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A renegociação dos contratos preliminares (promessa) societários na pandemia de covid-19:Um diálogo comparado luso-brasileiro à luz da alteração das circunstâncias

A renegociação dos contratos preliminares (promessa) societários na pandemia de covid-19: Um diálogo comparado luso-brasileiro à luz da alteração das circunstâncias.

30/4/2020

Texto de autoria de Carla de Calvo Dantas e Marcelo Matos Amaro da Silveira

Introdução

A pandemia de covid-19, doença causada pelo novo coronavírus, que foi declarado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em 30 de janeiro de 2020 como uma Emergência de Saúde Pública de Importância Mundial e, no dia 11 de março de 2020, como pandemia, vem impactando consideravelmente a atividade empresarial em todo o mundo, fato que é de conhecimento geral. A pandemia desencadeou uma intensa produção legislativa em variados países como resposta à contenção da doença e dos efeitos devastadores que dela podem decorrer, seja à nível sanitário, seja à nível econômico1.

Essa realidade é vista tanto no Brasil quanto em Portugal, sendo possível notar em ambos os países desde medidas exepcionais voltadas a restringir a circulação de pessoas (à nível nacional e internacional), a limitar o exercício de atividades económicas e a interação entre pessoas; até medidas que impactam nos prazos de prescrição e decadência, na suspensão da produção de efeitos de algumas consequências jurídicas para os casos de incumprimento contratual, na flexibilização de regras trabalhistas, em incentivos governamentais às empresas. Em Portugal destaca-se o decreto 2-B/2020, de 2 de abril, a lei 1-A/2020, de 19 de março e o decreto-lei 10-A/2020, de 13 de março, que regulamentam diversas questões jurídicas relacionadas com a pandemia, inclusive de direito privado. Já no Brasil, destaca-se no campo do Direito Privado, o PL 1179/2020, que estabelece o Regime Jurídico Especial e Transitório, podendo também ser mencionadas as diversas medidas provisórias publicadas pelo Governo Federal.

A leitura destas medidas legislativas à luz das relações contratuais denotam o esforço e a intenção estatal para viabilizar a manutenção dos contratos neste momento de crise e suspender a eficácia de algumas relações. Da mesma forma verificamos um movimento legislativo que busca mitigar o impacto econômico em setores específicos, como da aviação civil, da produção cultural e do turismo

Entretanto, certo é que para além das exceções legisladas especificamente para este contexto, os sistemas jurídicos ora em análise dão corpo a institutos e categorias jurídicas que preveem a modificação (ou até mesmo a "exoneração") contratual para os casos de alteração das circunstâncias. No âmbito destes institutos que não deixam de ser soluções heterónomas para o problema, podemos vislumbrar o espectro do exercício da autonomia privada que nos cumpre a todos e a nossa responsabilidade social para viabilizar a continuidade dos mais diversos contratos.

Sem olvidarmos dos variados contratos que podem restar desequilibrados neste contexto, por entendermos o papel das empresas como sendo de suma importância para viabilizar a continuidade do setor produtivo em geral, teremos especial atenção às implicações da alteração das circunstâncias nos contratos preliminares (promessa) no âmbito da prática societária do direito brasileiro e português (sistema lusófono), que se fará por meio de uma macro comparação. Para tanto pretendemos fazer uma breve análise teórica sobre o assunto para posteriormente focarmos em sugestões de comportamentos da parte à luz da alteração das circunstâncias.

Alteração das circunstâncias e pandemia de covid-19

A ocorrência de um evento novo, extraordinário e imprevisível como responsável pela perturbação económica dos contratos (de execução continuada ou instantânea, contanto que diferida) assume especial relevância à eficácia da norma conhecida, frente ao direito brasileiro, por onerosidade excessiva superveniente (artigo 317 e 478 e ss do Código Civil)2, e frente ao direito português, por alteração das circunstâncias (artigo 437º e ss do Código Civil)3. Embora este requisito não seja o único a se observar e nem o mais relevante, pode ser tomado como ponto de partida.

