, pode em tese ser acolhida pelo Judiciário. O fundamento para essa pretensão estaria na complementariedade entre os arts. 6º, inciso V, e 51, §1º, inciso III, do CDC e o art. 413 do CC/02. A interação entre o CDC e o CC/02 nos casos envolvendo compromissos de compra e venda é mecanismo já reconhecido pela doutrina. Em trabalho basilar sobre a matéria, Flávio Tartuce pondera que "[p]ara solucionar os problemas atuais existentes sobre o tema, é preciso conciliar as citadas normas especiais com os dispositivos do Código Civil [...] a utilização dessa premissa teórica ganha importância pelo fato de ser o compromisso de compra e venda, muitas vezes e até como regra, uma relação jurídica de consumo"19.

Assim, verificados os elementos do suporte fático das normas citadas, notadamente (i) a excessiva onerosidade, tendo em vista a (ii) natureza e finalidade do negócio, em razão de (iii) fatos supervenientes, é possível reduzir-se o percentual a ser retido. É certo, igualmente, que essa análise deverá ser feita caso a caso e nem todos aqueles adquirentes que se desligarem dos compromissos de compra e venda no período em que vivemos logrará a redução. Daí a necessidade de zelo, tanto por parte do advogado que ajuíza a demanda, quanto por parte do juiz, que deverá apontar na fundamentação, discriminadamente, cada um dos requisitos na demanda em apreço caso decida revisar o valor da retenção.

Por evidente, a intervenção judicial no contrato é muito pouco desejável. Mesmo no estado delicado em que nos encontramos, isso iria na contramão das mudanças recentes trazidas pela "Lei da Liberdade Econômica" (lei 13.874/2019) que, apesar de não isenta de críticas, reflete os anseios de nosso tempo no sentido de reforçar a obrigatoriedade contratual. A busca pela manutenção dos pactos deve sempre ser o norte de qualquer solução. Além disso, é preciso encontrar uma forma de equilibrar os interesses dos contratantes que atenda a excepcionalidade das circunstâncias e respeite a obrigatoriedade dos contratos.

Qual seria esse meio termo?

O caminho que se recomenda é que o consumidor adquirente e a incorporadora aproveitem a estipulação da própria Lei do Distrato e negociem os termos da resolução (art. 67-A, §13, lei 4.591/1964). A presença dos advogados das partes é absolutamente essencial para orientá-las. Em tempos de incerteza, é melhor um acordo bem assistido do que uma demanda cujo resultado é incerto.

Em resposta à pergunta do título, a pandemia da covid-19, por ser passageira, não deve mudar radicalmente o quadro composto pela Lei do Distrato. Todavia, não se pode crer que os modelos de restituição por ela instituídos passem pela crise sem questionamentos. Daí a necessidade de diálogo entre os contratantes para que estabeleçam uma solução razoável para o desligamento contratual.

*Luciana Pedroso Xavier é professora de Direito Civil na Faculdade de Direito da UFPR. Mestre e doutora em Direito das Relações Sociais pelo programa de pós-graduação em Direito da UFPR. Advogada. Sócia do PX Advogados.

**Adroaldo Agner Rosa Neto é mestrando em Direito das Relações Sociais pelo programa de pós-graduação em Direito da UFPR. Membro efetivo do Instituto dos Advogados do Paraná. Advogado. Sócio do PX Advogados.

__________

1 O Projeto contou com larga contribuição da doutrina. Dentre seus coordenadores técnicos está o Professor Otavio Luiz Rodrigues Jr. Colaboraram, ainda, os Professores Rodrigo Xavier Leonardo, Fernando Campos Scaff, Paula Forgioni, Marcelo von Adamek, Francisco Satyro, José Manoel de Arruda Alvim Netto e Rafael Peteffi da Silva. Por fim, participaram também os advogados Roberta Rangel e Gabriel Nogueira Dias.

2 SEBRAE. Boletim de impactos da covid-19 nos pequenos negócios. 2ªed. S.l., 03 de abril de 2020, p. 03-09.

3 Gilberto Freyre resumiu o sonho da casa própria do brasileiro em trecho antológico de sua obra: "[t]er casa – casa própria – é ideal de quase todo brasileiro: mesmo que seja o que às vezes por modéstia se define como um mucambinho, visita bem acolhida: 'a casa é sua'." (FREYRE, Gilberto. Oh de casa! em torno da casa brasileira e de sua projeção sobre um tipo nacional de homem. Rio de Janeiro: Artenova, 1979, p. 26. Destacamos).

4 A CR/88 consagra um direito fundamental à moradia em seu art. 6º, caput.

5 A relação entre a legislação e os anseios do mercado na questão habitacional foi anotado pelo Prof. José Carlos Moreira Alves: MOREIRA ALVES, José Carlos. Panorama do direito civil brasileiro: das origens aos dias atuais. In: Revista da Faculdade da USP, v. 88, a. 1993, p. 222.

6 Súmula 621 do STF. Não enseja embargos de terceiro à penhora, a promessa de compra e venda não inscrita no registro de imóveis.

