Migalhas Contratuais

Pandemia de coronavírus e contratos de seguro – Algumas reflexões preliminares

Pandemia de coronavírus e contratos de seguro – Algumas reflexões preliminares.

9/4/2020

Texto de autoria de Angélica L. Carlini

A história recente da humanidade não tem registro de uma situação semelhante a esta que estamos vivendo com a pandemia de Coronavírus – COVID-19. É um enorme desafio para todas as formas de organização política e social, aliás como reconheceu a chanceler alemã Angela Merkel quando afirmou que "desde a II Guerra Mundial não há um desafio que dependa tanto da solidariedade comum"1.

Tem toda razão a chanceler alemã! Não há registro de nada semelhante que tenhamos vivido. Há similares como a Peste Negra, Gripe Espanhola e a Gripe Suína de 2009, porém, esta pandemia é única também na velocidade de circulação de informações, de notícias, de fake news, que por vezes nos fazem perder a noção precisa do que realmente estamos vivendo. Esse é um ponto relevante que precisa iluminar todo o debate em torno de transformações, mudanças, arranjos e rearranjos que faremos em nossas vidas e em nossos contratos a partir do final da pandemia, ou, ao menos, do fim do estado de isolamento social que estamos vivendo.

Só teremos números objetivos, dados corretos e confiáveis quando sairmos do isolamento, quando as curvas de contaminação começarem a diminuir significativamente, de forma a restabelecer a segurança do convívio social livre e desimpedido.

Quando se trata do universo jurídico das modificações que serão trazidas pelo coronavírus é possível perceber que em alguns momentos, há certa competição para sabermos qual o jurista que consegue encontrar o maior preciosismo para oferecer ao debate nacional travado nos grupos de whatsapp, nas redes sociais e nas comunicações pelos inúmeros sistemas digitais disponíveis gratuitamente.

É muito relevante que o debate esteja aberto, democraticamente colocado para todas as opiniões, tendências e linhas do pensamento jurídico. Mas os bons preceitos da serenidade sinalizam que não é momento para lançar "a criança junto com a água do banho", como dizem os historiadores. Nem tudo será jogado por terra, nem tudo poderá ser modificado, nem tudo terá que sofrer mudança à fórceps em razão da pandemia. Cautela não é sinônimo de conservadorismo, é apenas o hábito saudável de ouvir Paulinho da Viola que já nos ensinou que "faça como o velho marinheiro, que durante o nevoeiro leva o barco devagar".

O tema são os contratos de seguro e as consequências da pandemia.

Em primeiro lugar: é pandemia? É, segundo decisão técnica da Organização Mundial de Saúde – OMS, órgão das Nações Unidas. O Brasil é protagonista na criação da OMS em 1948, participou diretamente dos debates que deram origem ao órgão. O principal diálogo da OMS é com os ministérios da saúde dos diferentes países do mundo, a preponderância é a do pensamento científico sobre o político. É pandemia, declarou a OMS, então é e somente novas evidências científicas poderão dizer o contrário.

Em segundo lugar, cabe perguntar, que contratos de seguro poderão sofrer os efeitos da pandemia? Vários o que não significa que o volume seja grande ou pequeno. Uma coisa é a variedade de coberturas que poderão sofrer algum impacto, outra coisa diferente é o volume de contratos que poderão ser afetados. Os seguros de automóvel, por exemplo, sofrerão impacto positivo: menor quantidade de acidentes de trânsito, de furtos, roubos e incêndios porque a circulação de veículos nos grandes centros urbanos diminuiu bastante. O mesmo se aplica aos seguros residenciais cujo impacto será também positivo para furto qualificado, roubo e até incêndio porque qualquer início será facilmente percebido pelos moradores que isolados socialmente estarão em casa e, poderão iniciar o combate e avisar os bombeiros.

E que seguros poderão ter aumento de sinistralidade? Os primeiros debates travados até aqui se referem, principalmente, aos seguros de pessoas, saúde, educacional, garantia, fiança locatícia, lucros cessantes na cobertura de riscos operacionais entre outros.