Ao final do ano de 2019 foi detectado em Wuhan, província de Hubei, na República Popular da China uma doença infecciosa causada pela SARS-CoV-2, forma mais recente de coronavírus, de elevado potencial de disseminação. Em decorrência da elevada transmissibilidade da doença que acontece por meio do contato humano ou pelo contato com superfícies infectadas, em pouco mais de dois meses ela já se fazia presente em diversos países ao redor do mundo e apresentava resultados devastadores, vide o caso de Itália em fevereiro de 2020 e o caso dos EUA a partir de março.Frente a esse contexto percebeu-se a imprescindibilidade do isolamento social, a decorrer em regra de forma domiciliar, como resposta a contenção da disseminação. Portanto, foi imposto o regime de trabalho remoto e/ou redução de jornadas a inúmeros setores de atividade, quando não a paralisação integral de setores de atividade, como é o caso dos shoppings centers em ambos os países. E, por consequência da pandemia, já se nota no contexto social geral (i) uma diminuição no ritmo de trabalho; (ii) a desaceleração no consumo de produtos e serviços não essenciais; (iii) a impossibilidade de efetivar determinadas práticas comerciais por conta da "impossibilidade" de contato; (iv) a previsão de uma crescente desvalorização do setor imobiliário e empresarial; (v) queda no fluxo de caixa de inúmeras empresas e por consequência de suas receitas; (vi) incumprimentos variados de obrigações.

Por óbvio que o impacto da pandemia é geral e demasiadamente significativo, ainda mais considerando as relações contratuais, que vem sendo muitas vezes devastadas. A economia de diversos contratos que foram celebrados num contexto completamente diverso do atual contexto pandémico já se perfaz desequilibrada. Estamos em vias de ter, numa generalidade de contratos, a exigência do cumprimento do que foi acordado numa conjuntura completamente diversa, revelando-se como demasiadamente onerosa para uma das partes.

Daí porque, exceto nos casos em que há mora culposa (principalmente advinda de comportamentos oportunistas que podem ocorrer), é imperioso revisitarmos a categoria jurídica medieva, cláusula 'rebus sic stantibus', a fim de reavermos o equilíbrio dos contratos de modo a tornarmos possível a continuidade das relações anteriormente existentes, valorizando a conservação do negócio jurídico e a renegociação de algumas condições, como foi muito bem defendido, nesse mesmo espaço, por José Fernando Simão4.

A alteração das circunstâncias nos contratos preliminares (promessa) societários

Por razões diversas há relações contratuais que se iniciam num formato preliminar e não definitivo. Dentro da tradicional separação da doutrina em relação às quatro fases de formação do contrato5, esse seria o terceiro passo, que é muitas vezes dispensável, mas é bastante utilizado em relações contratuais de direito imobiliário e societário. A complexidade das negociações dos contratos empresariais, como bem aponta a professora Paula Forgioni, faz com que diversos instrumentos contratuais sejam minutados e assinados6, sendo usual nessa realidade que contratos preliminares ou contratos-promessa sejam celebrados entre as partes7.

Essa espécie de (pré)contrato tem bastante relevância no sistema lusófono sendo regulamentada tanto no Código Civil Brasileiro (arts. 462 a 466), quanto no Código Civil Português (arts. 410º a 413º e 830º). O seu objeto principal é a promessa de prestação de fato, qual seja, a celebração do contrato definitivo, estabelecendo uma obrigação de fazer bilateral8.

Não obstante, o Contrato Preliminar ou Promessa tem também a função de fixação de conteúdo e vinculação, sendo certo que já nesta fase as partes difinem condições e obrigações (e.g. objeto, preço, pagamento do preço, arras/sinal, prazo, condições, obrigações e responsabilidades das partes, etc.). Neste sentido, fundamental destacar que as partes devem observar todos os requisitos essenciais relacionados com o contrato definitivo a ser celebrado, ficando ressalvada a liberdade quanto à forma eventualmente prescrita na lei, que somente deverá ser observada quando da celebração do contrato definitivo.

É o que acontece, por exemplo, quando se está em causa um Memorando de Entendimento para a aquisição de participações societárias que antecede as alterações (e consequente registro) do Contrato Social, tido por contrato definitivo. Neste Memorando as partes irão estabelecer a obrigação de celebrar a alteração contratual, sendo também estipuladas cláusulas relacionadas ao preço, aos prazos, às condições, a condução dos negócios societários e administração da sociedade, entre outros pormenores. Fica pendente apenas o cumprimento das formalidades previstas na lei, que se dará através do registro do instrumento na Junta Comercial se estivermos no Brasil, ou na Conservatória do Registo Comercial se estivermos em Portugal.