7 Súmula 76 do STJ. O direito à adjudicação compulsória não se condiciona ao registro do compromisso de compra e venda no cartório de imóveis.

8 Súmula 84 do STJ. É admissível a oposição de embargos de terceiro fundados em alegação de posse advinda do compromisso de compra e venda de imóvel, ainda que desprovido do registro.

9 A súmula 84 rompe definitivamente com o paradigma jurisprudencial anterior e sedimenta o caminho para o direito real de aquisição, peculiar à nossa realidade jurídica, consagrado pelo CC/02, art. 1.225, inciso VII. Digna de registro é a participação da Faculdade de Direito da UFPR nessa quadra histórica. Em primeiro lugar, pelo clássico texto do Professor José Francisco Ferreira Muniz, "Embargos de terceiro à penhora (a questão da posse do promitente comprador)", publicado em 1987 (in: Revista da Faculdade de Direito da UFPR, v. 24, 1987, p. 17-29). Em segundo lugar, pela atuação dos Professores Antônio Alves do Prado Filho e Joaquim Munhoz de Mello, como advogados do recorrente e do recorrido, respectivamente, no Recurso Especial 188 (REsp 188/PR, Rel. Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, Rel. p/ Acórdão Ministro Bueno de Souza, Quarta Turma, julgado em 08/08/1989, DJ 31/10/1989, p. 16557) que fundamentou a Súmula 84.

10 O cotejo analítico entre essas Súmulas, feito pelo Prof. Arruda Alvim, aqui no Migalhas, revela a filosofia que as inspirava e demonstra a influência dos diversos momentos sociais na interpretação do tema pelos Pretórios.

11 Súmula 239 do STJ. O direito à adjudicação compulsória não se condiciona ao registro do compromisso de compra e venda no cartório de imóveis.

12 Súmula 308 do STJ. A hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel.

13 Súmula 543 do STJ. Na hipótese de resolução de contrato de promessa de compra e venda de imóvel submetido ao Código de Defesa do Consumidor, deve ocorrer a imediata restituição das parcelas pagas pelo promitente comprador – integralmente, em caso de culpa exclusiva do promitente vendedor/construtor, ou parcialmente, caso tenha sido o comprador quem deu causa ao desfazimento.

14 Seja consentido remeter o leitor para XAVIER, Luciana Pedroso; ROSA NETO, Adroaldo Agner. Comentários ao art. 67-A, Parágrafos 5º e 6º da lei 13.786/2018. In: VITALE, Olivar (coord). Lei dos Distratos. São Paulo: Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário, 2019, p. 183 e ss.

15 RODRIGUES JR., Otavio Luiz. Retrospectiva 2018: Leis, livros e efemérides do direito civil. Disponível em: . Acesso em 19/04/2020.

16 Segundo pesquisas, no terceiro trimestre do ano de 2016 ocorreu "distrato" em 46% (quarenta e seis por cento) das vendas de imóveis na planta. Em 2019, já na vigência da lei 13.786/2018, esse número caiu em mais de 30% (trinta por cento). Acesso em 14/4/2020.

17 Vide a súmula 2 do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. A devolução das quantias pagas em contrato de compromisso de compra e venda de imóvel deve ser feita de uma só vez, não se sujeitando à forma de parcelamento prevista para aquisição.

18 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Parte Especial. Direito das obrigações: extinção das dívidas e obrigações. Dação em soluto. Confusão. Remissão de dívidas. Novação. Transação. Outros modos de extinção. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 158 [coleção tratado de direito privado; t.25].

19 TARTUCE, Flávio. Do compromisso de compra e venda de imóvel. Questões polêmicas a partir da teoria do diálogo das fontes. In: Revista de Direito do Consumidor, n.º 93, mai./jun. 2014, p. 163-164.

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Coordenação

Eroulhts Cortiano Jr. é professor da Faculdade de Direito da UFPR. Doutor em Direito pela UFPR. Pós-doutor em Direito pela Universitá di Torino e pela Universitá Mediterranea di Reggio Calabria. Conselheiro Estadual da OAB/PR. Secretário-geral do IBDCONT. Advogado em Curitiba/PR.

Flávio Tartuce é pós-doutor e doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP. Professor Titular permanente e coordenador do mestrado da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor e coordenador do curso de mestrado e dos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD. Patrono regente da pós-graduação lato sensu em Advocacia do Direito Negocial e Imobiliário da EBRADI. Diretor-Geral da ESA da OABSP. Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família em São Paulo (IBDFAMSP). Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico.

José Fernando Simão é professor da USP. Advogado.

Luciana Pedroso Xavier é professora da Faculdade de Direito da UFPR. Doutora e Mestre em Direito pela UFPR. Advogada sócia da P.X Advogados.

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Maurício Bunazar é mestre, doutor e pós-doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Diretor executivo e fundador do IBDCONT. Professor do programa de mestrado da Escola Paulista de Direito. Professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie e do IBMEC-SP.