Na impossibilidade de tratar de cada um deles nesta reflexão preliminar, vamos focar os seguros de pessoas na modalidade cobertura por morte que têm ocupado o cenário do debate jurídico recente e, também, pelo fato de possuírem intensa repercussão social.

Os seguros de vida são habitualmente contratados por empresas para a seus colaboradores mediante contribuição mensal destes ou não, porque muitas vezes somente as empresas pagam o valor do prêmio2. São seguros que se constituem em ótima fonte de recursos imediatamente após o falecimento. São pagos mediante a apresentação de poucos documentos e, quase sempre, representam contribuição financeira muito bem-vinda em famílias que dependem exclusivamente de seus próprios salários para viver e criar filhos.

Nas camadas de mais alta renda da população os seguros de vida também são muito praticados, em especial para garantir às famílias a continuidade de suas condições materiais de vida após o falecimento de algum dos provedores. Na mesma linha, nos estratos de melhor rendimento são também contratados os seguros educacionais que garantirão a continuidade do contrato com a escola até o final do período ou do ciclo, fundamental ou médio de formação dos filhos do falecido.

Não há dúvida sobre o importante papel social que cumprem os seguros de vida. Imbuídos dessa mesma percepção algumas seguradoras têm afirmado que cobrirão os sinistros decorrentes de morte comprovadamente decorrente de contaminação por coronavirus. Nesse sentido, a matéria publicada no jornal Valor Econômico de 02 de abril de 2020. Naquela reportagem várias seguradoras se manifestarem afirmando que vão flexibilizar o entendimento de cláusulas de exclusão, porque entendem que o momento social vivido impõe o cuidado com a proteção da sociedade.

Nessa mesma linha de entendimento, foi apresentado projeto de lei de autoria do senador Randolfe Rodrigues, Projeto de Lei 890, de 2020, que torna obrigatória a cobertura nos seguros de vida dos óbitos decorrentes de epidemias ou pandemias. Se aprovado, evidentemente, só será aplicado a casos futuros, seguros contratados após a data de aprovação do projeto.

Alguns elementos objetivos precisam ser considerados.

Seguros são contratos por meio do qual os seguradores – e, por meio desses eventuais cosseguradores e resseguradores -, assumem a obrigação de indenizar as consequências danosas de riscos materializados, expressamente subscritos no contrato de seguro firmado entre as partes. No Brasil, como todos sabemos, o setor de seguros é fortemente regulado pelo Estado inclusive com a prática de apólices estruturadas pelo órgão regulador – Conselho Nacional de Seguros Privados – CNSP e Superintendência de Seguros Privados – SUSEP -, redigidas por eles e praticadas pelos seguradores de maneira uniforme.

Riscos cobertos pelo contrato de seguro e riscos não-cobertos são, por vezes, uniformes para todas as seguradoras que operam naquele ramo ou, minimamente, bastante assemelhados. É o que acontece com a exclusão para pandemias, epidemias e endemias, debate que o Brasil conheceu mais profundamente nas décadas de 1980 e 1990, quando ocorreram as primeiras recusas no pagamento de capital segurado no seguro de vida em decorrência de morte por HIV. Naquela época o número de casos de contaminação e morte se assemelhava a uma epidemia e, como tal, era considerado risco não coberto pelos contratos de seguro, expressamente mencionados na cláusula própria.

Na atualidade, a Superintendência de Seguros Privados – SUSEP permite às seguradoras do ramo de seguros de pessoas – incluída a modalidade vida -, que excluam dos riscos cobertos a morte do segurado que tenha decorrido de epidemia ou pandemia declarada por órgão competente.

A atual pandemia está declarada por órgão competente, a OMS e os pagamentos de capital segurado nas apólices de seguro poderão ser negados com fundamento no contrato. O artigo 757 do Código Civil define que contratos de seguro são aqueles pelos quais o segurador, mediante o pagamento de um prêmio pelo segurado se obriga a garantir interesse legítimo do segurado, relativo a pessoa ou coisa, contra riscos predeterminados. A lei civil permite a predeterminação de riscos e isso não representa um problema maior porque sabido que quando se trata de contratos de seguro, os direitos não são e não podem ser absolutos, até porque não são individuais embora sejam individualizáveis.