Sendo a celebração do contrato definitivo um dever decorrente do contrato preliminar a não celebração consubstanciar-se-á na não realização de uma prestação devida, ou seja, no inadimplemento. Diante dos contextos jurídicos brasileiro e português o incumprimento de um dever contratual viabilizará recurso ao remédio jurídico primeiro para estes casos que será a execução específica9, conforme estabelecem os artigos 463 do CCB e 830º do CCP10. Por meio deste poderá o credor forçar o devedor a prestar exatamente o que prometeu, que no caso em análise é a celebração do contrato definitivo.

A noção de vinculatividade e obrigação são fundamentais na análise do Contrato Preliminar ou Promessa. Trata-se, como dissemos anteriormente, de um negócio jurídico que efetivamente obriga e vincula as partes, sendo o seu adimplemento o caminho natural para sua satisfação. Contudo o cumprimento pontual do que fora combinado poderá vir a sofrer influências nocivas do tempo, dando causa a relativização deste dever. Isto acontece nos casos em que os desequilíbrios supervenientes decorrentes da alteração das circunstâncias tornarem o cumprimento do contrato demasiadamente difícil.

Considerando esse contexto, cabe analisar a possibilidade de incidência do instituto da alteração das circunstâncias para os contratos preliminares. Tal exerício deverá ser responsável, sempre em busca dos requisitos para a sua eficácia. Nesta medida, entendemos que no atual cenário deve-se verificar as situações em que o cumprimento do contrato ou de alguma das suas cláusulas se revela demasiadamente oneroso, e, em última ratio, se a sua exigência se faz contrária à boa-fé, subjacente aos sistemas de direito brasileiro e português.

A importância da renegociação das condições "preliminares" face a alteração das circunstâncias

As partes A e B firmaram, por meio de um Memorando de Entendimentos, a aquisição pela Parte B de 100% da participação societária de titularidade da Parte A na Sociedade C. Definiram, preliminarmente, (i) o dever de celebração do contrato definitivo (alteração contratual) decorridos doze meses da celebração do contrato preliminar; (ii) o preço devido pela Parte B para a aquisição da participação societária; (iii) os prazos para cumprimento da obrigação de pagar da Parte B e regularizações a serem efetivadas pela Parte A; (iv) a forma que se dará a organização formal e registral da sociedade, assim como as particularidades da celebração do contrato definitivo; (v) as regras de condução do negócio e administração; e (vi) obrigações acessórias que devem ser cumpridas pela Parte A. Para além de outros pormenores contratualmente negociados, tiveram atenção às circunstâncias objetivas as quais a contratação estava inserta (e.g. circunstâncias económicas, políticas, sanitárias, etc.11).

Pese embora tenham vislumbrando que diante das circunstâncias objetivas suprarreferidas o contrato pudesse seguir o seu curso ordinário, foram surpreendidas pela pandemia de covid-19. Tendo em vista que este é um cenário que poderá se reproduzir em variadas relações contratuais, passaremos a tratar da eficácia do instituto da alteração das circunstâncias diante de duas hipóteses distintas no âmbito dos Contratos Preliminares ou Promessa no âmbito empresarial: a) Contratos Preliminares ou Promessa em Geral; b) Contratos Preliminares ou Promessa com Arras ou Sinal Penitencial.

Para tanto, teremos sempre como premissas a valorização da boa-fé, da cooperação e até do bom senso - reiteradamente expressas pela doutrina e em especial nesse espaço12. Também devemos levar em conta que as partes já terão passado por longas rodadas de conversas para a estabelecimento das condições negociais, pela fase de punctuação com elaboração e celebração de outros documentos não vinculantes e eventual due diligence, que muitas vezes envolvem custos13.