Quem paga prêmio de seguro custeia pelo menos três parcelas da atividade de seguro: (i) uma destinada a composição do fundo mutual de onde sairão os recursos para pagamento das indenizações ou, do capital segurado nos seguros de pessoas; (ii) uma outra parcela destinada ao custeio do canal de distribuição – corretores de seguro, plataformas digitais, representantes, venda direta ou outro; e, (iii) as despesas administrativas dos seguradores, seu percentual de remuneração do capital investido (lucro) e os tributos que incidem sobre as atividades de empresa.

A parcela do prêmio destinada ao fundo mutual é a que deve ser mais rigidamente administrada pelo segurador porque é ela que garante o interesse legítimo do segurado, relativo a bem ou a pessoa, por risco predeterminado. Cabe ao segurador administrar de forma transparente e responsável os fundos mutuais sob sua responsabilidade, para que não faltem recursos para o pagamento de indenização ou de capital segurado, sempre que o segurado apresentar um sinistro decorrente de risco predeterminado coberto pelo contrato.

O segurador pode e deve aplicar os recursos do fundo mutual para que não sejam atacados pela inflação, tanto quanto deve realizar testes sistemáticos fundamentados em cálculos atuariais e estatísticos para aferir se os valores existentes no fundo continuam sendo suficientes para a garantia que a lei determina. Se os fundos estiverem abaixo da linha demarcada tecnicamente pelos cálculos atuariais e estatísticos há risco de faltarem recursos para o pagamento de indenizações ou capital segurado; se, no entanto, os fundos estiverem muito acima da linha demarcada há risco de que os valores de prêmio estejam muito altos e, consequentemente, o segurador estará pouco eficiente na concorrência do mercado praticando preços que o tornam menos convidativo à contratação por segurados.

Os recursos do fundo mutual são aplicados em conformidade com as regras do regulador que impede, por exemplo, aplicações sujeitas a riscos ainda que de maior remuneração no mercado de capitais. Apenas um pequeno percentual do fundo pode ser aplicado em fundo de investimento com participação em bolsa de valores, por exemplo; as restrições tem por objetivo a garantia da solvência para que não faltem recursos para a garantia que o segurador tem por obrigação. Mesmo com as restrições os valores remunerados nas aplicações podem ser representativos, superiores àqueles necessários para a manutenção da garantia o que viabiliza que se tornem receita líquidas de investimento e, portanto, pagos como bônus ou dividendos aos acionistas.

Algumas manifestações publicadas nos últimos dias informam que os seguradores pagarão os capitais segurados dos seguros de vida, mesmo quando se tratar de morte decorrente de contaminação por coronavírus (pandemia), por liberalidade. A palavra foi utilizada com alguma frequência no calor das informações difundidas por jornais digitais, impressos e redes sociais.

Cabe uma última pergunta: seguradores podem fazer pagamentos por liberalidade? Sim, quando se trata de seus recursos. Não, quando se trata de recursos de segurados. Fundos mutuais são recursos de segurados, salvo algumas opiniões doutrinárias contrárias que não será possível analisar neste momento. Reservas técnicas para pagamento de sinistros, ou seja, os fundos mutuais devem ser utilizados apenas e tão somente para sinistros e capital segurado. Mas a remuneração dos fundos mutuais, as receitas líquidas de investimento podem ser utilizadas com liberalidade da mesma forma que os recursos destinados ao custeio de despesas administrativas. Se o segurador decide realizar investimentos menores neste exercício, modificar o orçamento de forma a que existam recursos para o pagamento de indenizações ou capital segurado decorrente de risco não coberto, pode fazê-lo porque essa parte dos recursos pertencem a ao segurador.