Ainda, consideraremos que as hipóteses a serem tratadas tem o potencial de sofrerem influência da situação pandémica, que pode trazer ao seio da relação contratual fatos que se caracterizam como um evento superveniente, externo a contratação em causa e (objetivamente) imprevisível (notadamente porque anormal, extraordinário e impróprio à álea normal do Contrato); que o fato é a causa que prevalece como responsável por ocasionar uma alteração tão significativa das circunstâncias daquele contrato (e de tantos outros da mesma natureza) a ponto de torná-las completamente diferentes das que fundaram a contratação (quebra da base do negócio), deixando evidente a perda de reciprocidade entre as prestações; e que por um lado cumprir as obrigações oriundas de um contrato alterado será capaz de onerar, demasiadamente, uma das partes e por outro, a exigência do cumprimento do contrato alterado será contrário a boa-fé14.

a) Contratos Preliminares ou Promessa em Geral

No âmbito do Contrato Preliminar que tenha sido celebrado pelas partes de forma natural, sendo vinculativo por natureza, para além dos pormenores gerais exemplificados, vislumbra-se que em razão da pandemia as obrigações assumidas pela Parte A de no prazo máximo de seis meses da celebração do contrato, obter uma certidão ambiental específica; ou de integralizar certos imóveis no capital social da sociedade D, que é subsidiária integral da Sociedade C; tornem-se extremamente onerosas. Por outro lado, pode ser imaginar que a obrigação assumida pela Parte B, relativamente a responsabilidade pelo registro da alteração contratual no prazo de doze meses, restará extremamente difícil de se concretizar designadamente porque irá se encerrar durante a pandemia, momento em que os serviços de registro comercial podem estar limitados ou mesmo encerrados.

Num caso como este, o inadimplemento de alguma destas obrigações, sobretudo num contexto de normalidade, poderão levar a rescisão contratual ou a aplicação de penas convencionais severas. Contudo, diante de uma conjuntura de fatos externos que alteram as circunstâncias convém as partes terem sempre em consideração que soluções naturais poderão não ter a aplicabilidade habitual. Daí porque ser a negociação a melhor alternativa: é desta forma que poderão os contratantes, dentro de uma razoabilidade que deve levar em conta o momento, encontrar as melhores soluções à manutenção e continuidade dos seus contratos alterados, de forma a atender não só aos seus interesses particulares, como o interesse económico geral. No mais, ao agindo desta forma poderão evitar se submeterem a morosidade do judiciário e aos elevados custos que podem desencadear os litígios judiciais.

Todavia, caso não consigam chegar a um ponto de interesse comum, poderá a parte prejudicada procurar pela eficácia do instituto da alteração das circunstâncias nos dois sistemas jurídicos sob análise, que admitem como consequência a readaptação ou resolução contratual a ser operada pelos tribunais15. Em suma, o ajustamento contratual a ser operado pelos tribunais deverá se dar fundado na equidade e de forma a que o seu novo plano seja harmonioso com os princípios da boa-fé. A readaptação somente terá lugar no caso de ser possível discernir a equação económica do contrato, o sentido que constitui a sua justiça interna. Isto porque o objetivo da modificação é para que haja o restabelecimento da equivalência entre as prestações, com a recuperação do sinalagma contratual originário16.

Não sendo possível reaver o equilíbrio contratual, seja por iniciativa das partes já no âmbito do processo judicial, seja porque o tribunal não vislumbra a possibilidade de reequilibrar a económica do contrato, a resolução será a medida a se impor. E tal situação acaba sendo a mais comum nos contratos preliminares ou promessa, que por não serem definitivos muitas vezes acabam sendo resolvidos ao invés de serem revisados pelo judiciário.

A despeito desta possibilidade judicial, cabe mais uma vez reforçar que contar com esta via como sendo a primeira ou a única é ineficiente ao sistema. Isto principalmente porque o que se pretende com a eficácia do instituto da alteração das circunstâncias é a individualização da justiça do caso concreto17, que poderá não ser alcançada pelos tribunais. Em momentos de instabilidade como o atual o melhor “julgador” para o contrato é aquele que se encontra no seu cerne, aquele que sabe como foram construídas as sua condições e qual o racional econômico por detrás dele. As partes, portanto, serão muito mais capacitadas para ajustar o contrato para uma nova situação de equilíbrio do que um terceiro adjudicador, sendo altamente recomendável que elas busquem a renegociação do contrato e das suas condições e obrigações.

As soluções que forem buscadas pelos próprios contrantes certamente serão as mais eficazes, já que é permitido a esses, por meio do princípio da autonomia privada, soluções criativas e que podem não ser alcançadas pelo judiciário. Como exemplo, podemos citar a possibilidade de exoneração de multas contratuais, a prorrogação dos prazos para celebração do contrato definitivo, a suspenção da eficácia de certas cláusulas, entre vários outros "remédios" adivindos da renegociação.

b) Contratos Preliminares ou Promessa com Arras ou Sinal Penitencial

Noutra senda, poderá estar em causa um Contrato "Promessa" em que há possibilidade de arrependimento, usualmente inserida através da entrega de um bem ou valor pecuniário a título de arras ou sinal penitencial (art. 420 do CCB e arts. 442º, 2 e 830º, 2 do CCP). No que toca a este ponto cumpre analisar superficialmente o regime da espécie penitencial frente a cada um dos ordenamentos ora em escrutínio dado as suas distinções.

No direito brasileiro as arras penitenciais não podem ser presumidas, devendo ser expressamente estipulada sua natureza ou a possibilidade de arrependimento18 para que elas sejam constituídas. Por outro lado, no direito português o sinal penitencial é aquele presumido para os contratos-promessa em geral19, bastando a sua constituição para que o direito de arrependimento seja previsto. Tal diferenciação de regimes, contudo, não altera a natureza das arras ou sinal penitencial, que é de enfraquecimento do vínculo contratual, estabelecendo um preço de arrependimento, ou de desfazimento do contrato20.

Neste sentido, imaginemos que o nosso Memorando de Entendimentos dessa vez contenha a estipulação de arras ou sinal penitencial. Com isso abre-se aos contratantes a possibilidade de arrependimento do contrato, mediante perda ou devolução em dobro do valor dado a título de sinal. Dentro da situação de dificuldade vivida atualmente imaginamos, assim, que na primeira oportunidade alguma das partes poderá acabar desistindo do contrato, sendo esse um comportamento natural e esperável.

A despeito da possibilidade de arrependimento ser contratual prevista e exercida dentro dos limites da autonomia privada, não se pode olvidar que num cenário de alteração das circunstâncias há um desequilíbrio económico entre a prestação e a contraprestação de forma a originar uma perda de reciprocidade entre ambas. Uma vez que há a quebra da base negocial que comporta as circunstâncias causais da contratação, utilizar-se do mecanismo do arrependimento pode ser considerado abusivo, conforme já defendemos em artigo publicado recentemente21. Agir desta forma sem considerar o circunstancialismo seria ignorar o fato de que o instituto da alteração das circunstâncias, num caso como este por afetar o negócio como um todo, poderia vir a ser invocado pela outra parte, que numa primeira leitura desatenta, poderia não estar em condições de fazê-lo. Daí porque dizer que o arrependimento puro e simples poderá ficar obstado, já que o momento exige prudência na condução dos negócios, sendo absolutamente temerário o desfazimento unilateral e injustificado dos contratos, mesmo que contendo cláusula de arrependimento.

Segundo aponta JUDITH MARTINS-COSTA, os parâmetros da boa-fé também devem ser verificados quando haja pedido de resolução (lato sensu) do contrato22. Ainda que não se considere a extinção da obrigação quando haja arrependimento, não se constituindo um caso de resolução do ponto de vista técnico, tal acepção da autora vale também para o exercício das arras ou sinal penitencial. A alteração das circunstâncias e a boa-fé, em sua função corretora, devem ser utilizadas como parâmetro de controle da desvinculação exercida pelas partes por meio do arrependimento.

Desta forma, também vislumbramos aqui ser altamente recomendável a renegociação das condições contratuais de arrependimento pelas partes, como forma de se evitar uma posterior busca ao judiciário por aquele que se sentir lesado. Nesse contexto, vislumbramos também a aplicação de soluções criativas e que podem não ser alcançadas no judiciário, como a suspensão da contagem do prazo de arrependimento durante a pandemia, a supressão da cláusula de arrependimento, ou mesmo a redução do valor das arras ou sinal que seja construída pelas próprias partes.

Notas conclusivas

A modificação contratual é um dos efeitos resultantes da incidência judicial das normas que trazem a alteração das circunstâncias no sistema lusófono. Ainda que não seja o único caminho que daí decorra, sendo possível pensar na revisão judicial ou resolução dos contratos, é aquele que se revela mais adequado para viabilizar a continuidade das relações contratuais23. Contudo, a readaptação contratual somente se operará quando (e se), com base no critério da equidade, for possível reaver o equilíbrio do contrato e desde que haja concordância do demandado. E, caso não o seja, a resolução do contrato acabará por se impor.