Assim, se o segurador analisa a carteira de seguro de vida a partir de procedimentos técnicos atuariais, constata que há saúde financeira e que podem ser realizados pagamentos de capital segurado para vítimas de coronavírus sem comprometer os valores do fundo mutual, não há problema. Mas, que se tenha presente que essa será com certeza uma medida excepcional, rara, destinada a responder de forma solidária às necessidades daquelas milhares de pessoas que vão perder seus provedores, total ou parcialmente, durante a pandemia.

O maior problema a ser enfrentado no futuro é que no Brasil do artigo 20 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro3, a exceção pode se tornar regra aplicável a casos em que não haja saúde financeira para isso, ou seja, não é difícil prever que os seguradores terão que explicitar doravante porque não podem agir com liberalidade em algumas situações, como por exemplo, no pagamento de indenizações por danos materiais e imateriais para terceiros quando o segurado guiava o veículo embriagado. Ou, porque não podem agir com liberalidade em situações como as de suicídio durante o período inicial de dois anos de vigência do contrato, artigo 798, do Código Civil brasileiro.

Em momentos de crise, em especial tem tempos de veloz circulação de fatos, dados, mentiras e falsidades é recomendável agir com cautela e serenidade antes de determinar se regras essenciais para a segurança das instituições podem ser flexibilizadas. No futuro quando a situação estiver controlada ou, como desejamos, totalmente superada, talvez seja necessário permanecer por longo tempo cobrando prêmios de seguro em valores mais altos que os tecnicamente necessários em razão do temor de que a qualquer momento, a flexibilização do passado seja invocada em novas situações semelhantes pelo judiciário, ou, até em situações não assemelhadas, mas que que merecerão de muitos magistrados análise de existência de similitude, embora nem sempre muito clara ou constatável.

Que os bons ventos soprem logo para que o outono de 2020 seja marcado pela superação, resistência, coragem e serenidade de toda sociedade brasileira.

Angélica L. Carlini é doutora em Direito Político e Econômico. Mestre em Direito Civil. Pós-doutorado em Direito Constitucional pela PUC/RS. Docente do ensino superior na UNIMES, UNIP e Escola de Negócios e Seguros – ENS. Vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito Contratual – IBDCONT e conselheira da seção brasileira da Associação Internacional de Direito do Seguro – AIDA.

__________

1 Disponível em Exame. Acesso em 6 de abril de 2020.

2 Expressão que significa aquilo que o segurado paga para o segurador. É muitas vezes confundida com a palavra indenização, de forma equivocada, porque o que o segurador paga ao segurado sim é a indenização ou capital segurado. Já o valor pago pelo segurado ao segurador mantém a antiga tradição que remonta ao latim, ou ao grego, da denominação prêmio.

3 Decreto-lei 4.657, de 1942. Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.(Incluído pela lei 13.655, de 2018).

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Coordenação

Eroulhts Cortiano Jr. é professor da Faculdade de Direito da UFPR. Doutor em Direito pela UFPR. Pós-doutor em Direito pela Universitá di Torino e pela Universitá Mediterranea di Reggio Calabria. Conselheiro Estadual da OAB/PR. Secretário-geral do IBDCONT. Advogado em Curitiba/PR.

Flávio Tartuce é pós-doutor e doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP. Professor Titular permanente e coordenador do mestrado da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor e coordenador do curso de mestrado e dos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD. Patrono regente da pós-graduação lato sensu em Advocacia do Direito Negocial e Imobiliário da EBRADI. Diretor-Geral da ESA da OABSP. Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família em São Paulo (IBDFAMSP). Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico.

José Fernando Simão é professor da USP. Advogado.

Luciana Pedroso Xavier é professora da Faculdade de Direito da UFPR. Doutora e Mestre em Direito pela UFPR. Advogada sócia da P.X Advogados.

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Maurício Bunazar é mestre, doutor e pós-doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Diretor executivo e fundador do IBDCONT. Professor do programa de mestrado da Escola Paulista de Direito. Professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie e do IBMEC-SP.