Outrossim, podemos perceber que embora existam outros mecanismos (derivado, no âmbito do artigo, do direito de arrependimento) que numa altura de normalidade poderiam as partes, sem maiores prejuízos, se valer, num contexto de alteração das circunstâncias fazê-lo poderia figurar-se como desleal, desarrazoado, desonesto e abusivo. E tal conduta, ainda que a parte prejudicada não fizesse uso do instituto da alteração das circunstâncias para vir a ter o contrato modificado ou resolvido, não poderia se perpetrar nestes sistemas de direito sobretudo porque a eles está subjacente princípios como a boa-fé.

Sendo assim fica evidente, especialmente no presente momento, que a valorização do princípio da conservação do negócio jurídico como forma de minimizar o impacto da pandemia no sistema económico-financeiro deve ser premissa para todos os contratantes. Daí porque ser prudente as partes se emprenharem na renegociação, decorrente do exercício da sua autonomia privada, quando o cumprimento do contrato se tornar demasiadamente difícil dado a alteração das circunstâncias, evitando levarem os casos para terceiros adjudicadores.

É no âmbito das soluções negociais que os interessados (contratantes) terão as melhores condições de encontrar soluções eficazes aos seus negócios de modo a dar continuidade as suas relações. As relações contratuais, sobretudo empresariais, não mais se apresentam como um vínculo de antítese entre as partes. São estas relações de cooperação, dinâmicas e que devem se apresentar de forma equilibrada pelo tempo que durarem. É necessário considerar que para ter equilíbrio muitas vezes terá também de haver disponibilidade para deixar existir um “não-lucro”. Somente assim conseguiremos, por meio de um conjunto de atos coordenados, viabilizar a existência de uma relação de "ganha-ganha", necessária a continuidade dos negócios e consequente adimplemento24.

Carla de Calvo Dantas é mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Especialista em Direito Civil pela mesma Faculdade. Pós-graduada em Processo Civil pelo Instituto Romeu Felipe Bacelar/PR. Graduada em Direito pelo Centro Universitário Curitiba/PR. Advogada inscrita na Ordem dos Advogados do Brasil e de Portugal, sócia do escritório CMDS Sociedade de Advogados, em Lisboa (Portugal).

Marcelo Matos Amaro da Silveira é mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Especialista em Arbitragem pela mesma Faculdade. Graduado em Direito pela Faculdade Milton Campos/MG. Membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual – IBDCont. Advogado no Moura Tavares, Figueiredo, Moreira e Campos Advogados, em Belo Horizonte.

__________

1 OMS. Folha informativa – COVID-19 (doença causada pelo novo coronavírus). Acesso em 12.04.2020.

2 Sobre o instituto da onerosidade excessiva superveniente, no Brasil, por todos ver AGUIAR JUNIOR, Ruy Rosado de. Extinção dos contratos por incumprimento do devedor: resolução. 2. ed. Rio de Janeiro: Aide Editora. Rio de Janeiro, 2004.

3 Sobre o instituto da alteração das circunstâncias, em Portugal, por todos ver ASCENSÃO, José de Oliveira. Onerosidade excessiva por “alteração de circunstâncias”. In: Estudos em memória do Professor Doutor José Dias Marques. Coimbra: Almedina, 2007.

4 "O contrato nos tempos da covid-19". Esqueçam a força maior e pensem na base do negócio (José Fernando Simão) publicado no Migalhas Contratuais.

5 TARTUCE, Flávio. Direito Civil: teoria geral dos contratos e contratos em espécie, v. 3, 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 155.

6 FORGIONI, Paula A. Contratos Empresariais: teoria e aplicação. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.

7 BANDEIRA, Paula Greco; KONDER, Carlos Nelson; TEPEDINO, Gustavo. Fundamentos de Direito Civil: Contratos, v. 3. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 98.

8 SILVA, João Calvão da. Sinal e Contrato Promessa, 14a Edição. Coimbra: Almedina, 2017, p. 13.

9 VICENTE, Dário Moura. Direito Comparado. Vol II. Almedina: Coimbra, 2017, p. 276-282;

10 Não obstante existam outros remédios o inadimplemento do contratos preliminares como destaca, por exemplo, TARTUCE, Flávio. Direito Civil: teoria geral dos contratos e contratos em espécie, p. 165-166.

11 GRANZIERA, Maria Luiza Machado. Contratos Internacionais: negociação e renegociação. São Paulo: Ícone. 1993p. 78 e ss.

12 Em especial destacamos os textos: "O coronavírus e os contratos - Extinção, revisão e conservação - Boa-fé, bom senso e solidariedade" (Flávio Tartuce) e Devagar com o andor: coronavirus e contratos – importância da boa-fé e do dever de renegociar antes de cogitar de qualquer medida terminativa ou revisional (Anderson Schreiber) ambos publicados no Migalhas Contratuais.

13 BANDEIRA, Paula Greco; KONDER, Carlos Nelson; TEPEDINO, Gustavo. Fundamentos de Direito Civil: Contratos, p. 88.

14 KHOURI, Paulo R. Roque A. A revisão judicial dos contratos no novo Código Civil, Código do Consumidor e Lei nº 8.666/93. São Paulo: Atlas, 2006, p. 52.

14 VICENTE, Dário Moura. Direito Comparado. Vol II., p. 235 e ss.

14 ASCENSÃO, José de Oliveira. Onerosidade excessiva por “alteração de circunstâncias”, p. 516.

15 COSTA, Mário Júlio de Almeida. Direito das Obrigações. 12ª ed. Coimbra: Almedina, 2009, p. 340.

16 AGUIAR JUNIOR, Ruy Rosado de. Comentários ao Novo Código Civil. v. 6. Tomo 2. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 936-937.

17 COSTA, Mário Júlio de Almeida. Direito das Obrigações, p. 348-349;

18 SILVA, Jorge Cesar Ferreira da. Inadimplemento das Obrigações: comentários aos arts. 389 a 420 do código civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 296.

19 CORDEIRO, António Menezes. Tratado de Direito Civil, v. II. 4. ed. Coimbra: Almedina, 2017, p. 667.

20 MONTEIRO, António Pinto. Cláusula Penal e Indemnização. Coimbra: Almedina, 2014, p. 171.

21 SILVEIRA, Marcelo Matos Amaro da. As Arras Penitenciais e o Exercício do Direito de Arrependimento. In: Revista Brasileira de Direito Contratual, vol. 2, p. 50 e ss. Porto Alegre: Lex Magister, 2020.

22 MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-fé no Direito Privado: critérios para a sua aplicação. São Paulo: Marcial Pons, 2015, p. 677.

23 SCHREIBER, Anderson. Equilíbrio Contratual e Dever de Negociar. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 252.

24 TIMM, Luciano Benetti. A manutenção da relação contratual empresarial internacional de longa duração: o caso da hardship, in: Revista trimestral de direito civil: RTDC. v.VII, n.º 27, pp. 235-245, (jul/set 2006), Rio de Janeiro: Padma, p. 3.

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Coordenação

Eroulhts Cortiano Jr. é professor da Faculdade de Direito da UFPR. Doutor em Direito pela UFPR. Pós-doutor em Direito pela Universitá di Torino e pela Universitá Mediterranea di Reggio Calabria. Conselheiro Estadual da OAB/PR. Secretário-geral do IBDCONT. Advogado em Curitiba/PR.

Flávio Tartuce é pós-doutor e doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP. Professor Titular permanente e coordenador do mestrado da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor e coordenador do curso de mestrado e dos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD. Patrono regente da pós-graduação lato sensu em Advocacia do Direito Negocial e Imobiliário da EBRADI. Diretor-Geral da ESA da OABSP. Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família em São Paulo (IBDFAMSP). Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico.

José Fernando Simão é professor da USP. Advogado.

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Marília Pedroso Xavier é professora da graduação e da pós-graduação stricto sensu da Faculdade de Direito da UFPR. Doutora em Direito Civil pela USP. Mestre e graduada em Direito pela UFPR. Coordenadora da Escola Superior de Advocacia da OAB/PR. Diretora do Instituto Brasileiro de Direito Contratual - IBDCONT. Mediadora. Advogada do PX ADVOGADOS, com especialidade em Famílias, Sucessões e Empresas Familiares.

Maurício Bunazar é mestre, doutor e pós-doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Diretor executivo e fundador do IBDCONT. Professor do programa de mestrado da Escola Paulista de Direito. Professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie e do IBMEC-SP.